terça-feira, 18 de junho de 2019

AINDA A KISS... - James Pizarro (DIÁRIO, pág.4, edição de 18.06.2019)



Carlinhos Costa Beber, grande amigo, empresário, colega de docência na UFSM e colega de rádio nos debates da CDN -Debate e depois Antena 1, me encaminhou um texto (datado de 12 de fevereiro de 2013), de autoria do médico paranaense Márcio Luiz Nogarolli, médico socorrista do SAMU do Paraná. Como sempre faço, guardei nos meus  arquivos.

Este médico esteve em Santa Maria como voluntário trabalhando no SAMU da cidade e na UPA-24horas por ocasião da tragédia ocorrida na Boate Kiss, que vitimou 242 jovens e comoveu o mundo inteiro.

O texto deste médico paranaense que honra a sua profissão é comovedor. E por isso, reproduzo o mesmo abaixo.

SANTA MARIA -  MISSÃO CUMPRIDA !

Fomos dar uma ajuda profissional, voltamos com o coração repleto de gente. 
Fomos para tentar minimizar a dor. Vocês nos maximizaram humanos.
O motorista de Taxi de Porto Alegre se recusou receber o preço da corrida
só porque soube que estávamos indo para sua cidade.
E disse que se ofenderia se insistíssemos em pagar.
Sentei em uma escada para tomar fôlego e a voluntária veio perguntar se eu precisava de ajuda.
Ela tinha uns 16 anos de idade. 
A moça da limpeza achou uma medalha de algum santo. Uma jóia de 18 quilates.
Passou mais de hora perguntando um a um se não lhes pertencia.
Depois deixou o ramal do chefe onde a medalha estaria guardada.
Mas não foram essas as atitudes que mais me surpreenderam.
O que mais me tocou é que vocês de Santa Maria transformaram substantivo em verbo.
Eu e meus amigos do Paraná vimos milhares de placas, adesivos, lacres de porta e fitas negras com a palavra “LUTO”.
Por vários dias eu achei que vocês estavam se referindo ao substantivo:
Conjunto de reações a uma perda, geralmente pela morte de alguém.
Hoje entendi.
No meio de tanta dor e diante da necessidade de não parar, “LUTO” em Santa Maria (RS) não é substantivo. 
É verbo. EU LUTO!
Luto contra a dor, pra não parar, 
luto contra o injusto para não repetir,
luto pelo menor para ninguém perder e
luto contra a morte para o meu irmão viver.
E é por isso tudo que eu quero que saibam:
quando precisarem da gente para conjugar verbos, aí na sua terra, podem nos chamar.
Vocês já tem o número!

sábado, 8 de junho de 2019

608 HORAS PARA PENSAR - James Pizarro (8.junho.2015)

Fiquei 17 dias internado...17 dias x 24 horas = 608 horas. Medidas de sinais vitais a cada 4 horas. Taxas. Soros. Antibióticos potentes. Coleta de material para exames. Várias refeições e lanches. Óleo da canola na perna com erisipela. Curativo no cateter da subclávia. Insônia. Programas de rádio. TV. Piedosas visitas do padre. Consoladoras e simpáticas conversas com os paramédicos. Tempo que não passa. Pensamentos fervendo a mil. Visitas inesperadas de pessoas surpreendentes. Visitas prometidas de pessoas queridas e que não se concretizaram. Visitas de pessoas desconhecidas e que emocionaram um velho coração. Dramas humanos pungentes de doentes de quartos vizinhos. A solidariedade pela dor. Passeios de mãos dadas pelos corredores com jovens fisioterapeutas e seus exercícios aeróbicos nas janelas. Macas que cruzam com cadáveres cobertos com lençóis. Cadeiras de rodas com doentes baixando e outros dando alta. Pessoas abraçadas chorando um óbito. Outras sorrindo comemorando o nascimento de um neto. Eis a rotina de um grande hospital. Não é um local só de tristezas. E de Morte. É um local de coisas alegres. Renascimentos. De brindes à Vida. Nunca fiquei tão convicto na minha vida de que a coisa mais importante é a SAÚDE !!! Vou mover céus e terras, de hoje em diante, para investir na melhor qualidade de minha saúde (que já é muito boa). Mas que - por idiotice - não vinha lhe dando o devido valor.

segunda-feira, 3 de junho de 2019

DOIS DESTINOS - JAMES PIZARRO (crônica no DIÁRIO, Santa Maria, pág.4, edição de 4.6.2019)


Era um menino bonito. Cheio de  vida. Simpático.

Corria alegremente pelo pátio do grupo escolar. Mais tarde era o centro das atenções no pátio do colégio estadual. Para o qual galhardamente  fora aprovado no difícil exame de admissão. Estou falando sobre a década de 50 na pacata Santa Maria, RS.

No entanto, o adolescente tinha um certo desvio comportamental. Gostava de abusar com os colegas de famílias mais pobres. Os que não usavam roupas de grife. E muito menos frequentavam os salões do Comercial. As reuniões dançantes do Caixeiral.

E fazia isso acintosamente. Jogando no ridículo os baixinhos. Os gagos. Os que tinham deficiência visual. Os que usavam óculos de aros grossos. A quem ele chamava de "quatro-olho".

Tinha predileção por tirar sarro - "inticar" se dizia naquela época - com um aluno tímido, calado, de boca pequena. A quem ele apelidou de "boquinha-de-chupar-ovo".

Passaram-se mais de três décadas.

E cada aluno tomou seu rumo. Foi trilhar seu destino.

Por estes estranhos desígnios, o galã, grande gozador de outrora e de futuro brilhante, virou ascensorista.

E o "boquinha-de-chupar-ovo" passou a subir pelo elevador onde seu outrora algoz trabalhava. Porque tinha consultório naquele prédio.

Um dia o encontrou deitado no elevador, bêbado, vomitado e urinado.

Foi aposentado por alcoolismo o outrora gozador.

Abandonado pela mulher, meses depois deu um tiro no ouvido.

Enquanto o outro, tímido e pobre garoto de outrora, continua dar suas consultas.

E na hora de folga come torrada com ovo no bar do prédio.

Deixando cair alguns respingos de gema no avental imaculado.

Com sua pequena boca de chupar ovo.