segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

E JESUS CHOROU... - JAMES PIZARRO (DIÁRIO - 20.12.2022)

No capítulo 11 de João, encontramos o versículo 35, um dos mais curtos de toda a Bíblia: “E Jesus chorou”. Não vou pontuar aqui o momento histórico que suscitou este versículo. Mas, contextualizando para os dias de hoje e num esforço de síntese, poderia resumir dizendo que Jesus chorou - e chora até hoje - por compaixão. Jesus chorou quando, a cada dois ou três dias, uma pessoa foi assassinada nas ruas de Santa Maria com balaços na cara pelos motivos mais torpes e vis. Jesus chorou quando crianças foram abusadas sexualmente dentro de suas próprias casas ou em suas escolas, por pessoas que teoricamente deveriam protegê-las. Jesus chorou quando mulheres fragilizadas e doentes foram abusadas por religiosos em templos onde ingenuamente foram em busca de socorro. Jesus chorou quando uma jovem mulher grávida foi, em plena luz do dia, estuprada no Bairro do Rosário sem que ninguém visse ou pudesse lhe auxiliar. Jesus chorou pelo número de doentes que não puderam ter o atendimento merecido porque aparelhos estavam quebrados e nem leitos suficientes existiam, tendo de sofrer o martírio e a humilhação da espera nas macas dos corredores dos hospitais. Jesus chorou diante de funcionários desesperados que tiveram seus salários há anos sem reajuste, suas contas atrasadas, seu crédito cortado, sua comida racionada e o pior – muitos deles chegaram ao suicídio. Jesus chorou diante do aumento das doenças sexualmente transmissíveis, algumas tidas como controladas, devido ao comportamento descuidado e a falta de respeito das pessoas para com seu próprio corpo. Jesus chorou pelos animais abandonados, torturados, mortos à míngua, explorados, envenenados, agredidos sem que nenhuma autoridade constituída tenha deles a mínima piedade. J Jesus chorou pelos trilhões de reais roubados por alguns políticos que só pensam em amealhar dinheiro para si e só têm olhos para seus próprios umbigos. Jesus chorou pelas viúvas que ganham pensões ridículas, aposentados doentes que são submetidos a perícias numerosas para seguir ganhando tostões, doentes que precisam de remédios pagos pelo governo e estes sempre faltam nas farmácias oficiais. Sim, Jesus chorou muito em 2022. Talvez esteja quase “desidratado” devido à insanidade dos homens. E à insensibilidade dos políticos e autoridades. Jesus chorou pelos hospitais não concluídos, pela falta de leitos, pelos doentes amontoados em macas, pelas mães implorando por creches, pelos mortos em acidentes automobilísticos em estradas cheias de buracos, pela falta de remédios de uso continuado para pacientes carente, pelas crianças atingidas por balas perdidas. . Jesus chorou pela fúria comercial e mercantilista em que se transformou a data do seu nascimento. Pelos que só pensam em trocar presentes. E se empanturrar de comida e bebida em demasia. Vamos cair de joelhos, fazer um “mea culpa” e rezar por Jesus neste Natal ?

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

HELGA, UMA CADELA UNIVERSITÁRIA - James Pizarro (DIÁRIO, 13.12.2022)

Eu bem sei que, além de ser um tanto (p)bizarro, virei um tipo maldito no oficialismo da minha cidade natal quando era mais jovem. “Metamorfose ambulante” no conceito do Raul Seixas, virei um tipo maldito, satanizado na cidade. 90 % por causa do preconceito da cidade (que nunca aprendeu a conviver com as diferenças). E 10 % por causa das ,mancadas terríveis que cometi (e das quais já fiz confissão pública. Fui julgado. Crucificado. E ressuscitei. Para desânimo e desencanto dos meus desafetos). Houve uma época que a UFSM presenteava e homenageava numa janta os funcionários e professores que completavam 10, 20, 30 anos de serviço com folha imaculada, sem faltas e advertências. Acho que ainda existe esta premiação. Quando completei 20 anos de serviço fui o único que “esqueceram” de convidar para receber a tal medalhinha de latão, que se compra ali no camelódromo por 1,99 a dúzia. À época, escrevi para a reitoria – por oficio protocolado – que estranhava o esquecimento. E argumentei que poderia ter levado meu lanche de casa na jantinha oferecida se tinham medo da minha gula de obeso. E do custo gastronômico que eu daria. O que certamente afetaria os cofres da instituição. Na semana seguinte, ao entrar na minha sala na Rádio Universidade, encontrei por baixo da porta um envelope contendo a medalhinha de latão com uma espécie de alfinete. Esses troços que se enfiam na lapela do casaco. E nada tinha por escrito, apenas a latinha. Como nunca usei casaco, sou um homem sem lapelas. Naquela distante época, eu tinha três cadela da raça cocker-spaniel. Chamadas Helga, Madonna e Hanna. Chegando em casa, enfiei a medalha na casa da Helga, minha cadela preferida e a mais velha do trio. Porque achei que o carinho e a dedicação que ela me dava mereciam um agradecimento. E afinal, numa cidade com várias universidades, ela não era uma cadela comum. Era uma cadela universitária e, agora, possuidora de um ”merdalhão”.

terça-feira, 29 de novembro de 2022

A FOME DÓI, MACHUCA, DEPRIME, HUMILHA ! - James Pizarro (DIÁRIO = 29.11.2022)

Há cerca de uns 40 anos ou mais, fui a Porto Alegre numa cabine dupla de vagão-leito pelo chamado “trem noturno” em companhia de um colega professor da UFSM. Íamos para um congresso na capital representando os nossos departamentos. Rapidamente pegamos no sono com aquele “telec-telec”, ruído característico do rodado do trem sobre os trilhos e mais o embalo da composição. Horas depois, nos acordamos e o trem estava parado. Imaginamos que estivesse parado numa estação para pegar novos passageiros ou desembarcar outros. Mas a como a demora estava muito inquietante e se ouviam rumores nos corredores do vagão, abrimos a porta para saciar a curiosidade. E ficamos sabendo da terrível notícia através do “chefe de trem” : alguns quilômetros adiante um trem havia descarrilado e nós estávamos sem saber que horas chegar a Porto Alegre. Com o trem parado num lugar ermo, presos no meio do campo. Imediatamente, convidei meu companheiro de viagem para ir ao carro restaurante tomar café, comer um bife com dois ovos, tomar um suco para enfrentar a demora pois a equipe de socorro para desobstruir a composição acidentada teria de vir de Porto Alegre. Quando chegamos ao carro-restaurante constamos o óbvio: todos tiveram a mesma ideia. E não havia para nós nenhuma uma desgraçada fatia de pão torrado ou uma minguada bolacha-maria. Fomos chegar a Porto Alegre às 15 horas. Cansados. Suados. Quase desmaiando de fome. Senti na própria carne as sensações fisiológicas da fome. Passei a estudar e a ler tudo sobre a fome. Li toda a obra do Josué de Castro. Passei a falar em aula sobre a Geopolítica da Fome. A Geografia da Fome. A Biologia Social. A fome endêmica. Sobre as ideias de Malthus. Resolvi escrever a respeito desse episódio do trem ocorrido comigo porque fico com o coração partido quando vejo na TV as entrevistas das famílias que não têm o que comer. São milhões de brasileiros que, pelas mais diversas razões – pandemia, desem- prego, políticas sociais, desigualdade, etc – estão com suas geladeiras e armários vazios. Não tenho posses, nem cargo, nem poder. Tenho apenas sensibilidade. E já há bastante tempo eu e minha mulher temos uma pessoa carente que fica nas ruas centrais da cidade para a qual dedicamos atenção na doação de roupas, medicamentos, lanches, amizade, aconselhamento. E, de uns meses para cá, compramos embalagens descartáveis no supermercado, com divisórias, tipo “bandejão”, onde colocamos arroz, feijão, carne, salada, uma fruta – enfim – a mesma comida nossa – e diariamente depois do meio-dia ficamos ao lado do contêiner da Venâncio Aires, em frente à Galeria do Comércio, onde sempre tem alguém esperando aquela marmita. Uma só por dia, mas é o que podemos dar. Comida boa, higienizada, com uma garrafinha plástica de água. Por favor, não quero bancar o caridoso, o generoso, o salvador, o bonzinho. Minha mulher nem queria que eu escrevesse essa crônica. Mas eu me arrisco à crítica porque eu sou teimoso. Resolvi escrever para convocar o leitor a fazer algo semelhante. Porque em quase todas as casas sobra comida. Que acaba indo para o lixo. Enquanto existe gente passando fome. E fome dói. Machuca. Deprime. Deixa humilhado. Vamos ajudar ?

terça-feira, 1 de novembro de 2022

UM ANJO NA ROMARIA DE N. S. MEDIANEIRA - James Pizarro (DIÁRIO - 1.11.2022)

Compreendo quem tem insônia. Relevo quem tem sono agitado. Quem é atormentado por pesadelos. Tenho imensa piedade por amigos que têm distúrbios ligados ao sono. À dificuldade de dormir. Porque dos meus nove aos treze anos comi o pão que o diabo amassou por causa desses problemas. Porque sofria de insônia. Noites mal dormidas. Temores noturnos. Quando o sol ia se pondo e a noite se avizinhava, eu já sentia verdadeiro pavor. Meu pai me levou a médicos. Que me perguntavam coisas. Ouvi pediatras dizerem para meu pai que eram distúrbios da pré-adolescência. Que eu era sensível. Um deles disse que eu era "precoce". Lembro como se fosse hoje que eu fiquei estarrecido quando o médico disse isso. Porque eu não conhecia a palavra “precoce”. Na minha mente agitada imaginei que fosse um tumor, uma moléstia grave. Fiquei tranquilo quando, ao chegar em casa, consultei o único dicionário que existia na época, de autoria do Fernando Fernandes. E fiquei sabendo o que queria dizer "precoce". A Medicina não resolveu meus problemas noturnos. Eu continuava a ouvir ruídos. Ouvia gente cochichando. E via coisas. Principalmente fogueiras. Nunca vi pessoas e nem animais. Tudo que eu via era relacionado com fogo. Tinha vergonha e muito medo de contar para os outros. Principalmente sobre as fogueiras. Porque temia que me chamassem de louco. Como a Medicina não resolveu meu problema, a família apelou para outros recursos. Como fazem as famílias até hoje diante de casos insolúveis. Minha mãe me levou então a centros espíritas. A sessões de umbanda. Tomei passes de descarga. Sessões de descarrego. E toda uma terminologia que eu não entendia direito. Numa sessão dessas o médium receitou "Kola Fosfatada Soel", um medicamento feito de ervas muito popular naqueles tempos. E disse que eu teria de comer muita alface na janta. Também não adiantou nada. Até que minha amada e saudosa avó Olina me levou na romaria de Nossa Senhora Medianeira. A primeira romaria das dezenas que eu iria comparecer depois durante toda minha vida. Lembro que fui todo de branco, com enormes asas de anjo. Carregando uma vela de quase um metro de altura. Alguns amigos meus me esperaram na rua do Acampamento. E quando eu passei um deles gritou : “Tu é um demônio, tu não é anjo”. Porque a minha fama de autor de travessuras na Silva Jardim era grande. Minha avó me dizia durante todo o trajeto da romaria que eu rezasse com fé. Que aquelas vozes, aquelas visões de fogo iriam desaparecer. E que eu jamais iria sentir medo da noite. Quando a santinha passou eu olhei para ela e fiquei em estado de graça. Estava tomado pela fé da minha vó Olina. E ela me disse : “Olha para ela...pede agora, com todas as tuas forças.” E eu, chorando, pedi. Com todas as minhas forças. Como minha vó tinha mandado. As vozes realmente sumiram. Nunca mais tive medo. E quando me perguntavam se eu ainda enxergava fogueiras, labaredas, eu mentia. Porque eu continuei a ver aquele fogo durante algum tempo. Eu não queria decepcionar minha avó. E muito menos decepcionar a santinha. Até que um dia – como num passe de mágica - nunca mais enxerguei nada. E até hoje durmo que nem uma pedra.

