terça-feira, 23 de agosto de 2022

A GARE - JAMES PIZARRO (DIÁRIO - 23.08.2022)

A minha ligação com a ferrovia vem do fato do meu avô Fredolino ter sido ferroviário. Era exímio carpinteiro, verdadeiro artista, cujo trabalho, dedicação, assiduidade e pontualidade lhe faziam gozar de enorme prestígio junto aos superiores. Trabalhou mais de 45 anos na ativa, sem nunca ter tirado licença, atestado médico, faltado ao serviço ou feito greve. A greve era um recurso muito usado pelos ferroviários naqueles tempos. Vô Fredolino trabalhava no chamado "recinto", que nada mais era do que o imenso espaço existente em frente à gare da Estação da Viação Férrea de Santa Maria. Ali existiam vários departamentos da ferrovia e meu avô exercia suas atividades no chamado "Posto de Visitas", onde se situava a carpintaria geral da "Rede". A Viação Férrea era conhecida em todo o território gaúcho simplesmente por "Rede". Quando os ferroviários entravam em greve, reuniam-se no campo gramado que existia atrás do Maneco, ao lado de um enorme depósito de combustível (chamado de "tonel"), construído para armazenamento de óleo para as primeiras locomotivas a óleo diesel adquiridas e que causavam grande admiração aos habitantes da cidade. Este campo, outrora gramado, foi depois usado para estacionamento de ônibus de empresas de transporte coletivo. A gare da estação da Viação Férrea do RS foi local frequentado pela elite da sociedade santa-mariense, por mais incrível que isso possa parecer hoje aos mais moços, testemunhas da decadência da rede ferroviária. Ali estavam os escritórios das chefias. A sala do diretor da estação (chamado de "Agente"). Também me lembro do amplo e completo "stand" de revistas (a chamada "Revistaria da Estação"). O higiênico e confortável restaurante, onde serviam-se desde refeições "à francesa" até rápidos lanches. A fantástica sorveteria com inimagináveis guloseimas servidas em finas taças de prata. O competente serviço de carregadores de bagagens ("mensageria"), com os servidores vestidos de azul, com colarinho e gravata, portando carrinhos de ferro para o transporte das malas. O serviço de autofalantes com as publicidades (chamadas "reclames") ditas por um locutor cego, que tinha a fantástica capacidade de memorizar tudo. Entre um "reclame" e outro, valsas de Strauss e sambas de Ary Barroso. Para ter acesso à gare da Viação Férrea, era necessário comprar ingresso. Vendido sob a forma de um papelote duro, numerado, metade branco, metade verde. Que era picotado pelo porteiro engravatado na roleta numerada que dava acesso ao interior das instalações. Rapazes e moças, acompanhados de seus pais, costumavam formar fervilhante torvelinho de gente nas horas de chegada e partida dos trens de passageiro. Trens que atendiam por nomes especiais : "Noturno", "Fronteira", "Serra", "Porto Alegre". A gente ficava abanando para as pessoas que partiam naquela "composição" formada por dezenas e dezenas de carros. Puxada por barulhenta e folclórica máquina a vapor, carinhosamente chamada de "Maria Fumaça". Pouco depois substituídas pelas máquinas movidas a diesel e pelos trens húngaros, que tinham até ar condicionado e lanche gratuito. Parece mentira que – num incrível passe de mágica, suspense e terror – tudo desapareceu !

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

O VENTO SOPRARÁ FEITO UM HINO SOBRE AS FLORES - JAMES PIZARRO

Sempre fui fã de carteirinha da Nara Leão. Comprava todos os discos dela. Acompanhava suas andanças. Sua participação como musa do movimento da "Bossa Nova". Seu engajamento político. Suas entrevistas no saudoso semanário “O PASQUIM”. Corriam os anos 60. Comecei a namorar a Vera Maria em 1963. No dia em que fiz vestibular. Quando casamos, em julho de 1966, uma coisa ficou acertada. Nossa primeira filha se chamaria Nara. Em homenagem à nossa musa, uma vez que também ela gostava da cantora. Alguns meses depois, o Dr. Ronald Bossemeyer candidamente nos disse numa consulta de rotina : “Vocês serão pais, a Verinha ficou grávida”. Rumamos felizes para casa. Eu tinha uma “moderna” máquina de escrever Olivetti Lettera 22. Imediatamente escrevi um texto intitulado “Crônica para meu filho futuro´ “ Mesmo antes de nascer, eu já te quero. Pois tu és fruta madura no ventre do meu amor. Quando nasceres, o sol queimará mais forte. O vento soprará feito um hino sobre as flores. Verás caramujo num arrasto mole na gruta do teu colégio. Verás formiga correndo para o círculo do chão. Navegarás em barquinho de papel na sarjeta da tua rua. Lutarás a favor dos soldados de chumbo. Durante o dia verás pomba branca e dócil pousada na antena da TV. E se à noite ouvires no vídeo o homem falar da guerra eu mentirei : direi que ele fala assim porque a pomba não faz plantão noturno. Eu te falarei em Frank Borman e Gagarin – os primeiros astronautas – como me falaram de Colombo e de Cabral. Que eu já perdi em distantes aulas de Geografia Um dia teus ossos esticarão para mostrar que a velhice fez morada na minha face. Apertarás minha mão nodosa. Sentirás minha pele rugosa. E sorrindo dirás : papai ! “ No dia 2 de setembro de 1967 nasceu uma menina. E que recebeu o nome de Nara, Em homenagem à nossa musa. Nara Leão morreu. Vítima de um tumor em região de difícil acesso no cérebro, depois de penar e lutar titanicamente durante dez anos contra a doença, Nara expirou em 7 de junho de 1989. Há um belo livro para todos que querem saber mais sobre esta extraordinária cantora e ativista política : "Nara Leão: uma biografia", de Sérgio Cabral, publicado pelas editoras Companhia Editora Nacional e Lazul. Sempre lembro dela em minhas orações. Nossa filha Nara – hoje com 49 anos – é uma talentosa fonoaudióloga, articulista de temas técnicos e palestrante estabelecida com clínica na região de Panambi há quase trinta anos. Também escrevi para meus dois outros filhos quando nasceram. James Souza Pizarro, assistente social concursado, efetivo, da Prefeitura Municipal de Santa Maria e Cristina Souza Pizarro, fisioterapeuta, comerciante e cronista em Itajubá, sul de Minas Gerais. Nestes tempos estranhos em que vivemos, onde os valores éticos e familiares parecem estar perdendo o valor e sofrendo todo tipo de deboche, pretendi modesta e humildemente mostrar que é possível se amar uma criança ANTES mesmo dela nascer. E que a FAMÍLIA ainda é a salvação.

