segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

CONFIANDO EM DEUS, UMO AOS 80 ANOS - JAMES PIZARRO (DIÁRIO, 28.12.2021)

Meu pai sempre deixou bem claro que gostava mais do ano novo do que do Natal. Questão de temperamento ou motivos cristalizados na infância, não gostava do Natal. Também não era de frequentar igreja. Minha mãe acompanhava a opinião. Mas a gente tinha a entrega de presentes e os protocolares cumprimentos. Vez por outra, minha irmã puxava uma reza. Muitas vezes, devido ao orçamento apertado, ganhei sapatos, roupas e material escolar ao invés dos presentes que gostaria de receber. Era uma época dura. Meu pai levou anos a fio para construir a casa. E eu não reclamava. Pois entendia o sacrifício. Mas ficava chateado. Minha avó Olina sempre dava presentes do meu agrado. Anos depois, quando comecei a namorar quem viria ser minha mulher, passei a ter uma ideia diferente do Natal. Morava junto na casa dela, a vó Elvira Grau, com mais de 80 anos. Luterana, como Edith, minha sogra, que tocava órgão aos domingos no culto da igreja luterana de Santa Maria, RS, a primeira igreja alemã do Brasil a ter sinos em sua torre. Na noite de Natal, o coral da Igreja Luterana visitava a casa dos idosos da comunidade alemã. E entoava lindas canções em alemão. E faziam orações. Minha sogra partilhava cucas, doces feitos com esmero, habilidosa doceira que era. Eles comiam rapidamente, pois tinham de cantar em muitas casas e a noite era curta. Vera Maria, inspirada na educação dada pela mãe, sempre cuidou muito da festa de Natal em nossa casa. Muitos dias antes da data, ela fazia bolos, doces, cucas. Ficaram famosas as bolachas em forma de estrela com recheio de goiabada, que até hoje ela faz e que tanto sucesso tem no meio de todos. Nossos filhos sempre tiveram pinheirinho, presentes, guirlanda na porta da casa e, quando bem pequenos, até Papai Noel visitava nossa casa. Foram anos felizes. Não fui um pai perfeito. Fui o que eu sabia e podia ser. Mas sempre fui trabalhador. Dava aulas na UFSM. Nos cursinhos. Fazia palestras. Às vezes, falava mais do que 10 horas por dia. As crianças puderam ter sempre alimentação farta. Frequentaram os melhores clubes. Pude lhes dar cursinho pré-vestibular de excelente qualidade. Passaram no vestibular no primeiro exame feito. Entregamos ao mundo uma fonoaudióloga, uma fisioterapeuta e um assistente social. Claro, a virtude da formatura é devida ao talento deles. Certamente, não tivemos ingerência alguma. Se tivessem nascido em outra casa e com outros pais teriam alcançado o mesmo êxito. Tive meus equívocos comportamentais. Quando pai moço. E mesmo como pai já velho. Errei muito. Mas acertei também. Vera Maria terminou o curso de Educação Física depois do nascimento dos três filhos. Foi dureza. Foi diretora de uma das maiores escolas públicas da cidade. Mãe dedicada, usava todo seu salário para comprar roupas e presentes para os filhos. Com meus proventos, eu sustentava a casa. Minha mãe e minha sogra ajudaram na retaguarda da criação dos nossos filhos quando pequenos, porque trabalhávamos. Isso só foi possível porque sempre moramos na mesma cidade. Se não, teríamos mais dificuldades. Fruto de luta, acertos e erros, encontros e desencontros, fizemos a nossa parte. Lembro das palavras da reitora da UFN, ao me cumprimentar na formatura do nosso filho : "Sua família pertence ao fechado clube brasileiro onde o pai, mãe e todos os filhos têm curso superior". Os anos passaram. As dificuldades financeiras maiores passaram. Lutamos duro para isso. Por generosidade de Deus estamos com saúde. Estamos com seis netos. Uma neta formada em Engenharia de Produção, outro se forma em Medicina na próxima semana. Uma neta fazendo Pedagogia e outro fazendo Física. Outro neto entrando no Ensino Médio. E uma netinha de 5 anos na escolinha. Todos encaminhados. E na santa ceia que fizemos recordamos muito dos natais antigos. E nosso tempo de crianças. Quando, tementes a Deus, honrávamos pai e mãe. Sem jamais erguer a voz para eles. Quanto mais criticá-los. Lembramos dos cânticos alemães da vó Elvira. E dos cabelos loiros e olhos azuis da minha sempre amada vó Olina. Época em que a gente era muito feliz. E não sabia. Agradeço a Deus pelo ano que tive e rogo a Ele a caridade que me proporcione um feliz 2022, importante para mim. Quero ter a singela alegria de comemorar meus 80 anos, em outubro, com minha mulher e com todos meus descendentes e agregados.

domingo, 19 de dezembro de 2021

1958 - NO ANO DO CENTENÁRIO, CIDADE TEVE EXPOSIÇÃO DE BALEIA DE 60 TONELADAS - JAMES PIZARRO (DIÁRIO - Seção MEMÓRIA - ediçãode 18.12.22021)

Toda vez que, longe de nossa cidade, conto o episódio do gaúcho que laçou o avião – fato amplamente noticiado por revistas nacionais e estrangeiras na época – com detalhes, endereços, fotos e nomes dos envolvidos, fui motivo de piada e tive o dissabor de ouvir frases do tipo “esses gaúchos têm cada história”. Até que reuni tudo o que se tinha publicado sobre o tema e publiquei extensa matéria sobre o ocorrido e publiquei em crônica, em blog e nas redes sociais. Uma segunda história que conto e me causa dissabor é quando digo que no ano de 1958, ano do Centenário de Santa Maria, um gigantesca baleia esteve por vários dias exposta à visitação pública na rua Niederauer na quadra existente entre o edifício Taperinha e o Clube Caixeiral. As pessoas duvidam da veracidade da história... Publiquei esta história na Linha do Tempo do meu facebook e recebi quase 300 comentários com as mais diferentes opiniões. Grande número de pessoas da mesma faixa etária minha me apoiando, avalizando o que eu tinha afirmado e confirmando que tinha visitado a tal baleia. Outros diziam que nunca tinham ouvido falar nessa baleia. E outros me gozando, me chamando de mentiroso. Cheguei a printar os comentários para publicar os mesmos junto com os nomes de seus autores nessa página memorialística de hoje. Depois, achei mais elegante não faze-lo. Essa baleia é d espécie JUBARTE e foi capturada nas costas da Espanha. Depois de percorrer vários países da Europa, África e América do Sul, chegou ao porto de Santos, SP. Dali partiu para várias regiões do Brasil para exposições de “entretenimento de caráter científico”, como dizia seu proprietário, um certo sr. J. Maturana. A baleia, chamada de MOBY DICK, tinha 20 metros de comprimento e 60.000 quilos. Era transportada por um caminhão de 18 rodas. Chegou em Santa Maria procedente do município de Alegrete e ficou estacionada no centro de Santa Maria, entre o Caixeiral e o Taperinha. Ao redor do caminhão foi estendida uma lona preta formando uma espécie de muralha e corredor . O espectador pagava entrada e adentrava por um lado, circundava todo o caminhão observando aquele imenso animal e saia pelo outro lado. Havia um forte cheiro de formol, pois o mesmo estava conservado em 7000 litros de formol que lhe haviam sido injetados para prevenção contra a putrefação. O proprietário explicava – lembro bem – que a baleia já estava sendo exposta no caminhão há três anos e que depois de Santa Maria, eles rumariam para expo-la nas cidades de Cachoera do Sul, Pelotas e Rio Grande. Quero fazer um agradecimento público à arquivista Danièle Xavier Calil, diligente e dedicada chefe do Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria que que de maneira rápida e educada me proporcionou acesso às páginas de A RAZÃO de1958, podendo dessa forma provar aos incrédulos que a baleia realmente esteve no centro de Santa Maria. Infelizmente, à época, não haviam as facilidades das máquinas fotográficas portáteis e nem os celulares, de sorte que não consegui registro fotográfico da MOBY DICK.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

A SOLIDÃO E A AMARGURA DUMA PERNA QUEBRADA... - James Pizarro (DIÁRIO - crônica, 14.12.2021)