terça-feira, 18 de outubro de 2022

AINDA SOBRE OS GRANDES MONUMENTOS - JAMES PIZARRO (DIÁRIO - 18.10.2022)

Num lance fulgurante de inteligência, visão turística, fé religiosa e poderosa união comunitária, os habitantes da pequena e simpática cidade gaúcha de Encantado deram uma lição de como fazer as coisas. E Encantado passou nos últimos tempos a ocupar páginas e páginas de jornais e revistas em todo o país, além de ser motivo de grandes reportagens nos principais programas das grandes redes de TV do Brasil. Tudo porque a comunidade se uniu e resolveu construir o monumento denominado Cristo Protetor, uma obra de 43 metros de altura, a terceira do mundo em altura. Relembro trecho de crônica que publiquei no DIÁRIO na edição de 6 de novembro de 2018, à página 4 : “ Em 2007, a Secretaria Municipal de Turismo de Santa Maria – leia-se Paulinho Ceccin – pensou em construir um monumento em homenagem à N. S. Medianeira, padroeira do Rio Grande do Sul (muita gente pensa que é São Pedro). O monumento seria construído no Morro do Cechella e teria todos os equipamentos modernos em seu entorno, como vias de acesso, capela, lancheria, mirantes, museu para contar a história da santa, restaurantes, vendas de lembranças e postais, policiamento. Seria uma obra gigantesca que atrairia milhares de turistas brasileiros e estrangeiros, pois seria o maior monumento brasileiro do gênero, planejada por artistas e técnicos santa-marienses, sob a direção do J. Amoretti. A prefeitura municipal não gastaria nada, pois todo dinheiro viria de doações, captação de recursos particulares e verbas do Ministério do Turismo. Na edição de 28/29 de julho de 2007 (sábado/domingo) de A Razão, publiquei e assinei matéria de página inteira sob o título “Até a Medianeira é repudiada aqui !? “. Fi-lo porque tão logo foi lançada a ideia pela construção do monumento setores obscurantistas iniciaram feroz campanha contra a iniciativa do então secretário Paulinho Ceccin. Essas pessoas nem se deram conta da vocação que Santa Maria tem para o turismo religioso. E ficaram contra a ideia mas não fizeram proposta alternativa em seu lugar. Nunca falei sobre isso com o Paulinho Ceccin. Nem com dom Hélio, bispo à época. Nem com ninguém. E ninguém me pediu para escrever a favor à época porque nunca aceitei escrever coisas por encomenda. Nem tão pouco apoiei a iniciativa por ser católico apostólico romano, praticante e convicto. Quisessem os umbandistas construir monumento semelhante em homenagem à Iemanjá, estaria eu a favor. Quisessem os meus amigos espíritas homenagear Allan Kardec com um monumento de igual tamanho, contariam com meu apoio. Sou de profunda formação ecumênica. E sempre fui A FAVOR DO DESENVOLVIMENTO E DO TURISMO DA MINHA CIDADE NATAL !!! Tivesse o projeto sido aprovado e construído teríamos hoje no morro do Cechella o maior monumento religioso do Brasil iluminando a noite santa-mariense: a santinha em sua posição original, de braços abertos, feericamente iluminada, maternal e generosamente acolhendo em seu seio todos os santa-marienses e gaúchos. Além do turismo rendendo divisas para nosso município. Que Nossa Senhora Medianeira ilumine a cabeça burra dos muitos que teimam em lutar contra o progresso de nossa querida cidade natal.” Lembro sempre do que dizia em suas aulas meu saudoso amigo e professor de Botânica Sistemática, médico e historiador Romeu Beltrão : “Santa Maria tem caveira de burro enterrada!”

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

O PISO SALARIAL DA ENFERMAGEM - James Pizarro (DIÁRIO - 4.10.2022)

Tenho bem clara na minha memória a importância que a escola, os professores, os governantes, enfim - as autoridades em todos os escalões da República – tinham da necessidade imperiosa de cuidar com carinho da saúde do aluno ! No final da década de quarenta, início dos anos 50, lembro perfeitamente que numa certa época do ano estacionava em frente ao colégio um vistoso ônibus branco, com a cruz vermelha pintada e no seu interior tinha uma aparelhagem de raio-X. E todos os alunos faziam fila para fazer a sua abreugrafia, radiografia dos pulmões tirada por um método barato inventado por um médico brasileiro chamado Manuel de Abreu para detectar, prevenir e tratar a tuberculose. Isso há 70 anos !!! No MANECO, por exemplo, para praticarmos ginástica ou qualquer tipo de esporte coletivo, o professor de Educação Física fazia a ficha de peso e altura, mais dados pessoais e encaminhava o aluno para os médicos da escola (lembro dos saudosos Paulo Lauda e Miguel Sevi Viero). Cada aluno tinha pressão medida, pulmões auscultados, ficha médica preenchida, finamente liberado. Se tivesse algum problema de saúde a família era chamada à escola para falar com o médico. Os professores orientavam os alunos sobre a necessidade de vacinação (catapora, varíola, paralisia infantil, etc...). E era comum a população encontrar pelas ruas e calçadas da cidade diariamente centenas de filas de pequeninos alunos de mãos dadas, cuidados por zelosas professoras, sendo conduzidos ao Centro de Saúde número 7, que funcionava – naquela época - à rua do Acampamento, onde hoje funciona a sede da Sociedade Italiana. Ali, responsável pela sala de vacina, esteve - durante mais de 40 anos – o enfermeiro Alfeu Pizarro, meu saudoso pai, que vacinou muitas gerações de santa-marienses. Os pais e professores procuravam espontaneamente a vacinação. Seria inimaginável – naqueles tempos – se pensar em movimento antivacinal ! Na rua Daudt, transversal da avenida Rio Branco, num terreno doado pelo farmacêutico e literato João Daudt de Oliveira, foi construído o Dispensário, órgão vinculado à Secretária da Saúde do RS, que tratava de ISTs (infecções sexualmente transmissíveis), naquela época chamadas de “venéreas”, além de outras doenças como hanseníase, etc...As profissionais do sexo eram lá atendidas e medicadas com todo respeito há mais de meio século. Ao rememorar este trabalho dos médicos, enfermeiros, auxiliares e paramédicos da minha infância e juventude, nestes recentes tempos duros de pandemia, quero registrar publicamente meu profundo agradecimento a este exército de branco que se encontra extenuado, tenso, com uma sobrecarga desumana de trabalho, arriscando-se diariamente por nós na linha de frente. A todos vocês, desejo que Deus lhes dê glória alta e compreensão entre os homens ! O piso salarial dos trabalhadores da Enfermagem é uma luta justa, fruto de muitos anos de batalha da classe. Foi uma luta ganha à custa de milhares de horas de discussões, lutas, passeatas, assembleias, viagens, convencimento de políticos. Na hora de colocar em prática a lei aprovada, a mesma é questionada nos tribunais da República, sob a alegação de que as instituições não têm condições de efetuar o pagamento do piso aprovado aos enfermeiros. E que certamente o Brasil iria quebrar por causa disso... Quanta insensibilidade, meu Deus !

terça-feira, 23 de agosto de 2022

A GARE - JAMES PIZARRO (DIÁRIO - 23.08.2022)

A minha ligação com a ferrovia vem do fato do meu avô Fredolino ter sido ferroviário. Era exímio carpinteiro, verdadeiro artista, cujo trabalho, dedicação, assiduidade e pontualidade lhe faziam gozar de enorme prestígio junto aos superiores. Trabalhou mais de 45 anos na ativa, sem nunca ter tirado licença, atestado médico, faltado ao serviço ou feito greve. A greve era um recurso muito usado pelos ferroviários naqueles tempos. Vô Fredolino trabalhava no chamado "recinto", que nada mais era do que o imenso espaço existente em frente à gare da Estação da Viação Férrea de Santa Maria. Ali existiam vários departamentos da ferrovia e meu avô exercia suas atividades no chamado "Posto de Visitas", onde se situava a carpintaria geral da "Rede". A Viação Férrea era conhecida em todo o território gaúcho simplesmente por "Rede". Quando os ferroviários entravam em greve, reuniam-se no campo gramado que existia atrás do Maneco, ao lado de um enorme depósito de combustível (chamado de "tonel"), construído para armazenamento de óleo para as primeiras locomotivas a óleo diesel adquiridas e que causavam grande admiração aos habitantes da cidade. Este campo, outrora gramado, foi depois usado para estacionamento de ônibus de empresas de transporte coletivo. A gare da estação da Viação Férrea do RS foi local frequentado pela elite da sociedade santa-mariense, por mais incrível que isso possa parecer hoje aos mais moços, testemunhas da decadência da rede ferroviária. Ali estavam os escritórios das chefias. A sala do diretor da estação (chamado de "Agente"). Também me lembro do amplo e completo "stand" de revistas (a chamada "Revistaria da Estação"). O higiênico e confortável restaurante, onde serviam-se desde refeições "à francesa" até rápidos lanches. A fantástica sorveteria com inimagináveis guloseimas servidas em finas taças de prata. O competente serviço de carregadores de bagagens ("mensageria"), com os servidores vestidos de azul, com colarinho e gravata, portando carrinhos de ferro para o transporte das malas. O serviço de autofalantes com as publicidades (chamadas "reclames") ditas por um locutor cego, que tinha a fantástica capacidade de memorizar tudo. Entre um "reclame" e outro, valsas de Strauss e sambas de Ary Barroso. Para ter acesso à gare da Viação Férrea, era necessário comprar ingresso. Vendido sob a forma de um papelote duro, numerado, metade branco, metade verde. Que era picotado pelo porteiro engravatado na roleta numerada que dava acesso ao interior das instalações. Rapazes e moças, acompanhados de seus pais, costumavam formar fervilhante torvelinho de gente nas horas de chegada e partida dos trens de passageiro. Trens que atendiam por nomes especiais : "Noturno", "Fronteira", "Serra", "Porto Alegre". A gente ficava abanando para as pessoas que partiam naquela "composição" formada por dezenas e dezenas de carros. Puxada por barulhenta e folclórica máquina a vapor, carinhosamente chamada de "Maria Fumaça". Pouco depois substituídas pelas máquinas movidas a diesel e pelos trens húngaros, que tinham até ar condicionado e lanche gratuito. Parece mentira que – num incrível passe de mágica, suspense e terror – tudo desapareceu !

