terça-feira, 25 de janeiro de 2022

TIOS ENCANTADORES NÃO DEVERIAM MORRER - James Pizarro (DIÁRIO- 25.01.2022)

Já professor da UFSM, fui designado pela reitoria para representar a universidade e fazer palestra sobre Ecologia na cidade de Getúlio Vargas, a “sede”, onde eu passava férias nos meus tempos de piá. Falei para cerca de 200 pessoas no cinema da cidade, numa promoção da Delegacia de Educação da região. E pedi ao meu anfitrião um favor : eu queria visitar o recém-criado município chamado “Antiga Estação”, situado a uns 20 quilômetros dali. A outrora estrada barrenta está hoje asfaltada. E, em poucos minutos, lá estava eu a visitar as velhas instalações da ferrovia (ainda são as mesmas). A velha casa onde morava meu tio, pintada de marrom, onde eu passava as minhas férias na infância. Apenas dois funcionários na gare da estação que, na ausência de trens de passageiros, estão ali apenas para a fiscalização dos trens carregados de soja que dali partem em direção à cidade de Rio Grande. De onde a nossa soja é levada para países asiáticos, para se transformar em ração para porcos. Ou para países europeus, onde as pessoas já são superalimentadas e melhor saúde teriam se comessem menos. Enquanto parte do nosso povo passa fome e morre com o nariz achatado nas portas dos hospitais. Falei com um dos funcionários, o mais antigo, e ele bondosamente me proporcionou acesso aos livros antigos, já depositados no “arquivo morto” da estação. Ao folhear os mesmos, deparei-me centenas de vezes com a espalhafatosa e esparramada assinatura de meu saudoso Tio Cassal, autorizando isso ou aquilo. No pátio da antiga e abandonada casa, pude ver o poço - de onde tirávamos cristalina e pura água gelada - atulhado e transformado numa espécie de floreira. Um velho pé de plátano, com o tronco cheio de buracos e condenado à morte, completava o desolador quadro de abandono daquele pátio que foi tão importante nas minhas férias de guri. Ao lado daquele pé de plátano ficava uma gaiola, com o bicho de estimação de meu tio: um gracioso e canoro cardeal. A gaiola ficava com a porta permanentemente aberta. O cardeal comia nas mãos de meu tio, ao amanhecer. E, depois, voava para longe, passando o dia fora. Lá pelas 18h, servindo chimarrão para meu tio, ouvia ele dizer : “Vamos para o pátio que tá na hora do cardeal voltar”. Inacreditável ! O bichinho aparecia. E como por encanto, pousava no dedo indicador do meu tio, que o colocava na gaiola. Onde já estavam um pedacinho de banana mole, uma gema de ovo e alpiste com semente de girassol. Décadas depois, contei isso numa aula de Ecologia. Enquanto me virei para apagar o quadro-negro, tive o dissabor de ouvir este comentário de um aluno da primeira fila: “Que baita atochada! “Quer dizer: passei por mentiroso simplesmente porque estava contando... a verdade! Não se fazem mais alunos como antigamente. Que ainda tinham a perspectiva encantadora do mistério. Como também não se fazem mais tios inveteradamente encantadores. Nem tão pouco se fazem cardeais encantados com a liberdade, embora apaixonados por seu dono. Por que esses tios têm de morrer? Por que esses cardeais são condenados à extinção?