Raramente escrevo sobre futebol. Mas lembrei hoje da época em que o Figueroa, ídolo colorado, deixou de jogar. O clube trouxe para o lugar do chileno um jogador de nome Salomon. Não me lembro se argentino ou uruguaio. Para tentar apagar a imagem de Figueroa. O chileno Figueroa sabia falar bonito. Juntava direitinho as palavras. Tinha a excelente impostação de voz. Jeito de declamador até. Cabelos ondeados. E cotovelos de ouro. Fazia uma bela figura na televisão. A torcida feminina adorava Figueroa. A alma colorada se encantou com o ele. Além de jogar excepcionalmente bem, era um emotivo. O torcedor colorado tinha um capitão bonito, inteligente, craque. Ele fez história. Fez nome. Foi legenda. E se foi... Para o seu lugar – argentino ou uruguaio ? – a diretoria do Inter trouxe Salomon. Um homem enorme. Braços pendentes, lembro bem. Algo desengonçado. Uma certa fisionomia de cavalo. E – pasme o amigo que me lê - tinha um resplandecente dente de ouro bem na frente. Um belo trabalho odontológico, me disse um amigo gremista com certo sarcasmo disfarçado. Eu diria que ele lembrava a figura do Stallone. Mas a torcida colorada, passional como sempre foi, não simpatiza com Salomon. Ao invés do bonitão Figueroa de cabelos ondeados e sorriso sedutor, a diretoria traz um sujeito de face equina com um dente de ouro ? A torcida não perdoa. A torcida não ama Salomon. A própria imprensa que ajudara no endeusamento de Figueroa tem má vontade com Salomon. E exibem fotos com sua chuteira e seu pé, Um pé de número 50 !!! O coitado do Salomon não consegue se sair bem. Não acerta. Não joga. Pelo menos não joga aquilo que a torcida esperava de alguém que tinha o peito de substituir Figueroa.. E assim Salomon foi ficando. Jogando mal. Até que o Penharol decidiu compra-lo. Chegou a ser inscrito pelo time do país vizinho para disputar o campeonato nacional deles. Afinal, era uma solução boa para todos. Salomon se livrava do Inter. O Inter se livrava de Salomon. Aí veio o jogo de despedida de Salomon, um GRENAL. Jogado numa quinta-feira, segundo minhas anotações. Uma partida que não deveria ter sido jogada por ele. Uma partida mal gerada. Uma partida com poucos torcedores, inclusive. Nem muitos jogadores titulares tinha. Mas Salomon jogou porque queria se despedir da torcida. O Inter venceu. Mas Salomon, diante de poucos torcedores que nem queriam se despedir dele, foi agredido barbaramente por um “colega” de profissão. E fraturou a tíbia e a fíbula. Que naquela época ainda chamavam de perônio. O Salomon-do-Dente-de-Ouro tinha virado agora Salomon-de-Perna-Quebrada. Todos os jornais abriram manchetes para Salomon. Disseram até que ele passaria seis meses engessado. Falaram que iriam amparar financeiramente Salomon, um atleta de 28 anos. Mas depois daquela noite, em duas ou três semanas, ninguém mais falou ou escreveu algo sobre Salomon. Nem se sabe se o Penharol o contratou com a perna quebrada. Ou mesmo se ele voltou a jogar futebol. Porque na desgraça as pessoas têm memória curta. O que certamente ficou de tudo foi a um atleta com sua perna mais fina. Aposentado do seu trabalho pela deslealdade de um colega. Com sua amargura. E com sua solidão.

sábado, 27 de novembro de 2021

UMA CARTA SEM RESPOSTA HÁ 43 ANOS - JAMES PIZARRO (Seção MEMÓRIA - 27.11.2021 - jornal DIÁRIO)

Na data de 15 de janeiro de 1978, um domingo, o jornal “O EXPRESSO” de Santa Maria, publicou com destaque à página 2 um artigo de minha autoria sob o título “BILHETE PARA O SENHOR PREFEITO”. Passados mais de 43 anos e sem ter obtido até hoje resposta, reavivo a memória da população, pois o conteúdo do que eu propunha continua mais atual do que nunca. Vamos ao texto. SENHOR PREFEITO ! “ Sei que o Sr. É um homem sensível aos apelos que lhe fazem. Sei também que o Sr. É homem muito ocupado. Como sei também que não deve ser moleza governar um município como o nosso. Eu sou um livre atirador, Sr. Prefeito. Professor universitário e homem de imprensa, apartidário e não filiado a qualquer a qualquer delírio coletivista, fico muito à vontade para pensar. E faço força, na medida das minhas limitações, para acertar. Como o Sr. é prefeito de todos nós, inclusive deste humilde escriba, eu me sinto na obrigação de ajuda-lo. Ou denunciando coisas que julgo erradas, como o desmatamento criminoso dos nossos morros. Ou aplaudindo, como no caso da avenida Itaimbé e do Calçadão. Ou sugerindo, como já fiz tantas vezes e torno a fazer hoje. Gostaria que o Sr. incluísse nos seus planos para esse ano que ainda é menino (estamos em janeiro), um plantio de árvores em todas as ruas, avenidas, vielas e becos de nossa cidade. Santa Maria tem a única Estação Experimental de Silvicultura existente no Rio Grande do Sul. Santa Maria tem o único Curso de engenharia Florestal do Rio Grande do Sul. E em nossa cidade já há, pelo menos na faixa infanto-juvenil e adolescente, uma consciência ecológica. A gente moça já tem uma boa vontade tremenda em relação às coisas da natureza, Sr. Prefeito. Não seria o caso da Prefeitura, através de uma campanha bem bolada, usar todo esse potencial que a cidade tem e partir para um planejado plantio de árvores em todos os seus recantos ? Colegas seus, Sr. Prefeito, de outros recantos do Brasil, já entraram nessa. Em belo Horizonte, por exemplo, está se desenvolvendo com sucesso uma campanha coordenada pelo Departamento de Parques e Jardins da Prefeitura, campanha intitulada Dê Carinho a uma Árvore”. Em apenas três meses, com auxílio de toda a população, o seu colega de Belo Horizonte vai plantar 20.000 árvores ! E cada proprietário de casa , na frente da qual foi plantada a árvore, recebe um manual-circular. Onde é ensinado como deve ser feita a preservação da árvore. Já pensou que negócio bacana, Sr. Prefeito ? O Sr. poderia – se aceitar minha sugestão -conceder incentivos fiscais aos moradores que colaborarem com a campanha de reflorestamento da cidade. O Sr. poderia fazer uma redução – mediante concordância da Câmara de Vereadores – entre 5 a 10 % no Imposto Territorial aos proprietários de imóveis residenciais, comerciais ou industriais que apresentarem requerimento a Prefeitura PROVANDO que mantém áreas ajardinadas e cultivam – EM CARÁTER PERMANENTE – espécies de plantas ornamentais em suas propriedades. As mudas podem ser plantadas em regime de “mutirão” com a colaboração da população. E por que não encampar a iniciativa de alguns abnegados santa-marienses que plantam mudas de hortências nas zonas da serra ? Por que não a Prefeitura ordenar que sejam plantadas hortênsias em todas as vias de acesso a nossa cidade ? Sr. Prefeito : o Sr. poderia pedir o auxílio e apoio da UFSM, da Secretaria da Agricultura, do Lions, do Rotary, da Brigada Militar, do Exército, dos escoteiros, das bandeirantes, da Coordenadoria de Ensino. Que tal a ideia ? E o Sr. poderia colocar mais gente, com mais ideias, nessa campanha. O Sr. sabe quantas crianças nascem POR DIA em Santa Maria ? Pois o Sr. poderia enviar às maternidades uma belamuda de árvore para presentear a família do recém-nascido. Seria a melhor forma de homenagear a cada novo munícipe. O pai e a mãe regressariam para casa trazendo o novo membro da família. E trariam junto a muda de árvore que haverá de dar sombra à criança. Sr. Prefeito : será que eu sou um pobre sonhador ? Ou será que sou um pobre maluco que lhe quero encher a cabeça com mais problemas ? Sr. Prefeito : seja um sonhador como eu. E participe das minhas maluquices !”

terça-feira, 16 de novembro de 2021

MINHA PRIMEIRA ROMARIA DA MEDIANEIRA - JAMES PIZARRO (DIÁRIO - 16.11.2021)