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

O VENTO SOPRARÁ FEITO UM HINO SOBRE AS FLORES - JAMES PIZARRO

Sempre fui fã de carteirinha da Nara Leão. Comprava todos os discos dela. Acompanhava suas andanças. Sua participação como musa do movimento da "Bossa Nova". Seu engajamento político. Suas entrevistas no saudoso semanário “O PASQUIM”. Corriam os anos 60. Comecei a namorar a Vera Maria em 1963. No dia em que fiz vestibular. Quando casamos, em julho de 1966, uma coisa ficou acertada. Nossa primeira filha se chamaria Nara. Em homenagem à nossa musa, uma vez que também ela gostava da cantora. Alguns meses depois, o Dr. Ronald Bossemeyer candidamente nos disse numa consulta de rotina : “Vocês serão pais, a Verinha ficou grávida”. Rumamos felizes para casa. Eu tinha uma “moderna” máquina de escrever Olivetti Lettera 22. Imediatamente escrevi um texto intitulado “Crônica para meu filho futuro´ “ Mesmo antes de nascer, eu já te quero. Pois tu és fruta madura no ventre do meu amor. Quando nasceres, o sol queimará mais forte. O vento soprará feito um hino sobre as flores. Verás caramujo num arrasto mole na gruta do teu colégio. Verás formiga correndo para o círculo do chão. Navegarás em barquinho de papel na sarjeta da tua rua. Lutarás a favor dos soldados de chumbo. Durante o dia verás pomba branca e dócil pousada na antena da TV. E se à noite ouvires no vídeo o homem falar da guerra eu mentirei : direi que ele fala assim porque a pomba não faz plantão noturno. Eu te falarei em Frank Borman e Gagarin – os primeiros astronautas – como me falaram de Colombo e de Cabral. Que eu já perdi em distantes aulas de Geografia Um dia teus ossos esticarão para mostrar que a velhice fez morada na minha face. Apertarás minha mão nodosa. Sentirás minha pele rugosa. E sorrindo dirás : papai ! “ No dia 2 de setembro de 1967 nasceu uma menina. E que recebeu o nome de Nara, Em homenagem à nossa musa. Nara Leão morreu. Vítima de um tumor em região de difícil acesso no cérebro, depois de penar e lutar titanicamente durante dez anos contra a doença, Nara expirou em 7 de junho de 1989. Há um belo livro para todos que querem saber mais sobre esta extraordinária cantora e ativista política : "Nara Leão: uma biografia", de Sérgio Cabral, publicado pelas editoras Companhia Editora Nacional e Lazul. Sempre lembro dela em minhas orações. Nossa filha Nara – hoje com 49 anos – é uma talentosa fonoaudióloga, articulista de temas técnicos e palestrante estabelecida com clínica na região de Panambi há quase trinta anos. Também escrevi para meus dois outros filhos quando nasceram. James Souza Pizarro, assistente social concursado, efetivo, da Prefeitura Municipal de Santa Maria e Cristina Souza Pizarro, fisioterapeuta, comerciante e cronista em Itajubá, sul de Minas Gerais. Nestes tempos estranhos em que vivemos, onde os valores éticos e familiares parecem estar perdendo o valor e sofrendo todo tipo de deboche, pretendi modesta e humildemente mostrar que é possível se amar uma criança ANTES mesmo dela nascer. E que a FAMÍLIA ainda é a salvação.

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

O PRÉDIO DA ASSOCIAÇÃO DOS FERROVIÁRIOS VAI RESSUGIR - JAMES PIZARRO (DIÁRIO, edição de 9.8.2022)

Nas cercanias do Colégio Estadual Manoel Ribas funcionava a monumental Cooperativa dos Ferroviários da Viação Férrea do Rio Grande do Sul, com dezenas de prédios dedicados a múltiplos fins. Um grande prédio servia de sede burocrática. Outro, de armazém de "secos e molhados", expressão em voga à época. Ali existia qualquer tipo de alimento imaginável para comprar. Anexo a este grande armazém havia loja de roupas e tecidos, alfaiataria, relojoaria, carvoaria, fábrica de sabão, padaria, lenheira, farmácia. Ao lado do prédio do Maneco funcionava um gigantesco açougue, prédio em ruínas ainda hoje existente. Em frente a este prédio, no passado, formava-se longa fila desde a madrugada, principalmente de meninos que, munidos com seus "ganchos" (estruturas de ferro em forma de letra jota) esperavam para levar a carne para casa. Não se usava dinheiro, pois a cooperativa fornecia, no início de cada mês, uma série de "vales", fichas de papelão azul que correspondiam a um certo valor em dinheiro, de acordo com o ordenado do ferroviário. Os meninos entregavam aqueles "vales" para o açougueiro (eram mais de 10 açougueiros atendendo simultaneamente), em troca dos "pesos" solicitados. Chamava-se de "peso" ao tipo de carne solicitada, isto é, filé, costela minga, coxão de fora, coxão de dentro, etc...Tinha de haver cuidados no transporte daquele gancho com carne até à casa. Os cachorros iam atrás, pulando, para roubar a carne. Muito guri tomou surras homéricas por ter deixado o gancho com carne no chão enquanto jogava bolita (bola de gude). E a cachorrada levava a carne do penitente. Ou a carne era roubada por outros guris ! Às vezes, mentiam que não tinha chegado a carne. E trocavam os "vales" por outro tipo de compra nos bares e lojas da cidade. Os "vales" tinham inteira credibilidade na comunidade santa-mariense e circulavam livremente no comércio, como se dinheiro fosse. Aliás, os próprios adultos - quando ficavam com pouco dinheiro no fim do mês e tinham "vales" sobrando - trocavam-nos por dinheiro, numa transação chamada popularmente de "touro". Era comum o ferroviário dizer : "Me apertei de dinheiro, vou ter de fazer um touro." Não consegui descobrir até hoje o porquê do uso da expressão "touro". Os sapatos todos que usei, até à idade de 15 anos ou 16 anos, foram presentes dos meus avós maternos, vó Olina e vô Fredolino. Sapatos comprados na sapataria da Cooperativa dos Ferroviários. O primeiro relógio que ganhei na vida, de enorme mostrador e pulseira de couro brilhante, foi comprado na relojoaria da Cooperativa : era um típico "cebolão" ! Na época, chamava-se "cebolão" ao relógio que possuía mostrador muito grande. A ferrovia, a cooperativa e o MANECO marcaram para sempre minha vida. E creio que a vida de milhares de conterrâneos. Por isso, quando vejo os prédios abandonados da outrora pujante cooperativa, meu coração se aperta numa sístole de tristeza. E tenho de me controlar para não chorar em plena via pública. Mas eis que leio no jornal e escuto na TV DIÁRIO que o prédio Associação dos Ferroviários, clube social onde muito dancei e assisti partidas de bolão, vai ser totalmente restaurado. E meu coração se distende e bate feliz, numa diástole de alegria. Afinal, nem tudo está perdido !

segunda-feira, 25 de julho de 2022

DONA NEUZA - JAMES PIZARRO (DIÁRIO - edição de 26.7.2022)

Um prédio de nove andares e noventa e oito apartamentos não é apenas uma obra de engenharia. É uma ousadia, levando-se em conta que foi construído em 1960. Para ser uma galeria solidamente construída. À moda antiga. Tijolos sem furos. Paredes espessas. Térreo ocupado por lojas comerciais. Portaria. Funcionários. Câmeras para monitorar corredores. Interfones. Depois de longos anos de experiências com síndicos proprietários de apartamentos do prédio, mudou-se a sistemática por votação democrática dos proprietários. E foi contratado um escritório profissional para fazer a administração do condomínio. O que diminuiu o número de atritos. Discussões desnecessárias. E até de reuniões. Muitas das quais resultavam em discussões. Ânimos exaltados. Não raro, em inimizades. Mas não era disso que queria tratar. Pois, afinal, nunca participei de reuniões de condomínio. Queria me referir aos tipos humanos que habitam uma comunidade de cerca de 600 pessoas. Um microcosmos de almas que seria motivo de estudo para teses de mestrado e doutorado, certamente. Em diferentes áreas científicas. Na Sociologia. Economia. Filosofia. Política. Medicina. Psicologia. Tal a diversidade da fauna humana que se apresenta em sua diversidade e comportamento... Na época crítica da pandemia haviam alguns que não suportavam a ideia de subir acompanhados com outros nos elevadores. E enxotavam as pessoas aos gritos, esbravejando que queriam subir sozinhos. Lembro bem de uma dessas assépticas criaturas porque fui informado há pouco tempo que ela – apesar dos seus cuidados extremados – faleceu ironicamente de covid ! Outros costumam não responder ao cumprimento da gente quando entramos no elevador. Olham para baixo, taciturnos, de cara emburrada, fingindo-se de surdos e não respondem ao bom dia de ninguém ! Devem escovar os dentes com vinagre de manhã cedo, certamente ! Os funcionários da portaria são uns mártires ! Pois suportam estoicamente as mais absurdas reclamações, desde as que deveriam ser feitas aos carteiros dos Correios até às que deveriam ser feitas ao presidente da República ! Mas há uma moradora especial sobre a qual eu queria fazer um registro. Ela se chama dona Neuza. Acho que reside sozinha, uma senhora gentil, simpática, está sempre tomando chimarrão. Seguido a encontro na portaria quando vou buscar meu exemplar do DIÁRIO e a correspondência do dia e ela está também buscando suas cartas ou conversando com os funcionários. Pois dona Neuza bateu semana passada aqui em casa e entregou para a Vera Maria, minha esposa, três panos-de-prato. Pintados com lindas estampas e com as extremidades ornadas com croché. Diante da surpresa da minha mulher, ela disse : “Não vou entrar para não lhe tomar tempo, quero lhe dizer que não estou vendendo nada, eu faço isso com prazer para me distrair e presentear as pessoas do prédio. Gostaria que a senhora e o seu Pizarro aceitassem como um humilde presente. “ Minha mulher agradeceu muito. E eu já pedi para ela fazer uma cuca de laranja, receita alemã em que a minha mulher é exímia, que eu faço questão de levar na porta do apartamento da dona Neuza. Pois é desse tipo de pessoa que a gente precisa. Que os condomínios precisam. Que o planeta precisa. A senhora, dona Neuza, é o meu personagem da semana !