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

NASCEU UM FEIJOEIRO DENTRO DOO DO MEU OPALA - JAMES PIZARRO (DIÁRIO - edição de 11.1.2022)-

Meu primeiro carro foi um fusca 1300, branco, DA 1358, que comprei do médico e poeta Prado Veppo, meu saudoso e querido amigo, também padrinho de casamento. Com este carro fiz diversas viagens a Curitiba durante três anos no início dos anos 70, quando fiz meu curso de especialização em Ecologia do Departamento de Biologia na Universidade Federal do Paraná, a primeira universidade federal brasileira, criada em 1912. Mas também tive outros carros como Variant e Brasilia, até me apaixonar pelos Chevrolet Opala. Com três filhos pequenos, porta-malas enorme, banco traseiro espaçoso, era a meu juízo o modelo ideal para quem tinha prole numerosa e tinha que carregar todo tipo de tralha nas férias. Tive vários Opalas. Mas o que ficou mais famoso entre meus amigos – em especial entre meus alunos da UFSM e do cursinho - foi um Opala branco, duas portas. Por algumas razões que passo a alinhavar. Nunca entendi patavina de máquinas, motores, peças e marcas de automóveis. Nunca assisti corridas de fórmula-1. Quando pifava alguma coisa no motor numa viagem para praia, por exemplo, quem consertava era a minha mulher, que entende tudo de mecânica, tem caixas com ferramentas e sabe nome de chaves e especificações técnicas que aprendeu com seu pai. Entende de eletricidade, platinados, baterias, bobinas, marcas de baterias e assuntos afins que para mim soam como temas esotéricos. De sorte que, sem motivação alguma para carros, os únicos cuidados que tive com os mesmos sempre se resumiram a duas coisas : freios e pneus. O resto nunca dei a mínima importância. Óleo sempre mandei completar, jamais troquei. Jamais gastei dinheiro em lavagem de carro, ainda mais sendo professor de Ecologia. Como não gastava dinheiro com garagem, o carro posava na rua, em frente de casa e era lavado pela água da chuva. Quando caía um temporal e a chuva era demorada eu botava um calção e munido de esfregão ou esponja e sabão, descia para a rua com a gurizada da vizinhança e todo mundo me ajudava a lavar o carro. Era uma algazarra alegre da qual tenho muita saudade. Apesar da cara de espanto e do olhar sizudo de desaprovação de alguns vizinhos nas janelas. Nunca fechei as portas do carro durante a noite . Como eu deixava o carro na rua, com essa medida eu evitava que o mesmo fosse arrombado ou tivesse os vidros quebrados. Uma madrugada eu vi que tinha um cara sentado dentro do carro fumando. Desci e fui lá embaixo falar com ele que ficou muito assustado, pensando que eu estivesse armado. Tratava-se de um morador de rua, conhecido das redondezas, que estava sentado dentro do carro fumando e ouvindo música. Calmamente eu fiz a ele a seguinte proposta : - Eu te autorizo a dormir todas as noites dentro do meu carro desde que tu deixe o cinzeiro limpinho, porque eu não fumo e detesto cheiro de cigarro. Eu saio para a trabalhar antes das 7 e te trago um troço para comer de manhã. Topas ? Ele topou na hora. E dessa forma eu passei a ser em toda a cidade o único sujeito a ter um vigia noturno para cuidar do carro. E ele tinha teto para dormir, música ambiental e café da manhã. Também ficou famosa a história do porta-malas do meu carro. Porque a borracha do porta-malas apodreceu e caiu fora. Chovia dentro e entrava sol pelas frestas. Um dia por aquele espaço onde existia a borracha apareceu um belíssimo pé de feijoeiro. Que fizeram a alegria dos alunos. Que fizeram algazarra e batiam fotografias. Foram me avisar. Abri o porta-malas e lá estava a explicação : dos restos de sacos abertos de carvão para churrasco sobravam pó que serviram de substrato para germinarem algumas sementes de feijão que escaparam de sacos rasgados de feijão comprados do supermercado que, por fototropismo, foram atraídas pelo sol que entrava pelo do porta-malas. Um dia proibiram de circular os carros de placas laranja, lembram ? Deixei o carro estacionado em frente de casa sem usa-lo para não infringir a lei. Certo dia, ao chegar em casa, os vizinhos me avisaram que o meu Opala tinha sido guinchado. Fiquei surpreso. Achei que daria muito trabalho procura-lo, pois detesto burocracia. Fui a uma revendedora e comprei outro carro. Até hoje não sei o que fizeram com meu Opala. Nunca me comunicaram nada. Faz uns 20 anos isso. De vez em quando me bate uma saudade do coitado...