Compreendo quem tem insônia. Relevo quem tem sono agitado. Quem é atormentado por pesadelos. Tenho imensa piedade por amigos que têm distúrbios ligados ao sono. À dificuldade de dormir. Porque dos meus nove aos treze anos comi o pão que o diabo amassou por causa desses problemas. Porque sofria de insônia. Noites mal dormidas. Temores noturnos. Quando o sol ia se pondo e a noite se avizinhava, eu já sentia verdadeiro pavor. Meu pai me levou a médicos. Que me perguntavam coisas. Ouvi pediatras dizerem para meu pai que eram distúrbios da pré-adolescência. Que eu era sensível. Um deles disse que eu era "precoce". Lembro como se fosse hoje que eu fiquei estarrecido quando o médico disse isso. Porque eu não conhecia a palavra. Na minha mente agitada imaginei que fosse um tumor, uma moléstia grave. Fiquei tranquilo quando, ao chegar em casa, consultei o único dicionário que existia na época, de autoria do Fernando Fernandes. E fiquei sabendo o que queria dizer "precoce". A medicina não resolveu meus problemas noturnos. Eu continuava a ouvir ruídos. Ouvia gente cochichando. E via coisas. Principalmente fogueiras. Nunca vi pessoas e nem animais. Tudo que eu via era relacionado com fogo. Tinha vergonha e muito medo de contar para os outros. Principalmente sobre as fogueiras. Porque temia que me chamassem de louco. Como a Medicina não resolveu meu problema, a família apelou para outros recursos. Como fazem as famílias até hoje diante de casos insolúveis. Minha mãe me levou então a centros espíritas. A sessões de umbanda. Tomei passes de descarga. Sessões de descarrego. E toda uma terminologia que eu não entendia direito. Numa sessão dessas o médium receitou "Kola Fosfatada Soel", um medicamento feito de ervas muito popular naqueles tempos. E disse que eu teria de comer muita alface na janta. Também não adiantou nada. Até que minha amada avó Olina me levou na romaria de Nossa Senhora Medianeira. A primeira romaria das dezenas que eu iria comparecer depois durante toda minha vida. Lembro que fui todo de branco, com enormes asas de anjo. Carregando uma vela de quase um metro de altura. Alguns amigos meus me esperaram na rua do Acampamento. E quando eu passei um deles gritou : “Tu é um demônio, tu não é anjo”. Porque a minha fama de autor de travessuras na Silva Jardim era grande. Minha avó me dizia que eu rezasse com fé. Que aquelas vozes, aquelas visões de fogo iriam desaparecer. E que eu jamais iria sentir medo da noite. Quando a santinha passou eu olhei para ela e fiquei em estado de graça. Estava tomado pela fé da minha vó Olina. E ela me disse : “Olha para ela...pede agora, com todas as tuas forças.” E eu, chorando, pedi. Com todas as minhas forças. Como minha vó tinha mandado. As vozes realmente sumiram. Nunca mais tive medo. E quando me perguntavam se eu ainda enxergava fogueiras, labaredas, eu mentia. Porque eu continuei a ver aquele fogo durante algum tempo. Eu não queria decepcionar minha avó. E muito menos decepcionar a santinha. Até que um dia – como num passe de mágica - nunca mais enxerguei nada. E até hoje durmo que nem uma pedra.

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

BALEIA EM SANTA MARIA - James Pizarro

No final dos anos 50, entre o edifício Taperinha (ainda em construção) e o Clube Caixeiral estacionou por dias um imenso caminhão carregando uma baleia. A baleia era de grande porte e para ve-la se pagava entrada. Tinha uma cobertura de lona por cima, semelhante a uma barraca, com armações...a gente pagava o ingresso e entrava por um lado, dava a volta no caminhão e saía pelo outro lado...era preta...tinha odor de formol por causa da conservação...lembro como se fosse hj. Foi a primeira vez que a população santa-mariense viu uma baleia. Eu fui ver mais de uma vez e aquilo me marcou muito. MEU PEDIDO : alguém têm fotos ou registros de jornal sobre este fato ? Já procurei muito e ainda não encontrei. Ficaria imensamente agradecido se alguém colaborasse com informações ou fotos e notícias de jornal ou revista.Podem deixar comentário aqui mesmo ou mandar para meu e-mail : jamespizarro137@hotmail.com

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

A ESTRADA - JAMES PIZARRO (DIÁRIO - 02.11.2021)

Desculpe o mau jeito, caro amigo. Mas você acaba de morrer. Morrer você e seu carro. Você é um daqueles caras recolhidos ao Instituto Médico Legal. Você é a nossa triste notícia. Mais uma rotineira manchete. Vamos falar com franqueza : nós detestamos dar notícias tristes. Todos os fins-de-semana, após cada feriadão, procuramos nunca chocar as pessoas. Porque o que gostamos mesmo de falar é da beleza dos ipês-roxos nos morros de Santa Maria. Dos ipês-amarelos do campus da UFSM. Da beleza das quaresmeiras e azaleias. E dos plátanos à beira das estradas. Somos até um pouco exagerados e repetitivos. Vivemos pedindo aos pedestres que tomem cuidado ao atravessar as ruas e avenidas. E não nos cansamos de alertar os motoristas dentro e fora da cidade. Porque em cada rua, preferencial ou não, sempre há uma criança ou um velhinho. E essa gente requer uma atenção toda especial. Fazemos isso não só nos feriadões e fins-de-semana. Mas todos os dias. Existem alguns raros otimistas que acreditam no impossível : que um belo dia ninguém morrerá nas estradas nem nas ruas. É claro que quando isso acontecer – se acontecer – essa será a nossa manchete ! Até lá nós vamos dando avisos. Conselhos. Recomendações. E nem assim, meu caro amigo, você se livrou de morrer ! Não precisa nos dar nenhuma explicação ! Apenas queremos saber que desculpa você vai dar à sua mulher, que está no hospital. Ou a seus filhos, agora órfãos. É melhor não falar nada. Eles não estão querendo desculpas. Eles estão querendo você ! É inútil falar dos freios. Da fechada. Lombada. Ultrapassagem. Sono. Dois dedos de caipirinha. Pressa. Compromissos. Hora marcada. Falta de sinalização. Ausência de policiamento. Falta de estabilidade do automóvel. Defeito do velocímetro. Luz alta. Nós o estávamos esperando de volta. E você falhou. E não foi por falta de aviso. Sempre. Em todos os momentos. A mídia e nós cansamos de dizer que “todo carro é uma arma”. E uma arma que não perdoa desaforo. Agora estamos aqui com seu prontuário de bom motorista. Sem saber o que fazer com ele. Mas isso não é vantagem. Todos nós somos bons motoristas. Os melhores do mundo ! E disso nos gabamos enquanto lemos (porque estamos vivos) a relação dos mortos nas estradas. Enquanto lemos a estória da sua morte. A morte de um ex-bom motorista. Veja : você acabou de manchar de sangue o seu prontuário ! Você acaba de jogar fora a sua vida. Você não tem nenhuma desculpa. Você, meu caro amigo, morreu numa estrada asfaltada que corta o centro do Paraná. E você, meu caro amigo, vai nos fazer muita falta. Que pena !

terça-feira, 19 de outubro de 2021

O OUTRO PROFESSOR PIZARRO - James Pizarro (DIÁRIO - 19.10.2021)