segunda-feira, 11 de julho de 2022

"SEMPRE ALERTA" - JAMES PIZARRO (DIÁRIO - edição de 10.07.2022)

Numa noite dessas, perdido em minhas costumeiras cogitações, fiquei a pensar de onde tinha vindo a minha predileção pelos seres vivos em geral. O meu afeto pelos animais em particular. A minha vocação pelas coisas da Natureza. O meu respeito pela flora e fauna. O desejo incontido de entender o equilíbrio existente nos ecossistemas. Que acabaram me transformando num estudioso e profissional desta área. Eu me criei numa casa com enorme pátio. Com todo tipo de árvores. Nativas. Frutíferas. Horta. Jardim. Criação de galinhas. Cabritas. Patos. Coelhos. Tinha muitos cachorros. Gatos. Caturritas. Lembro até hoje dos nomes dos animais todos de estimação. Tive, portanto, contato com animais e vegetais desde cedo. Minha casa ficava quase ao lado do chamado arroio Cadena, hoje canalizado e sumido embaixo do Parque Itaimbé. O Cadena era cercado por uma modesta floresta de galeria com muitas taquareiras, vegetação arbustiva, algumas frutíferas. Em suas águas tinha alguns peixes. Haviam cobras. Tartarugas. Aranhas. Pássaros em profusão faziam seus ninhos naquele local. A gurizada fazia cavernas. As turmas tinham esconderijos. O arroio Cadena era o segundo pátio de toda a gurizada da Silva Jardim e adjacências. Na subida da Silva Jardim, esquina com a rua André Marque, existia o Círculo Operário. No térreo do prédio funcionou inicialmente – além das aulas de datilografia e corte/costura, gabinete odontológico – a primeira sede da Tropa de Escoteiros Henrique Dias. Fui escoteiro da Henrique Dias (naquele tempo se chamava “Tropa” e não “Grupo”, como hoje). Fui Noviço, Primeira Classe e Segunda Classe. Fui membro da Patrulha da Pantera. O movimento escoteiro ou Escotismo foi criado por Baden Powel em 1907 com a finalidade de que jovens aprendessem a trabalhar em equipe e tivessem vida ao ar livre. E pudessem cultivar atributos como a responsabilidade, a fraternidade, o companheirismo, a lealdade, o altruísmo e a disciplina. Ainda menino, com meus 14 ou 15 anos, aprendi a ficar de guarda durante a noite do acampamento, zelando pelo companheiros que dormiam e “treinando” a ficar sem medo dos ruídos noturnos, da escuridão e dos uivos dos animais. Aprendi a fazer comida. A preparar café de chaleira. A armar e desarmar barracas. A organizar acampamentos, cozinha, banheiro, latrina coletiva, lavar e estender roupas, repartir alimentos, decorar e cantar hinos pátrios, fazer os mais variados tipos de nós com cordas e saber qual a hora de aplica-los, noções de primeiros socorros, diferenças entre cobras peçonhentas e não peçonhentas, etc... Lembro das dezenas de acampamentos feitos : na barragem do rio Ibicuí, nos lagos existentes na região de Itaara, no passo do Verde, no rio Jacu (Cerro Chato), na Chácara Experimental de Silvicultura (Boca do Monte) e em fazendas da região cedidas por seus proprietários. Os anos em que me dediquei à atividade escoteira, sempre atento ao lema “SEMPRE ALERTA”, foram decisivos na formação da minha disciplina mental, do meu caráter, do meu amor ao próximo e, sobretudo, do meu amor à Natureza. Na base do conjunto de todos os fatores que me levaram a ser um ferrenho defensor da Natureza e professor de Ecologia na UFSM seguramente está minha vida de escoteiro na minha querida Tropa Henrique Dias ! Por isso, a todos os escoteiros da cidade : “SEMPRE ALERTA” !

terça-feira, 28 de junho de 2022

AS FESTAS DESÃO JOÃO DE ANTIGAMENTE - JAMES PIZARRO (DIÁRIO - edição de 28.6.2022)

Nasci e me criei na rua Silva Jardim, entre as ruas Dutra Vila e a Benjamim Constant. Lembro quando as máquinas escavaram toda a rua e movimentaram toneladas de terra, deixando as residências dos moradores – antes situadas no nível da rua – numa nova situação : à beira de enormes barrancos. Moradores tiveram de improvisar escadas de madeira para poder ter acesso às suas csas. Tenho fotos dessa época clicadas com um velha máquina Kodak, modelo “caixão”. Os moradores tiveram de enfrentar enormes dificuldades econômicas para construir muros imensos para conter a erosão da terra dos barrancos e evitar a queda de suas casas. Foi uma época difícil para todas aquelas famílias. Eram ferroviários, funcionários públicos, professores, comerciantes, militares. Sei até hoje o nome de todos e fui amigo de todos. Meu pai era enfermeiro do Centro de Saúde (e anos depois, também do SAMDU) e nossa casa era a única nos anos 50 que possuía telefone naquela região. De sorte que, para injeções, curativos, primeiros socorros e telefonemas para parentes, nossa casa era ponto de referência. Eu me criei naquele meio, respirando um excelente e revigorante convívio de amizade e solidariedade entre vizinhos. Todos os aniversários eram comemorados e todos compareciam trazendo seus pratos de frios e doces, carregando suas bebidas. Tudo para não sobrecarregar o orçamento do dono-da-casa e do aniversariante. Porque o que importava era o convívio, as conversas, a alegria, a felicidade, o bem-querer. Lembro que nas doenças as pessoas abrigavam os filhos dos outros para almoçar. Quando alguém morria, os móveis eram tirados da sala e o defunto era velado na própria residência. E os parentes do falecido recebiam o calor humano de todos os amigos e vizinhos. Havia solidariedade total verdadeira. Lembro da casa do meu amigo Marino, apelido “Tomate”, onde ensaiava e era sede do bloco de carnaval “Bota que eu Bebo”, que anos depois serviria de embrião para a fundação da Escola de Samba Unidos do Itaimbé. Ao lado da casa do Marino existia um campinho gramado, bem na esquina da Silva Jardim com a Dutra Vila, onde a gurizada toda da vizinhança jogava futebol. As gurias brincavam de roda. E a gente se reunia de noite para intermináveis conversas. Um capítulo especial eram as festas de São João... No mês de junho este campinho da esquina era local da nossa monumental Festa de São João ! Durante semanas fazíamos rifas, juntávamos dinheiro, pedíamos doações. Comprávamos barbante e papel colorido para confecção das bandeiras do “arraial”. Vinho para o quentão. Pipoca. Amendoim. Foguetes. Balões. Tinha música com caixa de som. Com toca-discos. Discos de vinil. Toda a gurizada passava as semanas anteriores catando e trazendo galhos de árvores, tocos, lenha, pneus velhos. Para a armação da tradicional fogueira. Que alegria ! Que deslumbramento ! A festa começava as 19 horas e terminava quando a fogueira apagava. As famílias todas compareciam. Todos dançavam. Todos comiam e bebiam. Puxando pela minha memória não consigo me lembrar de uma só bebedeira ou briga ! Tudo na mais absoluta paz e clima de solidariedade ! Como a gente era feliz, meu Deus ! De repente, tudo aquilo acabou ! Por quê ?

terça-feira, 14 de junho de 2022

"JOGO DE CINTURA" - James Pizarro (DIÁRIO - edição de 14.6.2022)

Você vive ao ritmo da alegria ou da tristeza? Conforme Rubem Alves conviver com ambos é ser sábio. Você concorda ? Envelhecer com intervenções estéticas ou deixar o tempo agir livremente em nosso corpo? O que você prefere (ou pode)? Cartas e bilhetinhos enviados e/ou recebidos. Você já escreveu alguma carta ou bilhetinho à mão para alguém? Você lembra qual foi a sensação por escrever ou receber? Ou você cultiva este hábito? Dos cenários pandêmicos e pós-pandêmicos: Você vive um novo normal? Atitudes minimalistas: o que você já simplificou na sua vida, em todos os âmbitos? E quais foram os resultados ? Liberdade da mulher: entre a conquista de novos espaços e a reafirmação de sua objetificação. O que dói mais? O tapa na cara ou a traição? Tempos difíceis produzem homens/mulheres/pessoas fortes e corajosas. Tempos menos desafiadores e exigentes geram pessoas mais frágeis e menos resilientes. Que geração/filhos estamos entregando ao mundo? Os dois primeiros parágrafos da crônica de hoje são exemplos que serviram de pauta dos temas ou assuntos tratados no programa “JOGO DE CINTURA” – do qual sou telespectador cativo diariamente ! Convido o leitor para assistir : acompanhe o programa a partir das 13h30, pela 93.5 FM, canais 26 e 526 da NET e aplicativo Grupo Diário, disponível para smartphones Android e IOS. O programa é uma produção e apresentação de Carla Torres e tem como participantes Fabiana Sparremberger, Daniela Minello, Daniele Bressan e Deborá Evangelista. Na técnica : Fernando Barcelos e Thomas Pippi. Exemplos de outros temas já abordados pelo programa : Temos um radar para afinidades e antipatias instantâneas? O que pode explicar isto em nossas relações cotidianas? Racismo na UFSM: Precisamos falar sobre isto e também esperamos ações efetivas. A sociedade contemporânea empurra mulheres para longe da maternidade? Páscoa: Como você vive essa e outras datas? Disciplina: Você tem? Como é na sua vida? O que acontece quando o programado dá errado? Comidas/pratos que passo adiante e histórias engraçadas relacionadas a eles Como ficam os vínculos familiares quando a comunicação é difícil? De quem você depende na vida? Ou o peso de precisar dar conta de tudo sozinhas(os) ? Medo de falar em público: Você tem? Como lida com ele ? A quantidade e o tipo de tarefas domésticas já colocou você e sua família em perigo dentro de casa? Autoconfiança é sexy: Você tem? Somos seres humanos, mas… O que é, mesmo, humanidade?! Como se percebe, os temas tratado são instigantes. Fogem da superficialidade e frivolidade da maioria dos programas que se vê nas telinhas das grandes redes nacionais televisivas, que alimentam a ignorância e a violência do nosso povo. É um programa sério, que faz o telespectador refletir e se questionar. Induz à reflexão de novos olhares e caminhos. Em certos momentos realiza uma terapia virtual com o telespectador. É um programa sério. Que deve orgulhar a grade de programação do complexo de comunicação do DIÁRIO. Pois programas desse nível e desse conteúdo é que fazem Santa Maria ter o título de “Cidade Cultura”. Parabéns, gurias ! Vida longa ao “Jogo de Cintura” !

