terça-feira, 24 de agosto de 2021

O CORVO - James Pizarro (DIÁRIO - 24.08.021)

Família da classe média do interior gaúcho. Pai comerciário. Caçador de perdizes. Dono de um carro antigo. Um velho Ford "de bigode". Mãe professora de piano e dona de casa. Três filhos pequenos. Duas gurias e um piá. Durante as férias, viajavam para a pequena cidade de Cacequi. Estrada de chão batido. Mar de lama quando chovia. O valente Ford atolava. O pai descia. Botava correntes ao redor dos pneus. A mãe puxava a cortina de couro das janelas. As três crianças encolhidas no banco traseiro. Frio de renguear cusco. Chuva inclemente. Chegavam ao destino horas depois. Passar alguns dias na "casa" do irmão do pai. Na realidade, uma hospedaria. No recinto da estação ferroviária. Abrigava passageiros do trem. Dava comida. Servia lanches. Os irmãos maiores toleravam essas "férias". A menor das gurias detestava. Ficava olhando aquela gente estranha. Velhos gaúchos pilchados. Fumando palheiro. Tomando seu gole de cachaça. Chimarreando. Comendo o prato feito que a tia servia aos hóspedes. Enquanto a mãe ajudava na cozinha. E o pai conversava fiado. A menina odiava, sobretudo, o corvo. Sim, um corvo de estimação! Que ficava sempre pousado na janela da cozinha. O corvo ficava esperando tripas de galinha. Restos de carne dos pratos. Vísceras. O corvo saía caminhando entre as mesas. Festejado pelos hóspedes. Orgulho do tio. Que acariciava o pescoço pelado do corvo. Que crocitava, agradecido. Introspectiva nos seus oito anos, a menina ficava olhando aquilo. Com seus olhos de espanto. Além do asco pelo corvo, ficava comparando o tratamento que recebia. Os tios davam mais atenção ao corvo do que a ela. Esta cena jamais sairia da sua memória. Para o resto da vida. Vida que ela continua a olhar com seus grandes e lindos olhos. Agora, não mais de espanto. Mas de encantamento. Do alto da Galeria do Comércio, onde mora com o marido, só contempla passarinhos coloridos do pátio da casa do Dr. Mariano. Os morros da cidade. As torres da catedral. As nuvens que passam formando desenhos lindos. E o bonito morro da Caturrita. Com as antenas da TV. Seus olhos lindos aguardam os netos que chegam para visitas. O corvo ficou sepultado no passado. O marido, quase octogenário, ainda a olha com olhos de adolescente. Olhos de amor do tempo antigo. De amor para sempre.

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

FAZER CARA DE DEMÊNCIA PARA NÃO SE INCOMODAR - JAMES PIZARRO (DIÁRIO - edição de 10.8.2021)

Numa dessas últimas madrugadas, enquanto aguardava mais uma série de provas e jogos das Olimpíadas de Tóquio, meus pensamentos errantes – sei lá por quais motivos inconscientes - me levaram para o Hospital de Caridade Astrogildo de Azevedo. Corria o ano de 2015. E fiquei 17 dias internado. Fiz as contas : 17 dias x 24 horas = 608 horas. Medidas de sinais vitais a cada 4 horas. Taxas. Soros. Antibióticos potentes. Coleta de material para exames. Várias refeições e lanches. Óleo da canola na perna com erisipela. Curativo no cateter da subclávia. Insônia. Programas de rádio. TV. Piedosas visitas do padre. Consoladoras e simpáticas conversas com os paramédicos. Tempo que não passa para o (im)paciente. Pensamentos fervendo a mil. Visitas inesperadas de pessoas surpreendentes. Visitas prometidas de pessoas queridas e que não se concretizaram. Visitas de pessoas desconhecidas e que emocionaram um velho coração. Dramas humanos pungentes de doentes de quartos vizinhos. A solidariedade pela dor. Passeios de mãos dadas pelos corredores com jovens fisioterapeutas e seus exercícios aeróbicos nas janelas. Macas que cruzam com cadáveres cobertos com lençóis. Cadeiras de rodas com doentes baixando e outros dando alta. Pessoas abraçadas chorando um óbito. Outras sorrindo comemorando o nascimento de um neto. Eis a rotina de um grande hospital. Não é um local só de tristezas. E de morte. É um local de coisas alegres. Renascimentos. De brindes à Vida. Nunca fiquei tão convicto na minha vida de que a coisa mais importante é a SAÚDE ! Desde aquela internação venho movendo céus e terra para investir na melhor qualidade de minha saúde (que já era muito boa). Mas que - por idiotice - não vinha lhe dando o devido valor. Meti na cabeça que quero ver a formatura dos meus seis netos antes de morrer. Dois já se formaram. Mais dois ainda estão cursando a universidade. Um está começando o ensino médio. E o outro está na escolinha. Talvez seja difícil ver a formatura da sexta netinha que está com 4 anos. Mas vou pelear. Pelo menos serve de motivação para prolongar a longevidade. Para tanto conto com alimentação orgânica preparada pela Vera e vinda de fornecedor especializado, com orientação da nutricionista, o que já me eliminou mais de 30 quilos. Duas sessões semanais a domicílio com fisioterapeuta para evitar perda de musculatura causada por 14 meses de isolamento social e vida sedentária. Remédios prescritos pela Dra. Jane e tomados rigorosamente. Tomo outras providências secundárias também ! Jamais ir a reuniões de condomínio. Jamais abrir vídeos ou propagandas ou fakenews político-partidárias no facebook. Não responder a qualquer provocação. Faço cara de demência quando pretendem me “cutucar”. Para complementar este tratamento de obter qualidade de vida saudável : muita música, boa leitura, oração, reflexão. Não entro em controvérsias. Não polemizo. Não gasto energia em temas como política, religião, futebol. Mas longe de mim criticar quem o faça, por favor ! Estou apenas justificando a posição do quase octogenário professor universitário aposentado que quer curtir seu ostracismo na santa paz cercado por seus filhos, netos e sua mulher. Nessa etapa da vida, quando acordo ao amanhecer e sento na cama, sempre digo em voz alta : “Obrigado, Senhor, por mais 24 horas”. A alegria que me invade por estar vivo a cada manhã não tem preço.