O que lhes passo a contar agora ocorreu na década de 70. E é uma curiosa história. Que resolvi partilhar. Pois ela realmente é inusitada. Regressando de um passeio pelo Rio de Janeiro onde, entre outras coisas, visitaram o Jardim Botânico, Braulio e Edith - meus sogros – contaram-me que uma das aléias do referido Jardim Botânico possuía uma placa, onde estava a seguinte inscrição : “Aléia J. PIZARRO, 1902-1903”. Imaginei logo que deveria ser uma homenagem a um antigo diretor do Jardim BoTânico que, por coincidência, tinha o mesmo nome meu. Alguns dias depois, contando este fato para dois colegas do Departamento de Biologia da UFSM que eram professores de Botânica, indaguei se eles não conheciam publicações deste professor Pizarro, que começava a provocar a minha curiosidade. Diante da resposta negativa, a funcionária do departamento encarregada do fichário de livros na época – dona Maria – disse-me que já havia lido algo a respeito. Procurou no seu fichário e numa rapidez que me espantou , entregou-me um exemplar da revista RODRIGUESIA, de abril de 1945, revista do Jardim Botânico do RJ. Pois lá estava, na página 69, o retrato e a biografia do professor Pizarro. Li avidamente. E fiquei sabendo que o professor J. Pizarro nasceu em Pernambuco em 1842, exatamente cem anos antes de mim, pois nasci em 1942. E morreu num dia 21 de fevereiro, que é o dia de nascimento da minha mulher e também dia de nascimento do meu segundo filho que, por incrível que possa parecer, também se chama James. Fiquei gostando tanto destas coincidências e achei tão simpático o referido professor (com seus cabelos brancos e um enorme e bem cuidado bigode), que resolvi escrever para o Jardim Botânico solicitando mais dados a respeito do mesmo. Ele ingressou aos 17 anos no Colégio Pedro II, onde colou grau de bacharel em Ciências e Letras. Em 1866 doutorou-se em Medicina, dedicando o melhor de suas atividades ao estudo das Ciências Naturais. Ingressando no Museu Nacional, aí fez conferências sobre assuntos pertinentes àquelas áreas. Ocupou cargos na Administração, Diretoria Geral e Chefia das Seções de Zoologia, Antropologia, Paleontologia e Botânica. Da Botânica, ele preferiu o ramo que se relaciona com as plantas medicinais e sua classificação. Em 1872 foi catedrático da Faculdade de Medicina mediante concurso. Além de professor, o Dr. Pizarro foi representante do Brasil na Exposição de Viena. Foi diretor do Asilo dos Menores Desvalidos. Foi vice-diretor da Faculdade de Medicina e professor de Medicina Legal da Faculdade de Direito do RJ. Foi cirurgião da Armada por ocasião da Guerra do Paraguai. Teve várias condecorações. Morreu no dia 21 de fevereiro de 1906. A lista dos seus trabalhos não é avultada em quantidade, mas em qualidade e importância do seu conteúdo. Sua tese de doutoramento, a par dos aspectos clínico-cirúrgicos, traz interessantes estudos químico e farmacêutico dos alcaloides das estriquíneas. Também publicou tese sobre as “Solanáceas Brasileiras” e um trabalho sobre “Fundamentos da Fitografia Médica”. Depois de saber tudo isso a respeito do professor pernambucano J Pizarro, sobrou-me - além da admiração pelo seu trabalho e a imagem de um exemplo a ser seguido – uma ternura quase inexplicável, que tentei registrar aqui nestas poucas linhas. Saiba pois, querido professor Pizarro, onde estiver que – mesmo tantos anos depois de sua morte, ocorrida em 1906 – o senhor conquistou meu respeito, carinho e vigorosa admiração.

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

DIA DOS ANIMAIS - JAMES PIZARRO (DIÁRIO - 5.10.2021)

Ontem, 4 de outubro comemorou-se o Dia Internacional da Natureza, o Dia dos Animais e o Dia de São Francisco de Assis, patrono mundial da Ecologia. Quero, então, fazer uma importante recomendação. Trata-se de um programa para ficar bem-informado sobre as principais ameaçadas à fauna brasileira e sobre o que está sendo feito para reduzir impactos negativos. O “1º Seminário da Fauna Brasileira – Os desafios da conservação” ocorreu em julho deste ano, promovido pela Fauna News e pela Agência Envolverde. Especialistas que pesquisam e trabalham com tráfico de fauna, caça, atropelamentos de animais silvestres em rodovias, e a relação entre saúde pública e fauna, estiveram reunidos em painéis temáticos, apresentando os trabalhos desenvolvidos para enfrentar esses problemas. O evento foi gratuito, transmitido pelo perfil no Facebook da Envolverde e Fauna News, e pelo canal do YouTube da Envolverde. Os principais pontos abordados foram os seguintes: Tráfico de fauna – perdendo a liberdade para viver como bicho de estimação; Caça – uma prática ilegal com lobby no congresso; Atropelamentos de animais em rodovias – como reduzir o massacre das rodovias e Fauna silvestre e saúde pública – humanos e animais em risco. Recomendo, ainda, um dos livros mais vendidos na Itália, de autoria de um padre franciscano, tem por título “Os animais também têm alma”. E em diversas igrejas, no dia 4 de outubro, é comum os sacerdotes promoverem celebrações especiais com bênção aos animais de estimação. Deve-se lembrar, também, da “Declaração Universal dos Direitos dos Animais”, proclamada pela Organização das Nações Unidas (ONU) para a Educação, a Ciência e a Cultura (), em sessão realizada em Bruxelas, na Bélgica, em 27 de janeiro de 1978. A declaração traz que “todos os animais têm direitos”. O desconhecimento disso faz com que o ser humano cometa crimes contra os animais. O texto destaca que se deve “ensinar, desde a infância, a observar, a compreender, a respeitar e a amar os animais”. Dentre os direitos dos animais devemos destacar: Art. 1º – Todos os animais nascem iguais perante a vida e têm os mesmos direitos à existência Art. 2º – O homem, como espécie animal, não pode exterminar os outros animais ou explorá-los violando esse direito; tem o dever de por os seus conhecimentos ao serviço dos animais Art. 2º, 3 – Todo o animal tem o direito à atenção, aos cuidados e à proteção do homem “Art. 6º, 2 – O abandono de um animal é um ato cruel e degradante Art. 7º –Todo o animal de trabalho tem direito a uma limitação razoável de duração e de intensidade de trabalho, a uma alimentação reparadora e ao repouso Há também o Dia Mundial dos Animais de Rua, celebrado em 4 de abril. Nesse dia, homenageia-se os animais abandonados e que vivem nas ruas. Em Santa Maria, diversas pessoas recolhem e cuidam de animais abandonados, muitas vezes, com enorme sacrifício, sem ajuda oficial de ninguém. Existem médicas veterinárias que fazem trabalhos meritórios nesse sentido, além de ONGs e entidades que se dedicam a esta função, como o Criadouro São Braz e o Hospital Veterinário da UFSM, mas precisamos avançar. Sensibilizar o mundo oficial, sobretudo.