terça-feira, 31 de maio de 2022

É impossível calar diante do que vi! - James Pizarro (DIÁRIO - 31.5.2022)

Corria a década de 50. Eu estudava no curso primário (hoje, ensino fundamental) do Grupo Escolar João Belém. A diretora era a professora Edy Maia Bertóia. Depois substituída pela professora Diquel Siqueira. Os tempos eram difíceis. Meu pai trabalhava em dois empregos. Minha mãe fazia doces para fora. Meu avô, ferroviário, sempre ajudava. A Viação Férrea do RGS naquela época estava no auge e seus funcionários ganhavam os mais altos salários da cidade. Meu pai estava construindo uma casa com todas as dificuldades inerentes a um funcionário público que se metesse numa empreitada dessas. No nosso pátio tinha horta, canteiro de flores, duas cabritas (passei minha infância tomando leite de cabra), dois cachorros, um gato, uma caturrita, laranjeiras, bergamoteiras, figueira, limoeiros, bananeiras. E tinha um grande galinheiro, com mais de 100 galinhas, cujos ovos eram recolhidos diariamente. No pátio, criada livremente a meu pedido, andava feliz uma pata simpaticíssima chamada por mim de “Cocó”. Foi um dos meus primeiros animais de estimação. A pata andava atrás de mim por onde eu andasse, emitindo o som característico da sua espécie. Quando as finanças apertaram na parte final da conclusão da construção da nossa nova casa, meu pai anunciou que - para fins de economia na compra da carne - passaríamos a comer as galinhas todas, o que realmente ocorreu. Era galinha frita, galinha na panela, risoto, pastelão de galinha desfiada. Isso me fez enjoar tanto de carne de galinha que até não gosto de comer dessa carne. Num domingo, chegando da missa na catedral diocesana de Santa Maria, onde sempre ía em companhia de minha avó, achei estranho a “Cocó” não ter me esperado no portão como sempre fazia. Na hora do almoço falei sobre o desaparecimento da pata e veio a verdade nua e crua, anunciada por minha mãe : “Teu pai mandou matar e assar a cocó”. Saí vomitando pelo pátio, chorando e, aos gritos, maldizendo a família inteira. Não comi naquele maldito domingo. Até hoje, mais de meio século depois, lamento não ter uma foto com a minha patinha “Cocó”. Desde menino, eu repudiava o sofrimento e a morte de animais. Tanto que jamais usei bodoques. Nem aprisionei pássaros em gaiolas. Nem atormentei ou bati em cães e gatos. Sempre fui um pacifista. E um protetor da fauna e da flora. Quando vi na TV na semana passada o motociclista ser brutalmente assassinado por asfixia por dois ou três maus soldados da PRF de Sergipe fiquei estupefato. E senti a mesma náusea sentida há décadas, quando perdi a Cocó. Fiquei em pânico ao ver o pobre homem esperneando, aos berros, agonizando em plena via pública, sob o olhar omisso de centenas de pessoas que nada fizeram para tentar evitar aquela brutalidade. No capítulo 11 de João, encontramos o versículo 35, um dos mais curtos de toda a Bíblia : “E Jesus chorou”. Mão vou pontuar aqui o momento histórico que suscitou este versículo. Mas quando este pobre irmão brasileiro agonizou e morreu asfixiado naquela câmara de gás tupiniquim por ter cometido a contravenção de estar sem capacete, certamente Jesus chorou diante da barbárie. Jesus chorou por ele. E pelo Brasil. Não é do meu temperamento tratar assuntos deste tipo. Mas é impossível calar diante do que vi.

terça-feira, 17 de maio de 2022

LEMBRANDO 2011 : 153 ANOS DA CIDADE - JAMES PIZARRO (DIÁRIO - 17.5.2022)

Como gosto de relembrar coisas, destaco hoje – como anotação histórica – o que escrevi sobre os 153 anos da cidade, há onze anos e de que maneira a cidade, naquela época comemorou a data. Vamos lá... Desde o início do mês de maio de 2011, a cidade sedia uma série de eventos culturais, artísticos e esportivos alusivos ao aniversário de Santa Maria. Entre as ações de maior destaque estão a Feira do Livro, o concerto da Banda Sinfônica do Corpo de Fuzileiros Navais do Rio de Janeiro, O Congresso Internacional de Política e de Direito e a mateada festiva no Parque Itaimbé. Na terça-feira, 17 de maio, data em que o município comemora 153 anos de emancipação político-administrativa, a comunidade será brindada com um grande concerto da Orquestra Sinfônica de Santa Maria. A apresentação será às 19h, na Praça Saldanha Marinho.O repertório (confira abaixo) será executado pelos dos 52 músicos da orquestra, regidos pelo maestro Ênio Guerra. Neste mesmo dia, feriado em Santa Maria, o público também poderá participar da XVI Mateada Beneficente da Sentinela Alada do Pampa. A atividade será na Base Aérea de Santa Maria, das 14h às 18h. Mas, para os apreciadores da música, no dia 24 terá outra grande atração. Às 20h, a Igreja Nossa Senhora de Fátima será palco do Concerto de Aniversário com a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre. Mais atrações aguardam o público nas festividades de aniversário do município. As comemorações continuam até o dia 5 de junho, sendo que o destaque será a terceira edição do Festival de Balonismo, que acontecerá de 25 a 29 de maio, no Jockey Club de Santa Maria. Além disso, o público poderá participar dos eventos distritais. De 25 a 29 de maio, acontece a Festa do Arroz do Rei, em Palma e nos dias 4 e 5 de junho ocorre a Festa da Soja- O Grão de Ouro, em Santa Flora. O meio ambiente não foi esquecido na programação. De 30 de maio a 5 de junho, várias atividades marcarão a Semana do Meio Ambiente. Recorde: Feira do Livro comercializa 49 mil exemplares. Confira a relação dos títulos mais vendidos. Santa Maria respirou cultura e conhecimento neste mês de maio. Maior evento literário da região centro do Estado, a Feira do Livro 2011 movimentou a cidade com uma programação recheada de atrações culturais, artísticas e musicais, além de lançamento de livros, sessões de autógrafos e muito bate-papo com renomados escritores e personalidades. E o resultado desta mobilização apareceu nos números: 97 lançamentos e 49.070 livros vendidos, o que registrou um novo recorde e superou as 83 obras lançadas e os 48 mil exemplares comercializados em 2010. Nem o mau tempo de alguns dias espantou o público que circulou pela Praça Saldanha Marinho durante os 15 dias do evento. Para o presidente da Câmara do Livro e organizador da Feira, Télcio Bressolin, a presença dos jovens deu ainda mais brilho às atividades. “A Feira teve um público espetacular esse ano, com muita juventude. Em alguns anos não se via tanto público juvenil como esse. Isso é parte de um processo que a Feira, como um todo, já vem trabalhando há vários anos”, comemora. Télcio destaca que o crescimento da Feira, ano a ano, traz ainda mais notoriedade ao município. “É importante para cidade esse movimento que se cria em torno do livro. Podemos ver até o mercado que se abriu com 100 lançamentos. Isso demonstra o acerto que é, cada ano, ir segmentando esse movimento cultural onde se passa 15 ou 20 dias falando em livro, em cultura, em conhecimento. Isso, de uma forma ou de outra, faz com que Santa Maria ganhe mais reconhecimento no cenário regional e também estadual”, comenta. O presidente da Câmara ainda ressalta que a multiplicidade de atrações no palco principal contribuiu para o grande movimento. “Além da programação, essa integração com as escolas faz com que o crescimento da Feira venha ano a ano. Essa integração auxilia também no desenvolvimento da cidade”, acrescenta. Telcio lembra que Santa Maria é um pólo educacional. “A Feira também faz parte desse contexto”, finaliza.

segunda-feira, 2 de maio de 2022

DIA DAS MÃES - James Pizarro (DIÁRIO - 3.5.2022)

Minha mãe se chamava Maria, conhecida por todo mundo pelo nome de Iria. Dona Iria. Minha avó materna, vó Olina, contava que o nome dela era para ser Maria Iria e que meu avô, na hora do registro, esqueceu e registrou apenas como Maria. Minha mãe estudou todo o Curso Elementar (depois chamado Ginásio e hoje chamado Ensino Fundamental) no Colégio Santa Terezinha (hoje prédio do Maneco), internato e semi-internato mantido pela Cooperativa dos Empregados da Viação Férrea do Rio Grande do Sul em sua época áurea. No turno da manhã, minha mãe tinha as disciplinas pertinentes a esse tipo de curso (matemática, português, ciências, geografia, história, música, etc...). Pela tarde, aprendia bordado, tricô, tocar violino, educação física, etc...Minha mãe sempre dizia que as freiras do Santa Terezinha usavam a frase: “De manhã se educa a mente e a alma, pela tarde se educa o corpo”. Aos 16 anos conheceu Alfeu, meu pai, e pouco tempo depois casaram. Foram morar na rua Silva Jardim, 2.431. Minha mãe ajudou na árdua luta de sustentar uma família com dois filhos, construir uma casa própria com o ordenado de funcionário público de meu pai, que trabalhava em dois empregos. Exímia na arte de fazer doces, durante anos fez e vendeu doces sob encomenda para casamentos e aniversários. Nunca teve empregada doméstica. A família sempre recebeu ajuda providencial, quando necessário, de meu avô materno, Seu Fredolino. Como ferroviário, ganhava muito bem à época e podia prestar este auxílio e o fazia de bom grado. As únicas diversões das quais me lembro eram frequentar todos os circos que chegavam a Santa Maria. Ir aos bailes mensais do Clubes de Atiradores Santamariense. E não perder as esporádicas festas do Grupo de Bolão 7 de Setembro, de cuja equipe meu pai era o “capitão”, pois era exímio bolonista. Depois de idosa, minha mãe frequentou aulas na UFSM como aluna especial. Engajou-se na luta política da terceira idade na cidade, sendo uma das fundadoras do grupo “Mexe Coração”, com sede no Centro de Atividades Múltiplas, no Parque Itaimbé. Participou de aulas da caratê. Foi atriz de vários espetáculos do grupo teatral da terceira idade, onde se revelou notável comediante. Viajou pelo interior gaúcho para apresentações teatrais. Fez parte do coral dos idosos. Frequentava as aulas recreativas de natação na piscina térmica da UFSM. Enfim, teve uma vida socialmente participativa Esteve casada com meu pai durante 63 anos de feliz união, pois ambos se completavam. Ficou viúva em 9 de maio de 2004, quando meu pai morreu vitimado por complicações pós-operatórias advindas de uma cirurgia cardíaca. Viveu na mesma casa sempre, com minha irmã Jane e com uma atendente de idoso. Ela sempre teve grande afinidade com minha mulher, sua nora. Insisti até a exaustão para trazê-la para a praia de Canasvieiras para gozar do sossego de uma praia maravilhosa no final de sua vida. Nunca aceitou. Consegui levá-la duas ou três vezes para temporadas de 30 dias. Contentei-me, então, com conversas telefônicas semanais. Infelizmente, a minha opção de morar na praia, desejo acalentado há anos, não coincidiu com a opção de minha mãe. Lamentei pela opção que ela fez. Mas que fui obrigado a respeitar. Dia 4 de fevereiro de 2012, estive em Santa Maria para festejar os 90 anos de minha mãe, junto com dezenas de parentes, vizinhos e amigos, em animado jantar no Restaurante Vera Cruz. De 19 a 25 de abril de 2013 estive também em Santa Maria. E em janeiro de 2014 também estive em Santa Maria para visitar amigos, parentes e visitar minha mãe por 29 dias. Enfim, voltei todos os anos para visitas. Até que – maio de 2016 – depois de quase 10 anos na praia, já com 74 anos, decidi retornar aos pagos, ficar perto dos filhos, netos, amigos, ex-alunos, meus médicos, minha cidade natal. Em 28 de julho de 2016 minha mãe morreu. Morreu dormindo. Em sua cama. Em sua casa. Como um passarinho. Este é o sexto “Dia das Mães” que passo sem ter mãe. Sei – como professor de Biologia – que o óbito faz parte natural dos acontecimentos. Da rotina planetária. Da finitude. Da reciclagem da matéria que é finita. Mas é melancólico não ter mais mãe. Machuca. Fere. E dói. Portanto, aos que ainda têm a ventura de ter mãe, agradeçam a Deus. E beijem ela por mim. Meu coração ficará mais aliviado.

