segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

ENFIM, COMEÇA A VIDA REAL - JAMES PIZARRO (crônica pág.4, DIÁRIO SM, 25.02.2020)


Estou reunindo forças e vontade, neste início de Quaresma, para orar por todos aqueles que perderam a vida nos quatro dias de Carnaval. Estou cheio de misericórdia pelos que morreram assassinados. Condoído de dor de seus entes queridos que nunca mais verão seus filhos e netos.

Todo ano, nesta época, fico chocado pelos mortos de overdose. De embolia pulmonar por ingestão de ecstasy. Atropelados e deixados sem socorro em pleno asfalto. Esmagados entre as ferragens de seus carros. Trucidados pelas gangs por motivos banais.

Estou cheio de misericórdia pelos que usaram crack pela primeira vez e se tornaram escravos para sempre. Pelas meninas adolescentes que ficaram grávidas. Pelos que ficaram aidéticos. Pelos sofridos colos de útero que contraíram HPV. Pela taquicardia dos que consumiram álcool com energéticos. Pelos que se contaminaram por hepatite C pelas agulhas compartilhadas. Pela exaustão dos plantonistas médicos e paramédicos que - perplexos - atenderam estas tragédias humanas.

Fico perplexo diante da violência contra os taxistas assaltados. Lembro dos garçons cansados que ficaram sem gorjetas. Dos policiais incompreendidos que agiram obrigatoriamente com violência. Das cozinheiras insones que deixaram família para preparar lanches para bêbados gritões. Dos caixas que se enganaram no troco e terão descontos em seus salários. Das costureiras e modistas que não receberam pelas fantasias que bordaram.

Senti piedade daqueles que se travestiram de nobres nos desfiles das escolas de samba. Marquês, conde, princesa, rei, rainha e outros títulos ! E que, na quarta-feira da verdade, voltarão a ser domésticas, pedreiros, lixeiros, lavadeiras, babás, desempregados.

Tenho piedade por todos que, agora, terão de enfrentar a vida real.
O custo de vida.
Os postos de saúde com médicos em pequeno número.
As filas na madrugada para marcar consultas.
A lista de livros dos filhos.
A falta de creches.
As mentiras dos políticos na TV.
As violências das novelas globais.
O mundo do faz-de-conta do BBB 2020.

Também senti piedade de mim.
Que gostaria de ter sido otimista hoje.
Mas não consegui.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

ECOLOGIA, UM RESGATE HISTÓRICO - James Pizarro (DIÁRIO, pág. 4 de 11.02.2020)

Em 1983, a Secretaria Especial do Meio Ambiente, conhecida pela sigla SEMA, era uma subsecretaria colocada dentro do Ministério do Interior. Seu ativo titular era o Dr. Paulo Nogueira Neto, que foi cedido para o governo federal pela USP - Universidade de São Paulo, onde era fundador e titular da cátedra de Ecologia.

Fiquei muito amigo do Dr. Paulo Nogueira Neto ao longo  dos anos por várias razões. À convite dele, várias vezes fui a Brasília participar de simpósios e seminários sobre meio ambiente, algumas vezes até como palestrante sobre “Educação Ecológica pelo Rádio”, pois o Dr. Paulo era admirador do meu trabalho pioneiro na Rádio Universidade da UFSM  com o programa “Antes que a Natureza Morra” que ficou quase 30 anos no ar. Ele inclusive, numa época de poucos recursos na emissora, fez uma doação ao meu programa de 400 fitas BASF de rolo de duas horas de gravação cada para que o programa pudesse manter sua memória.
Por determinação da SEMA, em maio de 1983 foi decretado que todas as prefeituras brasileiras deveriam comemorar, de 1 a 7 de junho, a “Semana Nacional do Meio Ambiente”. Em Santa Maria, fui convidado pelo prefeito Dr. José Haidar Farret para coordenar, planejar e fazer realizar este evento. Resolvi aceitar o desafio uma vez que certa parcela da comunidade e da imprensa acusava os ecologistas de apenas criticarem e jamais executarem algo de prático.
Passei cerca de 20 dias arregimentando forças. Pretendo lembrar de todas aqui. Direção, funcionários e alunos do SENAC deram notável apoio, confeccionando belíssimo cartaz com a programação, horários, local e nome dos palestrantes. Ainda fizeram as vezes de recepcionistas no Centro de Atividades Múltiplas, local do evento, 12 moças elegantemente trajadas, alunas do Curso de Recepcionistas do SENAC.
Os escoteiros da Tropa Henrique Dias distribuíram 10 mil folhetos convidando a população (folhetos pagos pela Prefeitura Municipal e distribuídos nas ruas, avenidas e nas escolas, de sala em sala de aula).
Meus alunos da disciplina de Ecologia dos cursos de Agronomia, Ciências Biológicas e Engenharia Florestal ministraram dezenas de palestras nas escolas municipais e, junto com os escoteiros da Tropa Henrique Dias, plantaram dezenas de mudas de árvores ao longo do Parque Itaimbé, muitas delas transformadas hoje (37 anos depois) em frondosas árvores.
Durante as sete noites de palestras, cerca de 2000 pessoas lotaram completamente as dependências do Centro de Atividades Múltiplas, o popular “Bom-Bril”. Houve necessidade de que a Rádio Universidade instalasse caixas de som do lado externo do prédio para que cerca de 500 pessoas pudessem ouvir as palestrantes. O impressionante era o silêncio e a disciplina de todos.
Os palestrantes foram: James Pizarro ( “A Má Qualidade de Vida no Planeta”), José Salles Mariano da Rocha (“Desertos e Áreas de Desertificação no Rio Grande do Sul”), Gustavo Quesada (“Comunidades Agro-energéticas”), Horst Oscar Lippold (“Aspectos da Fauna Silvestre do Rio Grande do Sul), Dr. Arnaldo Walty ( “Câncer e Meio Ambiente”), Amaury Silva (“A Verdade sobre as Drogas”) e Mesa Redonda com os professores João Radünz Neto, Brandão, Ilka Bossemeyer e Paulo Ary Moreira (“Piscicultura e Aspectos Ecológicos da Água”).
Foi feito, como ato final, um plantio de árvores no centro da cidade, com a presença do prefeito municipal, José Haidar Farret, e grande número de autoridades, escolares, universitários e populares. Registro para a memória da cidade esta iniciativa, de intensa repercussão cultural, técnica, científica e popular. E numa época de incompreensões e injustiças resgato o papel histórico de apoio que a causa ecologista santa-mariense recebeu do Dr. José Haidar Farret.