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

A MINHA DURA LUTA ECOLÓGICA - James Pizarro

No final dos anos 70/80 tentei explicar à comunidade através da mídia, com clareza e sem rodeios, o verdadeiro impacto ambiental provocado pela construção civil, sem controle, em nosso município. Eu tinha a intenção de fazer com que as empresas construtoras exigissem dos fornecedores certificados de que estes estavam agindo de acordo com as normas ambientais (leis, códigos, certificados de impacto ambiental, etc...). Muitos engenheiros e construtoras foram sensíveis ao tema, tendo entrado em contato comigo num primeiro momento. Mas a maioria das pessoas ligadas à área tratou de me ridicularizar, acusando-me de ser contra o progresso da cidade. Lembro de uma declaração do saudoso Dr. Wilson Aita, docente do Curso de Engenharia Civil da UFSM, que disse - em meu socorro - "que era necessário que a exploração dos recursos naturais fosse feita de maneira racional e organizada, dentro da Lei". Eu entendia que essa transformação iria precisar de tempo, de compreensão, de paciência e que, principalmente, estruturas mínimas deveriam ser criadas para permitir a adequação dos exploradores, tais como linhas de financiamento, custos compatíveis. Nunca fui cretino nem catastrófico para querer paralisar a construção de edifícios ou algo nesta linha. Mas queria que a cidade raciocinasse sobre a utilização dos recursos da Natureza para o bem-estar do homem, utilização adequada e dentro das normais ambientais vigentes, ações que minimizassem os danos e, também, meios de reparar os danos causados. Na realidade, eu queria expor - há quase meio século - para um público sem visão ambientalista, sem cultura ecológica, uma série de indagações... A madeira usada naquela época na construção civil vinha de onde ? Esta madeira possuía "selo verde" ? Ou grande parte dela representava uma gigantesca fatia retirada de florestas que estavam em extinção acelerada ? Rochas usadas no piso e no revestimento das construções (granito, ardósia, quartzitos) são degradação em estado bruto. De onde vinha este material ? Onde são extraídos não se formam crateras lunares, montanhas de rejeitos, desmatamento e assoreamento dos cursos de água ? O que falar do processo de extração e beneficiamento do calcário, que dá origem ao cimento, principal insumo da construção civil ? Já tinha sido feito um levantamento criterioso da destruição de grutas, de cavernas, da poluição dos rios e do ar ? Quais os responsáveis pela fiscalização desse setor de mineração, que relatórios públicos a população poderia consultar ? Uma particularidade curiosa em tudo isso é que esta poluição causada, direta ou indiretamente, pela construção civil não lhe produz o ônus social da degradação. Os impactos são, em sua grande maioria, invisíveis aos que moram na cidade. Mas existem os danos diretos, visíveis, causados pelos canteiros de obras, encontrados nas ruas e avenidas dos centros urbanos. Os danos são múltiplos, tais como a destruição do patrimônio arquitetônico, onde casas antigas, tradicionais, tombam como se fossem árvores na floresta. Há o carreamento dos resíduos de construção para os sistemas de drenagem urbana, entupindo bueiros, bocas-de-lobo, galerias, poluindo margens de córregos, ajudando a aumentar enchentes, alagamentos e derrubando casebres e ferindo gente. Cito um exemplo que me ocorreu. A repórter Ehlen Almeida publicou em "A RAZÃO" reportagem sobre a destruição de centenas de árvores em pleno centro da cidade para que, em seu lugar, fosse construído um imenso conjunto de prédios residenciais. O empresário Carlinhos Costa Beber fez coro aos meus protestos no programa "Sala de Debate", da rádio Antena Um, saindo em minha defesa. Mas a destruição estava feita. E nem ao menos se ficou sabendo, à época, se havia licença para que aquilo fosse feito. Poderia citar o vidro empregado nas construções, a extração de areia e a alteração da paisagem, com assoreamento dos cursos de água e destruição da paisagem. O alumínio e a fantástica quantidade de energia usada em sua fabricação, além da poluição causada pela extração da bauxita. A brita e os problemas causados pelas pedreiras, com destruição de áreas de preservação permanente, explosões que perturbam o sossego público, o desmatamento muitas vezes produzido. A fabricação de tijolos e a fantástica quantidade de lenha que é consumida em sua fabricação, além do que a extração de argila afeta as zonas baixas, lagoas e matas ciliares. Além da construção civil, o setor moveleiro e as indústrias de embalagens poderiam ajudar a frear a retirada ilegal e indiscriminada de madeira das florestas se passassem a exigir com firmeza de seus fornecedores a certificação ambiental. Mas tudo isso passa por sensibilidade, por educação ambiental, por vontade política, por diminuição de ganância, por mudança de comportamento. Graças ao apoio da Promotoria Pública, numa grande campanha que promovi contra as pedreiras instaladas dentro do perímetro urbano e que destruíam áreas de preservação permanente, os morros que cercam a cidade estão preservados. Consegui, mediante denúncia sistemática em Porto Alegre e Brasília, com apoio da Justiça local, na década de 80, o fechamento da pedreira da UFSM (onde eu era professor de Ecologia do Departamento de Biologia), pedreira Link, pedreira do Morro do Cechella, pedreira da Viação Férrea, etc...Mas a maior vitória nesse sentido foi o fechamento da pedreira do Morro do Cerrito, explorada pela Prefeitura Municipal à época, atividade proibida por lei municipal e pelo Código Florestal vigente na época, por constituir-se aquele morro no último resquício de mata nativa situado dentro do perímetro urbano. Foi talvez, a maior vitória que consegui quando “estive” vereador nessa cidade, com uma proposta ecologista de mandato. Dia destes, ouvindo uma rádio local, fiquei a escutar atentamente uma entrevista dada pelo Dr. Walter Bianchini, dono das fábrica de facas Coqueiro, de Arroio do Só, professor aposentado da UFSM e ex-secretário dos governos do Rio Grande do Sul e de Roraima. Ele dizia claramente : "Os morros de Santa Maria continuam de pé por causa da obstinação do professor James Pizarro". Tão acostumado a levar somente bordoadas, fiquei emocionado em ouvir este reconhecimento público. E fui dormir feliz aquela noite.

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

O SAUDOSISMO NUNCA ESTEVE TÃO NA MODA - JAMES PIZARRO (DIÁRIO - 21.09.2021)

No final dos anos 1970, residi por pouco mais de dois anos em Curitiba para fazer minha especialização em Ecologia no Departamento de Biologia da Universidade Federal do Paraná que, pouca gente sabe, foi a primeira universidade brasileira criada (fundada em 1912). Foi também um período em que muito frequentei o teatro Guairinha (o teatro Guaira, maior, estava em reformas por causa de um incêndio) e o teatro Paiol. Muitas vezes, fui a São Paulo naquela época, nos fins-de-semana, também para assistir peças de teatro, musicais, lançamentos de filmes e até me abastecer de livros novos. A inflação era de menos de um por cento ao ano, era uma época de ouro para um professor universitário se especializar e entrar de cabeça em atividades culturais, coisa impensável nos dias atuais. Anos depois, já aposentado, por dez anos morei na praia de Canasvieiras, em Florianópolis. Embora com menos frequência, sempre que podia e o dinheiro permitia dava uma esticada rápida a São Paulo que, a meu juízo, continuava (e continua) imbatível em termos de acontecimentos culturais. Numa das idas à capital paulista fique sabendo da existência da chamada "Casa do Saber". No site da mesma está bem clara as razão da existência da mesma : "é um centro de debates e disseminação do conhecimento em São Paulo, que oferece acesso à cultura de forma clara e envolvente, porém rigorosa e fiel às obras dos criadores. Num ambiente extra - acadêmico, a Casa do Saber oferece cursos livres, palestras e oficinas de estudo nas áreas de artes plásticas, ciências sociais, cinema, filosofia, história, música e psicologia, reunindo renomados professores e conferencistas. As palestras e os cursos, estes com duração de um a seis meses, apresentam o diferencial de serem ministrados em pequenos grupos, para promover a troca de ideias e maior interação entre os participantes e os mestres." Para exemplificar, porque minha memória é excelente : na semana que começou em 19/maio/2010, a Casa do Saber programou palestras e debates sobre o tema "saudade". E analisaram a "saudade" sob os pontos de vistas antropológico, filosófico, literário e poético. Os palestrantes eram Roberto Da Matta e Moacyr Scliar. Eu tenho as minhas reservas com São Paulo, mas tenho de reconhecer o seu gigantismo cultural, seu cosmopolitismo, as iniciativas envolvendo literatura, pintura, escultura, cinema, teatro, dança. Enfim, a coragem de colocar em pauta temas ousados. Eu tenho escrito muito a respeito de memorialística, recordado coisas, exercitado meus neurônios. E lhes asseguro que existe um público imenso que adora ler e trocar ideias, fazer sugestões e críticas sobre temas que envolvam saudosismo. Eu sei pelo número de e-mails, telefonemas que recebo e até bilhetes e recados que deixam na portaria do condomínio onde moro. Os que acham que serão jovens para sempre nem se dão conta que o Brasil está se transformando, proporcionalmente, num dos países com uma fatia assombrosa de idosos em sua população. Afinal, em qual cidade do país a gente pode sair e avisar em casa que vai demorar um pouco porque vai ouvir conferência e discutir o tema "saudade"? Em qual cidade existe uma "Casa do Saber" aberta ao público gratuitamente?

terça-feira, 7 de setembro de 2021

JULINHO BRENNER - JAMES PIZARRO (DIÁRIO -7.9.2021)