segunda-feira, 18 de abril de 2022

OS "BIXOS" DA UFSM - JAMES PIZARRO (DIÁRIO - 19.04.2022).

Mesmo antes de fazer vestibular (e ser aprovado na UFSM em janeiro de 1963), eu já ministrava aulas de Biologia. Comecei no Colégio Sant*Anna, com apenas 17 anos, a minha carreira docente. Ao mesmo tempo, dava aulas no Curso Binatão (nas dependências da própria UFSM). E comecei no Instituto Master, que funcionava no edifício Segala, no calçadão, onde funcionou anos depois a Rádio Guarathan, junto com uma equipe notável, entre os quais destaco meu saudoso ex-professor/colega/amigo, Paulo Lauda. Dei aulas também no Riachuelo, Coração de Maria, Curso Positivo, Arca de Noé, Preparatório da ESA, etc...Somados aos quase 40 anos de aulas na UFSM, dediquei mais de meio século de vida a falar durante horas e horas diariamente para turmas de jovens sobre Biologia e a vida em geral. Por que fiz essa introdução ? Para dizer ao leitor que acompanhei na vida real e na prática diária a evolução dos costumes estudantis. Das festas universitárias. Participando dos fatos – como aluno e depois como docente – durante cerca de seis décadas. Não me atreverei – qual velho ranheta – a fazer juízo de valor e emitir opiniões moralistas sobre isso ou aquilo. Apenas quero narrar – como memorialista - como era na década de 60, a recepção ao calouros da UFSM, os chamados “bixos” da UFSM. Cada curso da UFSM recebia seus calouros de maneira amistosa, com brincadeiras, pinturas no rosto, trotes. Não havia ainda o hábito de se cortar o cabelo dos calouros. Cada curso da UFSM fornecia aos seus calouros uma “característica” (um avental, pala, boina, chapéu, cartola, espada,etc...com o nome do curso e suas cores) que deveria ser usada obrigatoriamente durante todo o mês de março. E essa “característica” era entregue ao calouro durante um baile solene realizado no Caixeiral ou Comercial, animado por orquestras e conjuntos famosos na época. Assim é que, durante todo o mês de março tínhamos o Baile dos “Bixos” da Medicina, da Farmácia, da Agronomia, etc...nos quais cada calouro recebia de sua madrinha(namorada, mãe, noiva, “ficante”) a “característica” que o identificava como universitário dali por diante perante a comunidade. Reitor, professores e autoridades prestigiavam esses bailes que estavam sempre superlotados. No entanto, o ápice da festa universitária de recepção aos calouros da UFSM na década de 60 sempre foi a famosa e até hoje lembrada com saudade, “PASSEATA DOS BIXOS” ! Todos os calouros da UFSM, separados por curso, desfilavam vestidos com fantasias e portando cartazes com críticas de toda ordem contra qualquer fato, pessoa, autoridade, políticos. Etc....da vida nacional e internacional. Peças rápidas de teatro eram encenadas rapidamente, para delírio da população que superlotava a rua do Acampamento, av. Rio Branco e rua dr. Bozano. Também carros alegóricos desfilavam com cenas humorísticas encenadas. No caso da minha turma, Agronomia/1963, além participarmos da passeata e do baile dos “bixos”, nós fizemos um trote solidário em prol da população carente. Durante um dia inteiro percorremos as ruas da cidade com um caminhão e aparelhagem de som e pedimos alimentos para os asilos da cidade. Lotamos um caminhão arroz, feijão, massa, sal, enlatados, etc....fato que teve enorme repercussão na cidade. De vez em quando, para reparar as energias, corria um copo de vodka com Cirillynha. Ou uma garrafa de “samba” (Coca Cola gelada com cachaça). Era o máximo de devassidão permitida...

segunda-feira, 4 de abril de 2022

Passos lentos. olhar perdido, ardência no peito - JAMES PIZARRO (DIÁRIO - 5.4.2022)

Não deboche / agrida / brigue / ofenda seus colegas / amigos/ parentes / conhecidos /vizinhos por causa das eleições presidenciais. Com estas atitudes você não vai conseguir nada, a não ser inimizades / má vontade / distanciamento / desamor / solidão. Seja qual for o ganhador, eles jamais saberão da sua existência e de seus problemas. Tenha sua opinião / candidato / partido. Mas aceite que os outros também possam ter. Ninguém tem o monopólio da ética / moral / verdade. Portanto, é hora de pensar várias vezes antes de falar / escrever / vociferar ! Quase octogenário, não escrevo mais há décadas sobre política, futebol e religião. Mesmo porque existe gente muito mais preparada do que eu para tratar destes temas. Resolvi investir na saúde das minhas coronárias. Para conviver mais tempo com meus netos. E escrever sobre amenidades, O cotidiano. Contar coisas perdidas na memória. Reviver coisas. Falar até sobre filmes. Noite dessas – num dos canais da TV a cabo (acho que no Paramount) – assisti a um filme muito antigo O título era “Clamor de Sexo” (de Elia Kazan) e “Eva” (de Joseph Losey). Filme feito há mais de 60 anos, é sobre a família e seus conflitos. Sobre o amor e sexo entre os jovens. Pais que são contra namorados dos filhos. Professores e pais que jamais aprenderam a ajudar seus filhos e alunos. Famílias que eram ricas e a depressão econômica tornou pobres. Mas o que mais me chamou a atenção no filme é uma cena melancólica. Os dois namorados, cujo amor não deu certo por causa de múltiplos fatores, se encontram muitos anos depois. E é uma decepção total. O grande objeto de desejo de outrora não significa absolutamente mais nada. Tudo terminou. Eles estão secos por dentro. São estranhos. É um encontro pungente. Que remete à solidão. À melancolia. Os mais jovens que fazem leitura dos meus textos experimentarão esta mesma sensação futuramente. Pode ser com uma colega de infância. Uma namoradinha que ocupou seu cérebro e sua alma com sofreguidão. Uma colega de faculdade. Pessoas que foram importantes no seu mundo afetivo. Passarão os anos. E ao rever aquela pessoa que deixava seu coração em chamas, ela se transforma num borrão na paisagem. Não lhe diz mais nada. Tudo virou uma oceânica decepção. E você vira as costas. E saí caminhando. Passos lentos. Olhar perdido. Uma ardência no peito. E uma certa estupefação diante do mundo.

terça-feira, 22 de março de 2022

NEIZINHO, AQUELE QUE FAZ FESTAS LINDAS NO CÉU... - JAMES PIZARRO (DIÁRIO - 22.3.2022)

Ontem, 21 de março, lembrei da morte do meu querido amigo Neizinho Almeida, que nos deixou há sete anos (2015). Funcionário da Biblioteca Pública Municipal, Ney foi talvez a figura mais importante dessa cidade nas últimas décadas como organizador e realizador de festas de casamentos, aniversários, jantares, festas, solenidades, carnaval e recepções. Desde menino eu morava na Silva Jardim e Nei morava numa transversal, a Comissário Justo, numa grande casa com suas irmãs e mãe, onde preparava com requinte os cardápios de suas festas para a sociedade santa-mariense. E mesmo para cidade vizinhas, pois ele recebia encomendas e pedidos de várias cidades gaúchas. Lembro que o saudoso amigo médico Anterinho Scherer me contou que o Ney fez a decoração do casamento dele com a Iara em Cacequi, a festa de primeiro ano de aniversário do saudoso João Scherer (seu primogênito) e a desta de 25 anos de casamento (bodas de prata) dele festejada na Sociedade de Medicina de Santa Maria. Marta Assis Brasil Rocha e Ivan Marques da Rocha, nossos amigos e companheiros de caminhada na praia em Canavieiras, tiveram sua festa de casamento feita pelo Ney : “Talvez um das primeiras feitas por ele”, me disse ela. O casamento do primeiro filho também foi feito por Nei. E assim poderia citar – apelando para a memória – depoimento de várias pessoas em conversas, principalmente à beira da piscina do ATC nos últimos 40 ou 50 anos. O Caio Alexandre Monti, que foi dono do restaurante “Panela de Ferro” em nossa cidade e depois se fixou em Florianópolis, me disse que muitas vezes forneceu frios assados para o “banqueteiro Nei”, como ele o chamava. A minha amiga Karla Girondi, formada em fonoaudiologia, teve seu casamento feito por ele, assim como Cristina Boffil e meu querido amigo Arthur Neves, recentemente aposentado da FIAT Lembro também do casamento da amiga e ex-aluna Márcia Brasil, hoje trabalhando nos hospitais de Caxias do Sul, cuja festa foi obra do Nei.. A querida amiga Lys Lauda, filha do meu saudoso amigo professor Paulo Lauda me contou que o Nei lhe desenhou os vestidos de 15 anos, noivado e casamento, além de ter lhe desenhado e assessorado em todos os vestidos para suas festas. Registro semelhante me fez a amiga Olvenita Borges : “Muitos conselhos de moda e de etiquetas lhe pedi. Era uma figura muito querida.” Teria centenas de declarações e conversas a elencar de pessoas de convívio comum, de rodas que participei, onde o nome do Nei foi assunto. Lembro de alguns amigos comuns : Flávio Cassel, Antônio Carlos Machado, Rejane Flores, Luiz Francisco Flores, Luiza Vargas, João Pedro Cavalheiro, Nelson Pessano de Souza, Pylla Kroth, Vera Armando, Paulo de Tarso Covolo, Maria Cecília da Luz Ribeiro e tantos outros. Todos com declarações carinhosas e de elogio. Queria encerrar essas minhas palavras de saudade sobre meu saudoso vizinho e amigo Nei, com uma frase da minha amigasempre sensível Neida Ceccim Morales, que assim me disse quando Nei morreu : “ - Foi fazer festas lindas no céu.... Paz e luz, Neizinho ! “

terça-feira, 8 de março de 2022

DIA INTERNACIONAL DA MULHER - JAMES PIZARRO (DIÁRIO - 8.3.2022)

