segunda-feira, 21 de outubro de 2019

O HOMEM-TRONCO - James Pizarro (crônica à pág. 4 do DIÁRIO, Santa Maria, edição de 22.10.2019)

Nunca soube seu nome. Sabia apenas que era pobre. Mendigo. Deficiente físico.
Ficava na esquina da Floriano Peixoto com a rua 24 horas. Coração de Santa Maria, RS.
Arrastava-se. Pernas viradas para trás. Braços partidos. Cabeça pequena. Chapéu velho.
Peito arqueado para a frente. Visível deformação nas costelas. Lembrava um lagarto.

Nunca soube seu nome. Sabia que era pobre. Várias vezes reparei em suas mãos.
Mãos grossas. Deformadas. Inchadas. Calejadas. Mãos de atrito com o asfalto quente.
Pois era com a palma das mãos que se apoiava no asfalto. Dava um impulso.
E numa coreografia macabra gingava o corpo para a frente.
Não era corpo. Era meio corpo. Era um homem-tronco.

Nunca soube seu nome. Sabia que era pobre. Mendigo.
Costumava observá-lo todo dia. Do terraço da sede antiga da Rádio Universidade. Prédio da Antiga Reitoria.
Ele era pontual. Quando o relógio marcava 16h00, ele partia. Atravessava a rua.
Mas ficava longo tempo com o meio corpo encostado na calçada.
E agarrava-se na lixeira presa ao poste. Para manter o equilíbrio.

Nunca soube seu nome. Sabia que era mendigo. Deficiente.
E que demorava  para atravessar a rua. Dependia  do fluxo de automóveis.
Ele era muito pequeno. Roupa escura. Não seria notado por motorista apressado.
Corria o risco diariamente de ser atropelado.
Ele que já tinha o corpo atropelado pela fatalidade embriológica.

Nunca soube seu nome. Sabia que era pobre. Mendigo.
Depois de atravessar a rua ficava quieto.
Encostado na parede do prédio da ex - Faculdade de Direito da UFSM. Na parada do ônibus.
Nunca vi ninguém ajudá-lo a atravessar a rua.
E também sem ajuda ele fazia a penosa subida no ônibus. Erguia os dois tocos de braços.
Agarrava-se como podia. E com formidável força erguia o meio corpo.
E se arrastava pelo corredor do ônibus.

Nunca soube seu nome. Sabia que era pobre. Deficiente.
Sempre ficava olhando o ônibus descer a Floriano Peixoto.
Levando no seu ventre de lata aquela criatura. Meia criatura.
Sacolejando no corredor aquele meio corpo. Carregando a féria do dia. Que servia de sustento.
Naquela tarde eu observava tudo. Escorado no beiral do terraço da Rádio Universidade.
O chuvisqueiro  havia parado. Um sol ainda tímido fazia buraco entre as nuvens.
As pombas da Antiga Reitoria iniciavam a revoada.
Pombas brancas. Normais. Inteiras. Asas abertas. Serenas.
Elas planavam. E pousavam do outro lado da rua. No prédio do Colégio Santa Maria.
Lá embaixo as pessoas passavam. Apressadas. Com pastas pretas.
Um senhora loira carregava um ramo de flores. O bilheteiro estendia seus bilhetes.
As pessoas passavam. Cumpriam seu destino de passar.

No outro dia o homem-tronco estaria de volta.
E na semana seguinte. E no outro mês. E no próximo ano.
E ficaria no mês lugar. Olhando as pernas normais. Os passantes apressados.

Um dia ele não voltou nunca mais.
E ninguém  notou a sua falta.
 

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

MEUS FRÁGEIS PENSIONISTAS, COMO ESTARÃO ? - James Pizarro (DIÁRIO, pág. 4, edição de 8.10.2019)


Toda manhã, antes das 6h00, acordo com os belos cantos dos pássaros que habitam as árvores do pátio da casa do saudoso do Dr. Mariano da Rocha. Levanto e fico à janela do terceiro andar da Galeria do Comércio ouvindo aquela doce sinfonia. Ao mesmo tempo em que começo a observar o vôo de centenas e centenas de garças – em grupos de 15 a 20 indivíduos – voando do oeste para leste da cidade. Fico com pena de não poder ajudar na  alimentação desses bichinhos.

