Foto: acervo do Arquivo Histórico de Santa MariaO prédio do Centro de Saúde, onde trabalhava Vicente de Oliveira, teve uma das paredes destruídas por conta de um ciclone que atingiu Santa Maria em 1937. O local passou a ser ocupado pelo Estado durante o período da Segunda Guerra Mundial e foi devolvido à Associação Italiana de Santa Maria em meados dos anos 1990
Na Rua do Acampamento, em Santa Maria, funcionava o Centro de Saúde número 7. Era um órgão da Secretaria de Saúde do Estado. Nas décadas de 1950 e 1960, ali se faziam vacinações, consultas e exames de raio-x. Além disso, latas de leite em pó eram distribuídas no local.
Anos depois, o Centro de Saúde foi para a definitiva sede, à Rua Floriano Peixoto, logo abaixo do Hospital de Caridade Astrogildo de Azevedo. Assim, o antigo prédio da Rua do Acampamento foi devolvido à proprietária original, a Sociedade Italiana de Santa Maria.
Frequentei muito a antiga sede e, como meu pai trabalhou lá durante décadas, conheci todos os funcionários do Centro, entre eles, o sisudo e magérrimo Tolentino, responsável pela portaria, e a esposa dele, dona Maria, que atuava no aparelho de raio-x. O pai era o enfermeiro responsável pelas vacinações. Vamos aos outros:
O doutor Izidoro Lima Garcia era o chefe, o doutor Rubem Valeriano Fabrício - conhecido como "Barão da Bossoroca" - era o médico-dermatologista e responsável pelo setor de doenças sexualmente transmissíveis (na época, chamadas de doenças venéreas). Julinha cuidava da limpeza geral do posto de saúde e também por preparar o cafezinho diário. Julia era famosa na cidade por ser médium espírita e receber grande número de consulentes na modesta casa, situada próxima ao Hotel Hamburgo, na Rua Sete de Setembro, logo após os trilhos da Viação Férrea.
No subsolo do Centro de Saúde, trabalhava o personagem desta minha reminiscência de hoje: Vicente de Oliveira, enorme, alto, gordo, conhecido, em Santa Maria, como Vicentão. Casado com dona Tolola, ele morava na Rua do Acampamento, nas imediações da casa do teatrólogo Edmundo Cardoso, de quem era grande amigo. Vicentão trabalhava no setor de fiscalização de carnes e outros produtos alimentares, com o médico-veterinário Armando Vallandro que, anos depois, foi reitor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Foto: acervo da Casa de Memória Edmundo CardosoVicente de Oliveira era frequentador da Livraria do Globo. Em Santa Maria, recebeu o apelido de Vicentão

Vicentão amava livros. Ele era frequentador diário da Livraria do Globo, onde tinha crediário.
Os gerentes Cavalheiro e Vidal Castilhos Dânia (que foi prefeito de Santa Maria, pelo PTB) eram amicíssimos do Vicentão, assim como os intelectuais da época que se reuniam na livraria, entre eles, Amaury Lenz, Romeu Beltrão, Prado Veppo, Lamartine Souza, Edmundo Cardoso, Fernando do Ó, Eduardo Trevisan, Hygino Trevisan e tantos outros.
Vicentão comprava exemplares de todos os tipos, mas preferia títulos de paleontologia, arqueologia e história, além de ter verdadeiro fascínio por temas sobre o Egito. Ele tinha centenas de livros sobre os egípcios, múmias, pirâmides, faraós, sabia tudo sobre isso. Ele mesmo me dizia: "Sou um egiptólogo".
Faço este registro por uma razão: Vicentão foi quem me deu de presente de aniversário o primeiro livro que ganhei, que se chamava As aventuras de Tibicuera, de Érico Verissimo, pai do Luiz Fernando Verissimo. Encadernado e com capa vermelha, a obra contava a história do Brasil narrada por um índio de nome Tibicuera.
LITERATURA
Este presente foi determinante - além da influência do Vicentão, é claro - para que eu me apaixonasse definitivamente pelo hábito de ler. Em As aventuras de Tibicuera, o herói narra uma fabulosa viagem através do tempo, que começou em uma taba tupinambá, antes de 1500, e terminou em um arranha-céu de Copacabana, em 1942.
Sou apaixonado pela leitura até hoje. Estou sempre encomendando livros de sebos ou lojas da internet. Tenho duas filhas que escrevem artigos para jornais, universidades e blogs nacionais. Até hoje, dou literatura de presente para meus netos. Dou revistas e livros didáticos para os netos mais velhos, além de polígrafos de cursinhos para os netos vestibulandos, na esperança de que também adquiram o hábito pela leitura.
Vicentão foi um verdadeiro bibliófilo. Ele amava livros com uma paixão desenfreada. Serei eternamente grato a esse amigo por ter me iniciado neste fantástico mundo.
*O texto acima foi escrito por James Pizarro, professor universitário aposentado da UFSM, ecologista e memorialista