terça-feira, 28 de julho de 2020

OBJETO RASTEJANTE NÃO IDENTIFICADO - James Pizarro (DIÁRIO de S. Maria, pág. 4, 28.7.2020)

Ele gostava muito de automóveis Opala. Pois teve quatro ou cinco deles. Eram resistentes. Podiam aguentar seu pouco caso na conservação de máquinas em geral. Era desligado para aparências. Posses. Bens. Modismos. Os amigos sabiam que ele só lavava o carro quando chovia. Botava um calção e corria com balde e sabão para a calçada. Normalmente, era ajudado pela gurizada da rua que adorava aquela brincadeira com aquele vizinho. Era um carro, digamos, ecológico. Talvez seu Opala mais famoso tenha sido um branco de duas portas. Deve ter ficado com ele mais de dez anos. À medida que os anos passavam, o carro ficava mais leve. Pois certas partes do carro que ficavam velhas e caíam – desde que não fossem fundamentais e não afetassem a segurança – jamais foram substituídas ou repostas. Ele só cuidava rigorosamente de duas coisas : dos freios e dos pneus. Jamais trocou o óleo : apenas completava o nível com óleo de maior densidade. Sempre dava carona para seus alunos : uma frente e quatro no banco de trás. Tinha regras e avisava no primeiro dia de aula em Camobi : “os primeiro cinco alunos encostados no carro eu levo e jamais levo uma aluna mulher sozinha de carona porque a cidade tem muito linguarudo”. Os alunos apelidaram o carro de ORNI : Objeto Rastejante Não Identificado. Ele mesmo dizia : “Bah, esqueci do caderno de chamada lá no ORNI”. Como não dava importância ao carro, deixava o mesmo na rua em frente à sua casa. Achava um gasto desnecessário alugar garagem. Certa noite, ao chegar na janela de madrugada, viu que tinha alguém fumando dentro do carro. Desceu até à rua e deu de cara com um mendigo conhecido na rua sentado no banco do motorista, fumando e escutando rádio. O mendigo, assustado e temendo represália, espantado ouviu esta proposta : “Eu te dou licença prá ti dormir todas as noites aqui dentro do carro desde que tu fume fora dele porque eu tenho pavor de cigarro”. Não raro, antes de dormir, o professor deixava um sanduiche, bolachinhas ou alguns trocados para o zelador do ORNI. A borracha de vedação do porta-malas do Opala havia apodrecido e sido arrancada fora. O porta-molas vivia úmido porque chovia dentro. O professor fazia o rancho, as compras, comprava muitos sacos de carvão, pois adorava fazer churrasco. Certa vez, estava uma aglomeração de alunos ao redor do carro, muitos alunos batendo fotos. Tinha ocorrido algo inusitado que virou uma lenda na UFSM e também no cursinho pré-vestibular. No porta-malas tinha germinado uma semente de feijão (certamente de um saco de feijão rasgado do mercado) e o pé de feijão encontrou substrato naquele pó de carvão e umidade. E gloriosamente estava saindo pela abertura do porta-malas onde deveria existir a borracha de vedação. Saiu até no jornalzinho dos estudantes. A esposa do professor de quando em vez pegava carona com ele até o serviço para ficar com o carro. Ele descia do carro e respeitosamente abria a porta do lado do acompanhante para a esposa descer. As alunas adolescentes ficavam maravilhadas com a gentileza daquele professor com sua esposa. Uma delas chegou a lhe dizer um dia : “Quero arrumar um marido assim, profi, gentil que nem o senhor”. O professor, comovido, agradeceu. Mas ficou com vergonha de contar que a porta do carona do seu velho ORNI só abria pelo lado de fora.

terça-feira, 14 de julho de 2020

AQUELA OLHADA POR CIMA DO OMBRO - JAMES PIZARRO (pág.4 do DIÁRIO,edição de 14.7.2020)

Naquele entardecer de 14 de julho de 1966 fazia muito frio em Santa Maria. E chovia muito. Tempo feio para uma data tão importante. Que certamente não era a data nacional da França. Com a tomada da Bastilha. Mas era uma data de outra tomada de posição. Diante dos familiares. Dos amigos. Da vida. E do mundo. Já no altar da Catedral de Santa Maria, ao lado dos padrinhos e testemunhas, o noivo espera. Pela noiva. E pelo monsenhor Érico Ferrari, oficiante do casamento, que pouco tempo depois seria bispo. E naqueles cinco ou dez minutos de espera, pela sua mente inquieta, desfilaram em imagens aceleradas dois anos de namoro e um ano de noivado. Tudo começou com aquela olhada por cima do ombro que ela lhe deu na “Primeira Quadra” – hoje calçadão Salvador Isaia – depois da saída da sessão de cinema no Cine Glória em 23 de janeiro de 1963. O que ensejou que ele lhe telefonasse naquela noite mesmo na cara e na coragem indagando “sutilmente” se a olhada tinha sido para ele mesmo. Depois de um silêncio soturno, a confirmação que iniciou o romance. O namoro iniciou no último dia do vestibular dele. Ele já trabalhava – com 21 anos – como auxiliar administrativo concursado do SAMDU e dava aulas de Biologia no Santa*Anna e cursinho. Todo dinheiro que ganhava era parte empregado no sustento pessoal e parte investido na compra de móveis e demais objetos para montagem de uma casa, o que enchia de espanto os familiares dela. Pois tinha recém começado o namoro e com pouco mais do que 16 anos, ainda fazendo o Curso Normal no Olavo Bilac. Três anos se passaram e o destemido e teimoso moço alugou uma casa e montou toda a estrutura para morar um casal. E passou ele mesmo a morar sozinho nela. Pediu a moça em casamento quatro meses antes mesmo da formatura dele. Os mais velhos da família, de ambos os lados, viam com temor aquela pressa e achavam uma ousadia. Mas nada podiam objetar porque o moço era estudioso, trabalhador e a moça o queria. Ele trabalhou quase meio século como professor universitário. E também em rádio, TV e jornal. Ela é e formada em Educação Física. No dia de hoje ambos estão comemorando 54 anos de casados. Bodas de Níquel. Para quem estuda Química, o níquel é um material de grande ductilidade, que é a capacidade de suportar deformações, fraturas e rompimentos mesmo quando submetidos a cargas. E também tem grande maleabilidade, além de ser resistente à corrosão e à ferrugem. Nada mais simbólico do que o níquel para marcar estas bodas de 54 anos de casamento. Levando-se em conta que a média de duração dos casamentos no Brasil atualmente é de 4,5 anos apenas, segundo dados do IBGE. Há necessidade nas relações a dois de muita resiliência, companheirismo, paciência, capacidade de perdão, maleabilidade e ductibilidade. Daquela olhada por cima do ombro naquela distante noite de 1963 em plena “Primeira Quadra” brotaram hoje três filhos, seis netos, genros, nora. E a certeza cada vez maior de que não existe nada mais importante no mundo do que a família. Eu te amo, Vera Maria ! Parabéns pelo nosso dia !