Júlio César de Almeida Brenner – meu saudoso amigo Julinho – graduado em Ciências Contábeis e pós-graduado em Administração de Empresas pela Universidade Federal de Santa Maria. (UFSM), onde também foi o primeiro professor deficiente físico cadeirante, ministrando aulas para o curso de Ciências Contábeis. Coordenou o Laboratório de Informática do Centro de Ciências Sociais e Humanas, e foi dono de banca de revistas. Julinho viveu 55 anos como cadeirante, e apesar das dificuldades, nunca desanimou e fez a diferença no meio onde viveu. Fundou a Associação Santamariense de Deficientes Físicos, foi presidente do CPM de uma escola de Ensino Fundamental e vereador de Santa Maria de 1997 a 2008. Foi presidente da APAE de Santa Maria e incansável na busca de melhores condições para a instituição. Julinho nasceu em 1º de Janeiro de 1946, em São Borja. Filho de Almiro e Perpétua Brenner, teve uma infância saudável, onde brincava com a irmã de três anos mais nova, chamada Maria Isabel. Aos 11 anos, ele enfrentou a primeira perda, quando seu pai veio a falecer. Aos 13 anos, em um mergulho na piscina do Avenida Tênis Clube, bateu a cabeça e ficou deixou tetraplégico. Julinho, com o apoio incondicional da mãe, dona Perpétua, conhecida como dona Péta (falecida em 2012 aos 95 anos de idade), voltou a estudar e, com muito esforço, aos 22 anos de idade, abriu uma banca de revistas: a Julio’s Stand. De dia, trabalhava e, à noite, estudava. As dificuldades não lhe roubaram o sorriso do rosto. Aos 32 anos, se formou e se casou com Nedi Goulart Brenner, com a qual teve os filhos, Fábio e Lívia. Em 1981, fundou a Associação Santamariense de Deficientes Físicos (Asadef). Foi presidente do Clube de Pais e Mestres do Instituto de Educação Olavo Bilac, onde os filhos estudavam. Após se destacar nas áreas social e educacional, em 1996, incentivado por amigos, concorreu às eleições para o Legislativo Municipal de Santa Maria e foi eleito com 2.415 votos. Feito que repetiu em 2000 (com 3.854 votos) e, em 2004, com 2.751 votos. Ao longo de 12 anos como vereador de Santa Maria, lutou pela educação e por qualidade de vida das pessoas portadoras de deficiências. Com a frase “você não faz parte do problema, mas pode fazer parte da solução”, esteve sempre envolvido com a melhoria de qualidade de vida de pessoas com necessidades especiais. Quando foi presidente da Câmara de Vereadores, insistiu até me convencer a fazer um comentário semanal na TV Câmara, Canal 16, que eu não queria fazer de modo algum. Finalmente, diante da insistência dele, o programa foi ao ar com o título de “Tema Livre” e obteve tanta repercussão que os outros dois presidentes da Câmara de Vereadores que sucederam o Julinho mantiveram o convite e eu fiquei no ar. Julinho foi com a esposa Nedi à rodoviária se despedir de mim e da Vera quando embarcamos para morar 10 anos na praia de Canasvieiras. Jamais esqueci deste gesto de amizade ele. Assim, era o meu querido amigo que nos deixou recentemente. Antes de partir, deixou para Nedi esta carta singela que ela me mostrou : “Querida, tu é minha vida. Não esqueça de mim. Cuida do Scooby e dos filhos, do Fábio e da Lívia. Obrigado pelo teu amor, carinho, por todo cuidado. Estarei contigo por toda minha vida, e do céu te olharei para sempre. Quando estiver com saudades pensa em mim. Reza por mim, e quando estiver triste, ouça “o Guassupiano”, e vai lembrar de mim. Desculpa por tudo que eu deixei de fazer. Sou teu fã nº 1, porque tu é ótima, guerreira, bondosa, querida, alegre e é assim que eu quero que tu seja para sempre. E, quando a gente se reencontrar, que sejamos felizes de novo”. (Julio Brenner)

terça-feira, 24 de agosto de 2021

O CORVO - James Pizarro (DIÁRIO - 24.08.021)

Família da classe média do interior gaúcho. Pai comerciário. Caçador de perdizes. Dono de um carro antigo. Um velho Ford "de bigode". Mãe professora de piano e dona de casa. Três filhos pequenos. Duas gurias e um piá. Durante as férias, viajavam para a pequena cidade de Cacequi. Estrada de chão batido. Mar de lama quando chovia. O valente Ford atolava. O pai descia. Botava correntes ao redor dos pneus. A mãe puxava a cortina de couro das janelas. As três crianças encolhidas no banco traseiro. Frio de renguear cusco. Chuva inclemente. Chegavam ao destino horas depois. Passar alguns dias na "casa" do irmão do pai. Na realidade, uma hospedaria. No recinto da estação ferroviária. Abrigava passageiros do trem. Dava comida. Servia lanches. Os irmãos maiores toleravam essas "férias". A menor das gurias detestava. Ficava olhando aquela gente estranha. Velhos gaúchos pilchados. Fumando palheiro. Tomando seu gole de cachaça. Chimarreando. Comendo o prato feito que a tia servia aos hóspedes. Enquanto a mãe ajudava na cozinha. E o pai conversava fiado. A menina odiava, sobretudo, o corvo. Sim, um corvo de estimação! Que ficava sempre pousado na janela da cozinha. O corvo ficava esperando tripas de galinha. Restos de carne dos pratos. Vísceras. O corvo saía caminhando entre as mesas. Festejado pelos hóspedes. Orgulho do tio. Que acariciava o pescoço pelado do corvo. Que crocitava, agradecido. Introspectiva nos seus oito anos, a menina ficava olhando aquilo. Com seus olhos de espanto. Além do asco pelo corvo, ficava comparando o tratamento que recebia. Os tios davam mais atenção ao corvo do que a ela. Esta cena jamais sairia da sua memória. Para o resto da vida. Vida que ela continua a olhar com seus grandes e lindos olhos. Agora, não mais de espanto. Mas de encantamento. Do alto da Galeria do Comércio, onde mora com o marido, só contempla passarinhos coloridos do pátio da casa do Dr. Mariano. Os morros da cidade. As torres da catedral. As nuvens que passam formando desenhos lindos. E o bonito morro da Caturrita. Com as antenas da TV. Seus olhos lindos aguardam os netos que chegam para visitas. O corvo ficou sepultado no passado. O marido, quase octogenário, ainda a olha com olhos de adolescente. Olhos de amor do tempo antigo. De amor para sempre.

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

FAZER CARA DE DEMÊNCIA PARA NÃO SE INCOMODAR - JAMES PIZARRO (DIÁRIO - edição de 10.8.2021)

Numa dessas últimas madrugadas, enquanto aguardava mais uma série de provas e jogos das Olimpíadas de Tóquio, meus pensamentos errantes – sei lá por quais motivos inconscientes - me levaram para o Hospital de Caridade Astrogildo de Azevedo. Corria o ano de 2015. E fiquei 17 dias internado. Fiz as contas : 17 dias x 24 horas = 608 horas. Medidas de sinais vitais a cada 4 horas. Taxas. Soros. Antibióticos potentes. Coleta de material para exames. Várias refeições e lanches. Óleo da canola na perna com erisipela. Curativo no cateter da subclávia. Insônia. Programas de rádio. TV. Piedosas visitas do padre. Consoladoras e simpáticas conversas com os paramédicos. Tempo que não passa para o (im)paciente. Pensamentos fervendo a mil. Visitas inesperadas de pessoas surpreendentes. Visitas prometidas de pessoas queridas e que não se concretizaram. Visitas de pessoas desconhecidas e que emocionaram um velho coração. Dramas humanos pungentes de doentes de quartos vizinhos. A solidariedade pela dor. Passeios de mãos dadas pelos corredores com jovens fisioterapeutas e seus exercícios aeróbicos nas janelas. Macas que cruzam com cadáveres cobertos com lençóis. Cadeiras de rodas com doentes baixando e outros dando alta. Pessoas abraçadas chorando um óbito. Outras sorrindo comemorando o nascimento de um neto. Eis a rotina de um grande hospital. Não é um local só de tristezas. E de morte. É um local de coisas alegres. Renascimentos. De brindes à Vida. Nunca fiquei tão convicto na minha vida de que a coisa mais importante é a SAÚDE ! Desde aquela internação venho movendo céus e terra para investir na melhor qualidade de minha saúde (que já era muito boa). Mas que - por idiotice - não vinha lhe dando o devido valor. Meti na cabeça que quero ver a formatura dos meus seis netos antes de morrer. Dois já se formaram. Mais dois ainda estão cursando a universidade. Um está começando o ensino médio. E o outro está na escolinha. Talvez seja difícil ver a formatura da sexta netinha que está com 4 anos. Mas vou pelear. Pelo menos serve de motivação para prolongar a longevidade. Para tanto conto com alimentação orgânica preparada pela Vera e vinda de fornecedor especializado, com orientação da nutricionista, o que já me eliminou mais de 30 quilos. Duas sessões semanais a domicílio com fisioterapeuta para evitar perda de musculatura causada por 14 meses de isolamento social e vida sedentária. Remédios prescritos pela Dra. Jane e tomados rigorosamente. Tomo outras providências secundárias também ! Jamais ir a reuniões de condomínio. Jamais abrir vídeos ou propagandas ou fakenews político-partidárias no facebook. Não responder a qualquer provocação. Faço cara de demência quando pretendem me “cutucar”. Para complementar este tratamento de obter qualidade de vida saudável : muita música, boa leitura, oração, reflexão. Não entro em controvérsias. Não polemizo. Não gasto energia em temas como política, religião, futebol. Mas longe de mim criticar quem o faça, por favor ! Estou apenas justificando a posição do quase octogenário professor universitário aposentado que quer curtir seu ostracismo na santa paz cercado por seus filhos, netos e sua mulher. Nessa etapa da vida, quando acordo ao amanhecer e sento na cama, sempre digo em voz alta : “Obrigado, Senhor, por mais 24 horas”. A alegria que me invade por estar vivo a cada manhã não tem preço.