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

O PRÉDIO DA ASSOCIAÇÃO DOS FERROVIÁRIOS VAI RESSUGIR - JAMES PIZARRO (DIÁRIO, edição de 9.8.2022)

Nas cercanias do Colégio Estadual Manoel Ribas funcionava a monumental Cooperativa dos Ferroviários da Viação Férrea do Rio Grande do Sul, com dezenas de prédios dedicados a múltiplos fins. Um grande prédio servia de sede burocrática. Outro, de armazém de "secos e molhados", expressão em voga à época. Ali existia qualquer tipo de alimento imaginável para comprar. Anexo a este grande armazém havia loja de roupas e tecidos, alfaiataria, relojoaria, carvoaria, fábrica de sabão, padaria, lenheira, farmácia. Ao lado do prédio do Maneco funcionava um gigantesco açougue, prédio em ruínas ainda hoje existente. Em frente a este prédio, no passado, formava-se longa fila desde a madrugada, principalmente de meninos que, munidos com seus "ganchos" (estruturas de ferro em forma de letra jota) esperavam para levar a carne para casa. Não se usava dinheiro, pois a cooperativa fornecia, no início de cada mês, uma série de "vales", fichas de papelão azul que correspondiam a um certo valor em dinheiro, de acordo com o ordenado do ferroviário. Os meninos entregavam aqueles "vales" para o açougueiro (eram mais de 10 açougueiros atendendo simultaneamente), em troca dos "pesos" solicitados. Chamava-se de "peso" ao tipo de carne solicitada, isto é, filé, costela minga, coxão de fora, coxão de dentro, etc...Tinha de haver cuidados no transporte daquele gancho com carne até à casa. Os cachorros iam atrás, pulando, para roubar a carne. Muito guri tomou surras homéricas por ter deixado o gancho com carne no chão enquanto jogava bolita (bola de gude). E a cachorrada levava a carne do penitente. Ou a carne era roubada por outros guris ! Às vezes, mentiam que não tinha chegado a carne. E trocavam os "vales" por outro tipo de compra nos bares e lojas da cidade. Os "vales" tinham inteira credibilidade na comunidade santa-mariense e circulavam livremente no comércio, como se dinheiro fosse. Aliás, os próprios adultos - quando ficavam com pouco dinheiro no fim do mês e tinham "vales" sobrando - trocavam-nos por dinheiro, numa transação chamada popularmente de "touro". Era comum o ferroviário dizer : "Me apertei de dinheiro, vou ter de fazer um touro." Não consegui descobrir até hoje o porquê do uso da expressão "touro". Os sapatos todos que usei, até à idade de 15 anos ou 16 anos, foram presentes dos meus avós maternos, vó Olina e vô Fredolino. Sapatos comprados na sapataria da Cooperativa dos Ferroviários. O primeiro relógio que ganhei na vida, de enorme mostrador e pulseira de couro brilhante, foi comprado na relojoaria da Cooperativa : era um típico "cebolão" ! Na época, chamava-se "cebolão" ao relógio que possuía mostrador muito grande. A ferrovia, a cooperativa e o MANECO marcaram para sempre minha vida. E creio que a vida de milhares de conterrâneos. Por isso, quando vejo os prédios abandonados da outrora pujante cooperativa, meu coração se aperta numa sístole de tristeza. E tenho de me controlar para não chorar em plena via pública. Mas eis que leio no jornal e escuto na TV DIÁRIO que o prédio Associação dos Ferroviários, clube social onde muito dancei e assisti partidas de bolão, vai ser totalmente restaurado. E meu coração se distende e bate feliz, numa diástole de alegria. Afinal, nem tudo está perdido !