Minha mãe se chamava Maria, conhecida por todo mundo pelo nome de Iria...Dona Iria. Minha avó materna, vó Olina, contava que o nome dela era para ser Maria Iria e que meu avô, na hora do registro, esqueceu e registrou apenas como Maria. Ela cresceu como filha biológica única, mas com três irmãos adotivos : José, Moisés e Carmelita. Foram três irmãos adotados pelos meus avós, diante da morte dos pais biológicos deles, amigos da família. Minha mãe estudou todo o Curso Elementar (depois chamado Ginásio e hoje chamado Ensino Fundamental) no Colégio Santa Terezinha (hoje prédio do MANECO), internato e semi-internato mantido pela Cooperativa dos Empregados da Viação Férrea do Rio Grande do Sul em sua época áurea. No turno da manhã, minha mãe tinha as disciplinas pertinentes a esse tipo de curso (Matemática, Português, Ciências, Geografia, História, Música, etc...). Pela tarde aprendia bordado, tricô, tocar violino, educação física, etc...Minha mãe sempre dizia que as freiras do Santa Terezinha usavam a frase : "De manhã se educa a mente e a alma, pela tarde se educa o corpo". Aos 16 anos conheceu Alfeu, meu pai, e pouco tempo depois casaram. Foram morar na rua Silva Jardim, 2431. Casamento que durou quase 70 anos, interrompido pela morte do meu pai. Minha mãe ajudou na árdua luta de sustentar uma família com dois filhos, construir uma casa própria com o ordenado de funcionário público de meu pai, que trabalhava em dois empregos. Exímia na arte de fazer doces, durante anos fez e vendeu doces sob encomenda para casamentos e aniversários. Nunca teve empregada doméstica. A família sempre recebeu ajuda providencial, quando necessário, de meu avô materno, Seu Fredolino. Como ferroviário, ganhava muito bem à época e podia prestar este auxílio e o fazia de bom grado. As únicas diversões das quais me lembro eram frequentar todos os circos que chegavam a Santa Maria. Ir aos bailes mensais do Clubes de Atiradores Santamariense. E não perder as esporádicas festas do Grupo de bolão 7 de setembro, de cuja equipe meu pai era o "capitão", pois era exímio bolonista. Depois de idosa, minha mãe freqüentou aulas na UFSM como aluna especial. Engajou-se na luta política da terceira idade na cidade, sendo uma das fundadoras do grupo "Mexe Coração", com sede no Centro de Atividades Múltiplas, no Parque Itaimbé. Participou de aulas da caratê. Foi atriz de vários espetáculos do grupo teatral da terceira idade, onde se revelou notável comediante. Viajou pelo interior gaúcho para apresentações teatrais. Fez parte do coral dos idosos. Frequentava as aulas recreativas de natação na piscina térmica da UFSM. Enfim, teve uma vida socialmente participativa. Esteve casada com meu pai durante mais de seis décadas de feliz união, pois ambos se completavam. Ficou viúva em 9 de maio de 2004, quando meu pai morreu vitimado por complicações pós-operatórias advindas de uma cirurgia cardíaca. Viveu na mesma casa ainda seus últimos anos de vida. Minha irmã Jane morou com ela. Acompanhada por uma atendente de idoso. Amparada por um excelente plano de saúde. Ela sempre teve uma grande afinidade com minha mulher, sua nora. Insisti até à exaustão para trazê-la para a praia de Canasvieiras, onde estive morando por anos. Para gozar do sossego de uma praia maravilhosa no final de sua vida. Já estava em meus planos alugar um apartamento maior, onde ela teria a privacidade de seus aposentos. Insisti então para que ela viesse viver nem que fossem alguns meses durante o ano em frente ao mar. Os percalços, os problemas, a viuvez, a distância...tudo isso poderia ser resolvido se ela aceitasse vir em definitivo. Mas conheço minha mãe... depois de dizer não, é não. Contentei-me, então, com conversas telefônicas semanais. E com visitas esporádicas a Santa Maria (trouxe duas vezes minha mãe no mês de novembro de 2008 e 2009 para passar trinta dias aqui na praia comigo). Infelizmente, a minha opção de vir morar na praia, desejo acalentado há anos, não coincidiu com a opção de minha mãe. Lamentei pela opção que ela fez. Mas que sou obrigado a respeitar. Dia 4 de fevereiro de 2012 estive em Santa Maria para festejar os 90 anos de minha mãe, junto com dezenas de parentes, vizinhos e amigos, em animado jantar no Restaurante Vera Cruz. Até que - maio de 2016 - depois dez anos na praia, já com 74 anos, decidi retornar aos pagos, ficar perto dos filhos, netos, amigos, ex-alunos, meus médicos, minha cidade natal. Faço esse revisão sentimental no dia de hoje, 8 de março, porque esta data é dedicada internacionalmente às mulheres. E desejava, na figura da minha saudosa mãe, homenagear a todas as mulheres, especialmente à minha esposa, minhas filhas, minha nora, minhas netas, minha irmã, minhas colegas, ex-professoras, médicas, ex-alunas, leitoras, vizinhas, amigas. Sem vocês, seguramente o não valeria a pena viver !

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

A MADRUGADA NO CENTRO DA CIDADE - James Pizarro (DIÁRIO - 21.02.2022)

Nos anos dourados da década de 1960 imperava a tranquilidade nas ruas e praças da cidade. Mas não a solidão. Muito menos o abandono. Ou a escuridão. Os jovens universitários e os estudantes do ensino médio - depois dos bailes, aniversários, reuniões-dançantes, encontros em bares nos fins de semana – costumavam ficar sentados ao longo da Avenida Rio Branco e praça Saldanha Marinho para conversas sobre política, namoro, literatura, fofocas em geral. E para degustar no final da madrugada os famosos cachorros-quentes de linguiça de porco com mostarda que eram vendidos por carrocinhas, pois ainda não existiam os trailers para venda de lanches. Jamais algum vizinho precisou chamar a polícia por balbúrdia, algazarra, briga, bebedeira, consumo de droga por causa daqueles inocentes encontros de jovens estudantes que orgulhavam a cidade. E os estudantes jamais se sentiram ameaçados por estarem na rua durante a madrugada. Nunca se soube de algum assalto, roubo e muito menos um estupro ou assassinato. Passaram-se os anos. Chegamos ao esperado terceiro milênio. Em matéria de segurança o que ocorreu no Brasil em geral? E Santa Maria, em particular? Crescemos que nem rabo de cavalo: para baixo !!! As famílias vivem gradeadas dentro de casa, com câmeras de vigilância, cães de guarda, cercas elétricas, vigilantes, portões eletrônicos, uma série de dispositivos eletroeletrônicos para defesa. Estamos no início do ano e já ocorreram vários assassinatos em nossa cidade. Quantos morrerão até 31 de dezembro? Tira-se a vida das pessoas pelos motivos mais torpes e fúteis. Discussões banais. Bebedeiras. Tráfico de drogas. Feminicidios. Os policiais e militares responsáveis pela segurança continuam em desvantagem diante dos bandidos e fazem o que podem, pois são mal remunerados há anos, armamentos ultrapassados, carros e combustível insuficientes, efetivo muito aquém do que aquele necessário, sem perspectivas de melhora imediata. Morador da Galeria do Comércio com apartamento com janelas abertas para a rua Venâncio Aires, presencio cenas homéricas de intolerância e transgressão aos costumes diuturnamente. Durante o dia são pedestres atravessando a rua fora da faixa de segurança quase provocando acidentes e pondo em risco sua própria vida. Motoristas estacionando erroneamente seu carro no ponto de taxi e provocando discussões ácidas com taxistas, chamada de guincho, etc...Mas durante a noite, principalmente nas madrugadas, esta quadra central da cidade é palco de cenas que dariam para escrever um livro. Ou fazer um filme pornô de sucesso. Pois ocorrem encontros amorosos homoafetivos entre os contêiners do lixo, alguns deles nada silenciosos. Ocorrem conjunções carnais entre casais de namorados menores de idade, em pé, no portão da mansão da família do falecido e saudoso Dr. Mariano da Rocha. As vitrines da Casa Ey já foram quebradas e sapatos e bolsas roubados. Um jovem foi assassinado a facadas no corredor que corta a galeria. Sem falar nos carros que passam com o som ligado em decibéis que acordam todos os moradores que pretendiam muito justamente descansar durante a noite. Todos estes comportamentos contam com a impunidade e a tranquilidade que faz a alegria dos infratores. Pois não se vê uma viatura policial ou da guarda municipal. Até quando ?