terça-feira, 27 de julho de 2021

RAYSSA, A SORRIDENTE FADINHA DE PRATA - JAMES PIZARRO (DIÁRIO - edição de 27.07.2021)

Rayssa Leal – com seu jeitinho de menina travessa e sorriso de simpatia invulgar – conquistou não só o país. Com seu corpo leve e mais parecendo um anjinho caído do céu, conquistou o planeta. A mídia. Os juízes. Os corações. Aos 13 anos de idade, Rayssa é a mais nova medalhista olímpica de todos os tempos. Seguramente, seu rosto está hoje em todos os jornais, revistas e TVs do mundo. É a rainha das Olimpíadas de Tóquio a nossa fadinha nascida em Imperatriz. Fiquei a noite toda acordado para vê-la. Senti – desde sempre – que ali naquela menina estava um dos tantos fenômenos brasileiros que, milagrosamente, costumam eclodir de tempos em tempos. A despeito de todas as dificuldades e falta de apoio. E da ajuda gigante dos pais e familiares. De professores abnegados. De clubes interessados. Por curiosidade fui consultar meus livros de latim, grego, etimologia. Fui conferir o Google. Tudo para saber o significado real do nome Rayssa. E o resultado da minha consulta não poderia ser outro. São vários os significados : líder, mais relaxada, calma, romântica, tranquila, chefe, rosa(entre outros). Mas o consenso entre os etimologistas é que o significado mais comum seja “tranquila”.. Realmente, quem assistiu todas as eliminatórias e as sete provas que cada skatista fez durante cada bateria pode constatar o nervosismo e a tensão da maioria das concorrentes em contraste com a alegria, sorriso permanente e extrovertido comportamento da nossa fadinha. Que tratava de se divertir e incentivar as concorrentes depois de suas apresentações. Fiquei a lembrar das dificuldades que os praticantes de skate enfrentam nas cidades para a prática de seu esporte e das incompreensões que sofrem. Está certo que este esporte não pode ser praticado numa via destinada ao pedestre, como por exemplo, o calçadão Salvador Isaia. Nem em vias de intensa movimentação automobilística., por razões de segurança deles mesmos. Mas as autoridades da cidade, a Prefeitura Municipal, os presidentes de clubes, os responsáveis pelas universidades locais e seus “campi” – sobretudo depois da conquista de nossa fadinha Rayssa Leal - têm de pensar seriamente em instalar e fazer proliferar pistas de skate em nossa cidade para a prática desse esporte olímpico. Os familiares dos skatistas merecem ser apoiados e incentivados em nossa comunidade. E porventura -preconceitos e mentes obscurantistas sobre a prática dessa modalidade esportiva - devem ser banidos. Afinal, estamos com a segunda melhor praticante de skate do mundo no país. Confesso – manteiga derretida que sou – que chorei, enternecido de amor, pela Rayssa !

sexta-feira, 23 de julho de 2021

MEU AVÔ FREDOLINO : FERROVIÁRIO, ESPORTISTA E CATÓLICO FERVOROSO (DIÁRIO, Seção MEMÓRIA, edição 23.07.2021)

Era domingo de manhã. Eu havia chegado tarde da noite. Era 14 de junho de 1965. Estava cursando o terceiro ano da (então) chamada Faculdade de Agronomia da UFSM. Morava separado da casa da família. Meu quarto era no fundo do pátio. Onde ficava assegurada minha privacidade. Acordei pelas 8h da manhã com os gritos da minha mãe. Que esbordoava a porta do meu quarto pedindo socorro. Meu avô morava na casa ao lado. Estava caído no chão da cozinha. Gemia com muita dor no peito. Meio desacordado. Chamamos um taxi, naquela época chamado de "carro de praça" da 810. Levado ao hospital, foi sedado. E iniciaram os exames para o diagnóstico. Só à noite descobriram que era um aneurisma na aorta. Que estava por rebentar. A única solução era uma cirurgia de emergência como tentativa derradeira. Minha avó estava desesperada. Amava meu avô. O cirurgião disse que tínhamos de providenciar doadores de sangue naquela hora. Pois não existiam bancos de sangue na cidade naquele tempo. Enquanto minha namorada Vera Maria ficava no hospital, fui para a rua à cata de doadores. Consegui alguns nos quartéis da cidade. Mas eles foram desnecessários. Mal a operação havia iniciado, a aorta rompeu-se e esguichou sangue por todo o bloco cirúrgico. Meu pai, enfermeiro, auxiliava na cirurgia como instrumentador. Quando subi ao segundo andar da "Casa de Saúde", em Santa Maria, eu o vi com o avental ensanguentado. E os médicos também. Meu pai chorava. Eu tive a péssima ideia de entrar no bloco cirúrgico enquanto retiravam o cadáver de meu avô. Duas funcionárias já providenciavam na limpeza. O local me pareceu mais um abatedouro. Como se tivessem sangrado um porco. Quando desci ao térreo, minha mãe estava desolada. E me disse : "Tu és a pessoa mais ligada com a tua avó, tu tens de contar pra ela". Coube a mim falar para minha amada avó. Ela se agarrou a mim. Ficou muda. Petrificada. Com olhar de espanto. Nunca haverei de me esquecer daquela noite. O carro fúnebre levando o corpo do meu avô para casa. Porque naquela época os corpos eram velados em casa. O carro subindo a avenida Rio Branco, coberta de densa cerração. E minha avó, com a cabeça deitada em meu ombro, soluçando, num taxi que nos levava. Porque ninguém da família possuía carro naqueles tempos de dureza. Daquela hora em diante, eu e minha namorada - com quem casei - ficamos exclusivamente cuidando da minha avó. O enterro teve grande acompanhamento, pois meu avô era muito querido no meio dos ferroviários. No Clube de Atiradores Santa-mariense. No grupo de bolão "7 de setembro". Na Igreja Católica, onde ele fazia parte dos Vicentinos. ”Seu Fredolino”, como era chamado, foi um homem severo, duro, sério, de rígidos padrões morais. Trabalhou 44 anos na ferrovia sem nunca ter tirado atestado médico ou faltado ao serviço . Eu não fui ao enterro. E nem deixei minha avó ir. Vi aquela enorme fila de carros atrás do carro fúnebre subindo a rua Silva Jardim. E ficamos em casa eu, minha namorada e a vó Olina. Ela apertou minha mão e me disse que não podia haver coisa mais triste do que aquela. Anos depois eu ficaria de mãos com ela na hora de sua morte. E nestes últimos anos morreram meus pais e meus sogros. Tempos mais modernos. De se morrer sozinho no CTI, UTI ou UNICOR. Não importa a sigla burocrática. Ouvindo ruídos de eletrocardiógrafos. Respiradouros artificiais. Tubos de oxigênio no máximo de sua pressão. Murmúrios de vozes. Rostos estranhos. Máquinas que tentam fazer o impossível. Sem ninguém para apertar suas mãos. Como provavelmente também morrerei eu. Sozinho. Ah...lembrei que o Tarso, um dos meus netos, se formou em Medicina na UFSM neste ano de 2021. Com um pouco de sorte quem sabe ele esteja de plantão por lá. Para agarrar minha mão. Quando chegar o meu dia e a minha vez. Enquanto a vida for se esvaindo. Como o som do clarinete do meu amado Benny Goodmann. Seria muita sorte deixar este planeta com um neto médico apertando minha mão.

sexta-feira, 16 de julho de 2021

A primeira aula marca a alma da gente para a eternidade - James Pizarro (DIÁRIO, SEÇÃO "MEMÓRIA" - 16.7.2021)

