terça-feira, 18 de maio de 2021
SIM, EU CONFESSO COM ORGULHO : JÀ FUI UM SAPO ! - JAMES PIZARRO (DIÁRIO, 18.5.2021)
Nas datas importantes - principalmente nas datas cívicas - aconteciam no Grupo Escolar João Belém as chamadas "audições". O que era isso ? Todo o corpo docente e discente era reunido no salão de festas da escola. E havia apresentação de números artísticos : danças, corais, declamação de poesias, números musicais, mágicas, bandas, etc... Tudo isso era precedido pela fala do locutor. Que lia uma sinopse do número que ía ser apresentado.
Devido ao desembaraço, desenvoltura ou "cara-de-pau" - seja lá que nome tenha isso - sempre fui escolhido para ser o locutor das "audições". O que me conferia um certo "status" com os professores. Simpatia com as meninas. E inveja dos colegas. Dou-me conta, agora, do óbvio : a influência que tais experiências da meninice podem ter na formação da nossa personalidade. E até nas nossas escolhas profissionais de adulto.
Entre meus 45 e 50 anos fui radioator de historinhas infantis levadas ao ar pelo programa infantil apresentado pela radialista Maria Helena Martins : Programa "Era Uma Vez..." O programa ía ao ar todos os domingos, às 18:00h, pela Rádio Universidade de Santa Maria. A novela, apresentada em capítulos dominicais, chamava-se "Histórias do Sapinho Hortêncio". Eram escritas por João Teixeira Porto, militar reformado, funcionário da UFSM e ator amador da Escola de Teatro "Leopoldo Froes".
Fui sarcasticamente criticado por alguns poucos colegas de docência da UFSM pois, para eles, um mestre universitário andar fazendo papel de um sapo em novelas de rádio "não se coadunava com a importância da cátedra". Nunca dei importância para as críticas e gozações desses sabichões. Um deles, chegou mesmo a dizer que eu só poderia fazer papel de sapo, numa clara alusão à minha obesidade. Muitas palestras fiz nas escolas da cidade para alunos do jardim da infância e do pré-primário. Mas fi-las, não como Prof. Pizarro, mas como Sapinho Hortêncio, este sim conhecido da piazada.
Esta atividade como Sapinho Hortêncio sempre me foi muito prazerosa, porque ele foi importante veículo de educação ecológica para a infância da minha cidade. Na raiz dessa minha atividade não estará, lá bem no fundo, a saudosa professora alfabetizadora Luiza Leitão com as "Histórias do Coelhinho Joca" ? E meus programas de rádio ecológico pela Rádio Universidade ? E meus comentários diários na Rádio Imembui, nos programas do Vicente Paulo Bisogno e Pedro Feire Junior ? E meus voluntariosos pronunciamentos na Câmara de Vereadores quando lá estive de 1989 a 1992 ? E as dezenas de conferências em mais de 200 cidades gaúchas ao longo de quase 40 anos ? E as 10 horas de aula diárias nos cursinhos pré-vestibulares e na UFSM ? Na raíz de todas essas atividades ligadas ao uso público da palavra, da oratória como meio de vida, bem lá no cerne dessas atividades de adulto...não estará a figura franzina daquele meninote que era o locutor das "audições" do Grupo Escolar João Belém ?
Que mistério ! Que estranho fermento a Vida e o Destino semeiam na sensibilidade da gente! E ao longo do tempo aquilo vai se metamorfoseando em pão. Amassado com o sangue da vocação. O suor da transpiração. E a lágrima da inspiração.
Que mistério ! A ninguém é lícito deixar de colaborar na construção do mundo. Seja pescando crustáceos e peixes na orla marítima, para alimentar estômagos famintos. Seja pescando almas solitárias, melancólicas, com a isca fascinante da palavra. Não para dar-lhes pão, feito de trigo ou centeio. Mas o pão divino do amor e da fraternidade. Disfarçado pela oratória sensível do teatro. Do discurso. Do programa de rádio. Da aula bem dada. Todas elas, atividades movidas pela paixão.