A sacada do apartamento na praia de Canasvieiras, onde morei dez anos, era transformada num refeitório de pássaros três vezes por dia. A sacada tinha vista para árvores, prédio vizinho, rua, passantes e um grande pedaço de mar. Mas o que mais importava  na minha sacada é que ela era a mais popular entre os pássaros das redondezas. Eles sabiam que ali morava um amigo. Pois eu sempre deixava à disposição deles ração feita de milho picado, arroz picado e farelo de trigo. Que eu comprava em sacos de cinco e, depois, de dez quilos.

A princípio, apareciam apenas pardais. Nos primeiros dias, quatro ou cinco. Depois, cheguei a fotografar dezoito. Uns voavam e levavam no bico grãos para ninhos nos beirais da pousada que ficava ao lado do nosso prédio. Muitos filhotes também apareciam. Além dos pardais, me visitavam rolinhas, periquitos coloridos, bicos-de-lacre. Por duas vezes apareceram sabiás. E só uma vez apareceu uma pomba solitária.

Evitava alimentar pássaros com grãos de alpiste, girassol ou painço porque muitos deles - sobretudo as rolinhas e os pombos - não conseguem descascar as sementes, o que causa inchaço em seus papos lhes causando a morte. Duas vezes por semana higienizava o muro da sacada, removendo os restos de grãos e os excrementos conservando o beiral sempre limpo.

Colocava a ração três vezes por dia : às seis da manhã, quando levantava, depois do almoço e à tardinha. Os pássaros são pontuais e os encontrava em alegre cantoria nestes três horários. Viviam em liberdade e tinham garantida uma fonte diária de nutrição, enquanto eu ganhava o convívio e o canto. Aprendi a observá-los em silêncio enquanto tomava meu chimarrão, sem me movimentar muito. Observava o comportamento deles e batia dezenas de fotos. Já conseguia algumas vezes levantar e ficar escorado na grade da sacada sem que eles voassem embora. Já estavam se acostumando com minha presença e permitindo uma aproximação cada vez maior.

Muitos amigos ficavam surpresos quando lhes narrava estas minhas experiências. Outros escutavam e faziam cara de desdém. Houve até alguém que me disse : "Estás ficando velho, Pizarro". Confesso que não entendi a relação. Nem de longe suspeitavam - com suas almas sem sensibilidade - que minha qualidade de vida aumentava com o convívio e a contemplação dos pássaros. Eles nem suspeitam que estes pássaros - além do canto e do colorido - contribuem para o equilíbrio ecológico, quando se alimentam de insetos e pragas que atacam as plantas. Muitos deles funcionam como agentes polinizadores das flores, aumentando a produção dos frutos. E grande número de pássaros - ao levarem sementes de um lugar para outro - contribuem com a disseminação das plantas fazendo o papel de semeadores naturais. Estava pensando em outros tipos de rações e uns dois bebedouros na minha sacada, o que faria que aparecessem outras espécies, como bem-te-vis, coleirinhas e beija-flores. Mas decidimos voltar para Santa Maria.

Quando o caminhão de mudança saiu da praia eu pude reparar mais de cinquenta passarinhos pousados no beiral da sacada. Esperando pela comida. Que jamais viria. Levo este pecado e este medo comigo. Deles pensarem que os traí. Que os abandonei. Isso me aperta o coração até hoje, inexplicavelmente.

Será que algum deles se lembra de mim ?

CÂMARA DE VEREADORES : UMA CAIXA DE RESSONÂNCIA - James Pizarro (DIÁRIO, Caderno MIX, edição de 5.10.2019)

A imagem pode conter: 6 pessoas