Eventos dessa magnitude e dessa duração com tal frequência nunca mais se repetiram.

sábado, 1 de fevereiro de 2020

CHICOTIM, UM CAIXEIRO-VIAJANTE EXEMPLAR - James Pizarro (DIÁRIO, Caderno MIX, edição de 1.2.2020)


Você sabia que até 1941 existiam apenas 48 quilômetros de estradas pavimentadas no Rio Grande do Sul ? E que, até 1930, só existiam 30 pontes em todo nosso Estado ?

Uma porção de curiosidades como estas, entremeadas de gostosíssimas histórias, além de dados estatísticos e considerações sobre a evolução dos costumes, são encontrados no livro “50 ANOS DE VIAGEM (trabalhos, peripécias e alegrias)”, de autoria de Francisco da Rocha Timm, mais conhecido pelo apelido de “Chicotim”.

O autor, nascido e 24 de julho de 1893, em São Pedro do Sul, é filho de Jorge H. Timm e Amélia Angélica Timm e casado com D. Alda Borges. Plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro – eis os desejos de um homem – como diz o adágio popular.  Pois o Chicotim plantou muitas árvores. Tem três filhos : Jorge, cirurgião-dentista; João Renato, advogado e Juarez, bioquímico.

E aos 79 anos de idade, Chicotim escreveu um livro, um alentado volume de 300 páginas : “50 ANOS DE VIAGENS”. No qual retrata toda uma época através das viagens feitas pelo próprio autor.

Mário Napoleão, ao prefaciar o livro , escreveu :

“Apresentar Chicotim – meio século de viagens como caixeiro-viajante cruzando coxilhas e serras do pago gaúcho, deixando por onde passava marcada sua presença insinuante por gratas recordações que o faziam benquisto dos colegas, amigo conceituado dos seus fregueses, pelo correção dos seus atos e critério nas transações de seu comércio – julgo desnecessário escrever, pois ele é vastamente conhecido e considerado, um legítimo representante da classe”.

O livro é ilustrado por algumas fotografias antológicas. Pois não mostra o avião, o trem, o automóvel último tipo. Foi duro ser viajante naquela época como Chicotim foi. Viajando de carreta. Ou de Ford de bigode. Comendo arroz de carreteiro na beira da estrada. E inclusive correndo o risco de ser emboscado e assaltado em qualquer curva mais escura da “estrada”.

Infelizmente, nunca cheguei a conhecer pessoalmente o  Chicotim, mas apenas seus parentes.  Mas lhes afirmo que este livro – publicado em 1972 pela editora A Nação – talvez tenha sido uma iniciativa inédita na literatura cá dos pagos pois não  me recordo que (pelo menos até 1972) algum caixeiro-viajante tenha escrito um livro de memórias.

Como encontrei este livro em 1972 ? Nas livrarias ? Não. Ele me foi presenteado pelo Dr. Luiz Osvaldo Coelho, médico e professor aposentado da UFSM, onde foi diretor da Faculdade de Medicina, que é tio dos meus filhos e foi pediatra dos  mesmos. O Luiz Oswaldo, que é parente do Chicotim, disse que eu gostaria do livro pois sabia que gostava de livro de memórias. Logo depois de devorar o livro, escrevi uma crônica sobre o mesmo que foi publicada no jornal A RAZÃO na edição do dia 22.12.1972. Chicotim enviou amável carta agradecendo a minha publicação.

O livro pode ser encontrado nas bibliotecas. E segundo pesquisei na internet, existem exemplares à venda nos sebos do país, como na Estante Virtual e SeboBis, para os interessados.

Sempre nutri verdadeira admiração pela classe dos caixeiros-viajantes. Pelo singular e difícil trabalho que exerceram. Roubavam precioso tempo das suas famílias para empreender suas longas viagens. Algumas delas perigosas. A própria SUCV -  Sociedade União dos Caixeiros Viajantes – com seu lindo prédio à praça Saldanha Marinho lembrada importância que a classe teve em nosso RS.

Mas o tempo, em sua marcha inexorável, vai avançando. Mas livros como o de Chicotim nos deixam essas doces lembranças.