Quem não entender a paixão e o milagre da palavra, o seu amplo poder, perdeu o dom do mistério.
quarta-feira, 5 de maio de 2021
EXISTE MUITA GENTE CHORANDO DE FOME - JAMES PIZARRO (DIÁRIO - edição de 4.5.2021)
Há cerca de uns 40 anos ou mais,
fui a Porto Alegre numa cabine
dupla de vagão-leito pelo cha-
mado “trem noturno” em compa-
nhia de um colega professor da UFSM.
Íamos para um congresso na capital re-
presentando os nossos departamentos.
Rapidamente pegamos no sono com
aquele “telec-telec”, ruído característi-
co do rodado do trem sobre os trilhos e
mais o embalo da composição.
Horas depois, nos acordamos e o
trem estava parado. Imaginamos que
estivesse parado numa estação para
pegar novos passageiros ou desembar-
car outros. Mas a como a demora estava
muito inquietante e se ouviam rumores
nos corredores do vagão, abrimos a
porta para saciar a curiosidade. E fica-
mos sabendo da terrível notícia através
do “chefe de trem” : alguns quilômetros
adiante um trem havia descarrilado
e nós estávamos sem saber que horas
chegar a Porto Alegre. Com o trem pa-
rado num lugar ermo, presos no meio
do campo.
Imediatamente, convidei meu com-
panheiro de viagem para ir ao carro-
-restaurante tomar café, comer um bife
com dois ovos, tomar um suco para
enfrentar a demora pois a equipe de so-
corro para desobstruir a composição
acidentada teria de vir de Porto Alegre.
Quando chegamos ao carro-restauran-
te constamos o óbvio: todos tiveram
a mesma ideia. E não havia para nós
nenhuma uma desgraçada fatia de pão
torrado ou uma minguada bolacha-
-maria.
Fomos chegar a Porto Alegre às 15
horas. Cansados. Suados. Quase des-
maiando de fome. Senti na própria
carne as sensações fisiológicas da fome.
Passei a estudar e a ler tudo sobre a
fome. Li toda a obra do Josué de Castro.
Passei a falar em aula sobre a geopolíti-
ca da fome. A Geografia da Fome. A Bio-
logia Social. A fome endêmica. Sobre as
ideias de Malthus.
Resolvi escrever a respeito desse
episódio do trem ocorrido comigo
porque fico com o coração partido
quando vejo na TV as entrevistas das
famílias que não têm o que comer. São
milhões de brasileiros que, pelas mais
diversas razões – pandemia, desem-
prego, políticas sociais, desigualdade,
etc – estão com suas geladeiras e ar-
mários vazios.
Não tenho posses, nem cargo, nem
poder. Tenho apenas sensibilidade. E já
há bastante tempo eu e minha mulher
temos uma pessoa carente que fica nas
ruas centrais da cidade para a qual de-
dicamos atenção na doação de roupas,
medicamentos, lanches, amizade, acon-
selhamento.
E, de uns meses para cá, compramos
embalagens descartáveis no supermer-
cado, com divisórias, tipo “bandejão”,
onde colocamos arroz, feijão, carne, sa-
lada, uma fruta – enfim – a mesma co-
mida nossa – e diariamente depois do
meio-dia ficamos ao lado do contêiner
da Venâncio Aires, em frente à Galeria
do Comércio, onde sempre tem alguém
esperando aquela marmita. Uma só por
dia, mas é o que podemos dar. Comida
boa, higienizada, com uma garrafinha
plástica de água.
Por favor, não quero bancar o cari-
doso, o generoso, o salvador, o bonzi-
nho. Minha mulher nem queria que
eu escrevesse essa crônica. Mas eu me
arrisco à crítica porque eu sou teimo-
so. Resolvi escrever para convocar o
leitor a fazer algo semelhante. Porque
em quase todas as casas sobra comida.
Que acaba indo para o lixo. Enquanto
existe gente passando fome. E fome dói.
Machuca. Deprime. Deixa humilhado.
Vamos ajudar ?
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