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

QUE SAUDADE PUNGENTE DA "JOVEM GUARDA" - JAMES PIZARRO (DIÁRIO - edição de 8.2.2022)

"O futuro pertence à jovem guarda porque a velha está ultrapassada". Os ligados à política e à História devem conhecer a frase. Que é de autoria de Lenin. Mas não é desta jovem guarda quequero falar hoje. Baseada na expressão "Jovem Guarda" é que a TV RECORD, no ano de 1965, lançou um programa de auditório que iria revolucionar e influenciar uma geração inteira. A geração da qual eu fiz parte. A minha geração. A geração dos que têm 70 ou 80 anos hoje. Nas célebres reuniões dançantes do Clube Comercial e Caixeiral, em Santa Maria, a gente dançava de rosto colado ao som das baladas românticas do "rei" Roberto Carlos. Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa comandaram o programa “Jovem Guardas” nas saudosas “Tardes de Domigo” da Record. E se encarregavam de, além de cantar, apresentar todos os artistas que comungavam com eles o mesmo ideal. O programa teve a duração de três anos (terminou em 1968) e lançou dezenas e dezenas de cantores. Devem ser lembrados (além de Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa) os seguintes cantores : Celly Campelo, Vanusa, Eduardo Araújo, Silvinha, Martinha, Arthurzinho, Ronnie Cord, Ronnie Von, Paulo Sérgio, Wanderley Cardoso,Bobby di Carlo, Jerry Adriani, Rosemary, Leno e Lilian, Demétrius, Os Vips, Waldirene, Diana, Sérgio Reis, Sérgio Murilo, Trio Esperança, Ed Wilson e Evaldo Braga. Faziam parte do movimento as bandas : Os Incríveis, Renato e Seus Blue Caps, Golden Boys e The Fevers. Não existia violência. Drogas. Rachas. Gangs. E o máximo que ocorria era se tomar uma ou duas doses de vodka com Cirillynha, o refrigerante famoso feito na cidade mesmo há pouco ressucitado. Rostos colados. Corações disparando. Dançar abraçadinho. Tudo às escondidas. Porque mães vigilantes estavam sentadas às mesas cuidando todos os movimentos. Dezenas de namoros começaram ali. Ao som da "Jovem Guarda". Muitos dos cantores já morreram. Outros caíram no ostracismo. Outros sumiram sem dar notícia. Roberto Carlos - num extraordinário exemplo de vitalidade e talento - continua sendo o "rei". Não mais agora da minha geração. Mas de todos os românticos do país. Assim também, muitos casamentos acabaram. Sonhos. Carreiras. Vidas. Amores. Muitos amigos morreram. Muita coisa acabou. Teimosamente sigo lembrando duma época em que o amor nascia ao som de uma canção. O romantismo existia. E o amor perseverava. Através de poemas. Cartas. Telefonemas. Doce espera nas portas dos colégios. Hoje tudo mudou. As pessoas fazem amor pelo computador. Chats. E-mails. Messenger. Web cam. Vídeos. Nudes. Quando se ama através de uma máquina é sinal que algo está errado. Ou então eu - que já fui da "jovem guarda" - estou ultrapassado. E não me dei conta que há anos já faço parte da "velha guarda". É bem possível. E melancólico. Por derradeiro : naquela época a gente saia dos bailes do Esportivo, no sopé do morro, de mãos com a namorada e pela rua 7 de setembro e avenida Rio Branco atravessava toda a cidade a pé até a presidente Vargas sem medo de nada e sem ser molestado na madrugada. Não haviam assaltos, estupros, violência. Quem tentar fazer algo semelhante hoje – andar algumas poucas quadras a pé em pleno centro da cidade – pode ser considerado um abençoado se não for assaltado. Que saudade das pacíficas madrugadas santamarienses de outrora...

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

TIOS ENCANTADORES NÃO DEVERIAM MORRER - James Pizarro (DIÁRIO- 25.01.2022)

Já professor da UFSM, fui designado pela reitoria para representar a universidade e fazer palestra sobre Ecologia na cidade de Getúlio Vargas, a “sede”, onde eu passava férias nos meus tempos de piá. Falei para cerca de 200 pessoas no cinema da cidade, numa promoção da Delegacia de Educação da região. E pedi ao meu anfitrião um favor : eu queria visitar o recém-criado município chamado “Antiga Estação”, situado a uns 20 quilômetros dali. A outrora estrada barrenta está hoje asfaltada. E, em poucos minutos, lá estava eu a visitar as velhas instalações da ferrovia (ainda são as mesmas). A velha casa onde morava meu tio, pintada de marrom, onde eu passava as minhas férias na infância. Apenas dois funcionários na gare da estação que, na ausência de trens de passageiros, estão ali apenas para a fiscalização dos trens carregados de soja que dali partem em direção à cidade de Rio Grande. De onde a nossa soja é levada para países asiáticos, para se transformar em ração para porcos. Ou para países europeus, onde as pessoas já são superalimentadas e melhor saúde teriam se comessem menos. Enquanto parte do nosso povo passa fome e morre com o nariz achatado nas portas dos hospitais. Falei com um dos funcionários, o mais antigo, e ele bondosamente me proporcionou acesso aos livros antigos, já depositados no “arquivo morto” da estação. Ao folhear os mesmos, deparei-me centenas de vezes com a espalhafatosa e esparramada assinatura de meu saudoso Tio Cassal, autorizando isso ou aquilo. No pátio da antiga e abandonada casa, pude ver o poço - de onde tirávamos cristalina e pura água gelada - atulhado e transformado numa espécie de floreira. Um velho pé de plátano, com o tronco cheio de buracos e condenado à morte, completava o desolador quadro de abandono daquele pátio que foi tão importante nas minhas férias de guri. Ao lado daquele pé de plátano ficava uma gaiola, com o bicho de estimação de meu tio: um gracioso e canoro cardeal. A gaiola ficava com a porta permanentemente aberta. O cardeal comia nas mãos de meu tio, ao amanhecer. E, depois, voava para longe, passando o dia fora. Lá pelas 18h, servindo chimarrão para meu tio, ouvia ele dizer : “Vamos para o pátio que tá na hora do cardeal voltar”. Inacreditável ! O bichinho aparecia. E como por encanto, pousava no dedo indicador do meu tio, que o colocava na gaiola. Onde já estavam um pedacinho de banana mole, uma gema de ovo e alpiste com semente de girassol. Décadas depois, contei isso numa aula de Ecologia. Enquanto me virei para apagar o quadro-negro, tive o dissabor de ouvir este comentário de um aluno da primeira fila: “Que baita atochada! “Quer dizer: passei por mentiroso simplesmente porque estava contando... a verdade! Não se fazem mais alunos como antigamente. Que ainda tinham a perspectiva encantadora do mistério. Como também não se fazem mais tios inveteradamente encantadores. Nem tão pouco se fazem cardeais encantados com a liberdade, embora apaixonados por seu dono. Por que esses tios têm de morrer? Por que esses cardeais são condenados à extinção?

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

NASCEU UM FEIJOEIRO DENTRO DOO DO MEU OPALA - JAMES PIZARRO (DIÁRIO - edição de 11.1.2022)-

Meu primeiro carro foi um fusca 1300, branco, DA 1358, que comprei do médico e poeta Prado Veppo, meu saudoso e querido amigo, também padrinho de casamento. Com este carro fiz diversas viagens a Curitiba durante três anos no início dos anos 70, quando fiz meu curso de especialização em Ecologia do Departamento de Biologia na Universidade Federal do Paraná, a primeira universidade federal brasileira, criada em 1912. Mas também tive outros carros como Variant e Brasilia, até me apaixonar pelos Chevrolet Opala. Com três filhos pequenos, porta-malas enorme, banco traseiro espaçoso, era a meu juízo o modelo ideal para quem tinha prole numerosa e tinha que carregar todo tipo de tralha nas férias. Tive vários Opalas. Mas o que ficou mais famoso entre meus amigos – em especial entre meus alunos da UFSM e do cursinho - foi um Opala branco, duas portas. Por algumas razões que passo a alinhavar. Nunca entendi patavina de máquinas, motores, peças e marcas de automóveis. Nunca assisti corridas de fórmula-1. Quando pifava alguma coisa no motor numa viagem para praia, por exemplo, quem consertava era a minha mulher, que entende tudo de mecânica, tem caixas com ferramentas e sabe nome de chaves e especificações técnicas que aprendeu com seu pai. Entende de eletricidade, platinados, baterias, bobinas, marcas de baterias e assuntos afins que para mim soam como temas esotéricos. De sorte que, sem motivação alguma para carros, os únicos cuidados que tive com os mesmos sempre se resumiram a duas coisas : freios e pneus. O resto nunca dei a mínima importância. Óleo sempre mandei completar, jamais troquei. Jamais gastei dinheiro em lavagem de carro, ainda mais sendo professor de Ecologia. Como não gastava dinheiro com garagem, o carro posava na rua, em frente de casa e era lavado pela água da chuva. Quando caía um temporal e a chuva era demorada eu botava um calção e munido de esfregão ou esponja e sabão, descia para a rua com a gurizada da vizinhança e todo mundo me ajudava a lavar o carro. Era uma algazarra alegre da qual tenho muita saudade. Apesar da cara de espanto e do olhar sizudo de desaprovação de alguns vizinhos nas janelas. Nunca fechei as portas do carro durante a noite . Como eu deixava o carro na rua, com essa medida eu evitava que o mesmo fosse arrombado ou tivesse os vidros quebrados. Uma madrugada eu vi que tinha um cara sentado dentro do carro fumando. Desci e fui lá embaixo falar com ele que ficou muito assustado, pensando que eu estivesse armado. Tratava-se de um morador de rua, conhecido das redondezas, que estava sentado dentro do carro fumando e ouvindo música. Calmamente eu fiz a ele a seguinte proposta : - Eu te autorizo a dormir todas as noites dentro do meu carro desde que tu deixe o cinzeiro limpinho, porque eu não fumo e detesto cheiro de cigarro. Eu saio para a trabalhar antes das 7 e te trago um troço para comer de manhã. Topas ? Ele topou na hora. E dessa forma eu passei a ser em toda a cidade o único sujeito a ter um vigia noturno para cuidar do carro. E ele tinha teto para dormir, música ambiental e café da manhã. Também ficou famosa a história do porta-malas do meu carro. Porque a borracha do porta-malas apodreceu e caiu fora. Chovia dentro e entrava sol pelas frestas. Um dia por aquele espaço onde existia a borracha apareceu um belíssimo pé de feijoeiro. Que fizeram a alegria dos alunos. Que fizeram algazarra e batiam fotografias. Foram me avisar. Abri o porta-malas e lá estava a explicação : dos restos de sacos abertos de carvão para churrasco sobravam pó que serviram de substrato para germinarem algumas sementes de feijão que escaparam de sacos rasgados de feijão comprados do supermercado que, por fototropismo, foram atraídas pelo sol que entrava pelo do porta-malas. Um dia proibiram de circular os carros de placas laranja, lembram ? Deixei o carro estacionado em frente de casa sem usa-lo para não infringir a lei. Certo dia, ao chegar em casa, os vizinhos me avisaram que o meu Opala tinha sido guinchado. Fiquei surpreso. Achei que daria muito trabalho procura-lo, pois detesto burocracia. Fui a uma revendedora e comprei outro carro. Até hoje não sei o que fizeram com meu Opala. Nunca me comunicaram nada. Faz uns 20 anos isso. De vez em quando me bate uma saudade do coitado...