Sou do tempo em que o então chamado Grupo Escolar João Belém funcionava no prédio onde hoje está o Maneco, em Santa Maria. Ali fui matriculado – com 6 anos de idade – no que era chamado de Jardim da Infância. Assim é que, nos primeiros dias do mês de março de 1948, comecei a estudar. Agarrado à mão de minha mãe, fui levado e entregue na penúltima porta do corredor do primeiro andar à mestra Luiza Leitão. De cabelos brancos, ela foi a minha primeira professora, da qual guardo enternecedora lembrança. Ela me recebeu carinhosamente, o que fez se dissipar qualquer resquício de medo do meu assustado espírito. Muito embora eu tenha sentido um inesquecível aperto no peito quando vi minha mãe me abanar e desaparecer pelo corredor. Lembro detalhadamente desse primeiro dia de aula. Sentei-me numa mesinha, junto com duas meninas e de um menino, chamado de Cleómenes, que usava óculos. Inexplicavelmente, não guardei o nome das duas meninas, que eram simpáticas e puxavam conversa. A professora Luiza Leitão bateu palmas, pediu silêncio, e colocou no aparelho de som (que era chamado de “vitrola”) um enorme disco de vinil. Daquele disco, como num passe de mágica, brotou a emocionante novela intitulada “As Aventuras do Coelhinho Joca”, a primeira história infantil gravada que ouvi em minha vida. Eu gostei tanto que, meses depois, quando ganhei meu primeiro cachorro de presente, um fox preto e branco, o mesmo recebeu o nome de “Joca”. Corria o ano de 1948, ano em que o Botafogo foi campeão carioca. O time alvinegro entrava em campo com sua mascote “Biriba”, uma cadela também fox preta e branca. Num relance, passaram-se décadas desde a minha primeira aula, pois estou hoje com 78 anos. Lembro de tudo, desde a disposição dos móveis na sala, dos quadros, dos rostos, dos sons, do sino batendo para o meu primeiro recreio, da primeira merenda. À noite, custei muito a dormir, pois recapitulava, mentalmente, tudo o que me havia acontecido naquele dia memorável. A professora Luiza Leitão, e depois a professora Léa Balthar, foram as duas responsáveis pela minha alfabetização. Não posso deixar de registrar a querida professora Fátima Mesquita, responsável por ter me preparado para o exame de admissão ao ginásio no Maneco. A outra diretora do João Belém, que substituiu a professora Edy Maia Bertóia, foi a Professora Heleda Diquel Siqueira, que também foi minha professora de Trabalhos Manuais. Dona Heleda era exímia jogadora de bolão, viajava muito pelo Estado disputando campeonatos femininos deste esporte. Faleceu recentemente. Nas datas importantes – principalmente em datas cívicas – aconteciam no João Belém as chamadas “audições”. O que era isso? Todo o corpo docente e discente era reunido no salão de festas da escola. E havia apresentações artísticas como danças, corais, declamação de poesias, números musicais, mágicas, bandas. Tudo isso era precedido pela fala do locutor. Que lia uma sinopse do número que ia ser apresentado. Devido ao desembaraço, desenvoltura ou “cara-de-pau” – seja lá que nome tenha isso – sempre fui escolhido para ser o locutor das “audições”. O que me conferia um certo “status” com os professores, simpatia com as meninas e uma certa ciumeira dos meninos. Dou-me conta, agora, da influência que tais experiências da meninice podem ter na formação da nossa personalidade e até nas nossas escolhas profissionais de adulto. É um mistério. Que estranho fermento a vida semeia na sensibilidade da gente. E ao longo do tempo aquilo vai se metamorfoseando em pão. Esse mistério foi inoculado em meu espírito pela dedicação de meus professores do João Belém e do Maneco. E por isso serei eternamente grato a todos eles. Até o último dia da minha vida.

segunda-feira, 12 de julho de 2021

CEARENSE, PEREGRINO, VENCEDOR E SANTA-MARIENSE ADOTIVO ! - JAMES PIZARRO (crônica no DIÁRIO - 13.07.2021)

Este país de dimensões continentais oportuniza que pessoas das mais diferentes e distantes regiões possam, ao sabor do acaso, um dia se encontrar. E esse encontro marcar tão forte e tão fundo suas vidas, que famílias novas se inauguram. Carreiras profissionais fulgurantes se descortinam. Descendentes brotam para perenizar o encontro que, outrora, foi fortuito. Mas que o Deus generosamente – sob a égide do amor – solidificou para a eternidade. Na década de 70, a jovem odontóloga e professora universitária na UFSM , minha ex-colega de bancos escolares no MANECO, se encontrava na Universidade de São Paulo fazendo seu curso de Mestrado em Odontopediatria. Uma moça simpática, dócil, educada, dedicada aos estudos. Os consultórios odontológicos deveriam ser ocupados por duplas de alunos mestrandos, escolhidos por sorteio. O destino escolheu o personagem do qual passo a tratar, odontólogo vindo do Ceará, da cidade de Granja. Assim é que para companheiro da nossa santa-mariense a sorte escolheu um cearense , sétimo filho de dez irmãos, nascido numa cidade de menos de 3000 habitantes. Filho do agente dos Correios e Telégrafos da cidade. Transferidos para Fortaleza, formou-se em Odontologia. É Segundo Tenente R/2 do Exército Brasileiro. Fez uma verdadeira peregrinação por sete estados brasileiros trabalhando como cirurgião-dentista : Ceará, Pernambuco, Bahia, Distrito Federal, Rio de Janeiro e São Paulo. Com o convívio no trabalho e nos estudos no mestrado na USP os dois se apaixonaram. Concluíram o curso. E no dia 15 de janeiro de 1971 se casaram na Igreja do Bom Fim, em Santa Maria. Dessa união nasceram duas filhas, Eliza e Rachel. E quatro netos : Enrico, Martina, Marina e Paula. Ele é profundamente religioso, católico convicto, devoto de Nossa Senhora Medianeira e o Menino Jesus de Praga. Fez parte durante muitos anos da equipe da espiritualidade e de pregação do Evangelho da Fazenda do Senhor Jesus, de Ivorá, onde trabalhamos juntos como voluntários. Poderia ter lançado mão nesta crônica dos dados do extenso currículo profissional do casal de amigos. Mas preferi escrever algo mais intimista, menos acadêmico, mesmo porque a cidade já os conhece o suficiente profissionalmente. Preferi algo familiar, amoroso, que falasse de filhos e netos, de serviço social. Numa época de tanto egoísmo e desamor. Meu personagem de hoje é autor de uma belo texto, chamado “Prece de Gratidão”, verdadeira profissão de fé na pátria, família, profissão, honestidade e no amor pela sua esposa. É um texto emocionante. Espero que todos possam um dia vir a ler. Meu forte abraço, Luciano Vlademir de Araújo Rocha e Neuza Maria de Oliveira Rocha !

segunda-feira, 28 de junho de 2021

SOBRE OS IPÊS-AMARELOS, O SILÊNCIO E A MORTE - JAMES PIZARRO (DIÁRIO - crônica do dia 29.06.2021)

Na semana passada, faleceu o meu querido amigo, colega e ex-professor de Botânica Sistemática da UFSM, engenheiro agrônomo Santo Masiero, idealizador e batalhador pela implantação do Jardim Botânico no campus e um dos últimos professores pioneiros da então Faculdade de Agronomia da UFSM. Vou relatar este episódio porque o professor Santo Masiero fez parte dele. E eu estive presente também, como formando da segunda turma de agrônomos da UFSM. Vou relatar para que Santa Maria não perca a história. Principalmente as pessoas ligadas à UFSM. Professores, funcionários e alunos mais jovens da instituição. Ocorreu em 1966. Há 55 anos. No amplo terreno fronteiro ao planetário da UFSM, no campus, existe um conjunto de ipês-amarelos que enfeitam o ambiente. Principalmente, quando chega a época da floração. Por que aqueles ipês estão ali ? Quem os plantou ? Por que estão plantados naquela disposição? O primeiro nome da universidade era Universidade de Santa Maria (USM). Anos depois é que passou a ser chamada Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). O reitor-fundador Mariano da Rocha teve a ideia de plantar ipês-amarelos naquele local. Pois, pelo plano diretor da então UFM, ali deveria ser erguido o planetário da universidade, fato que se concretizou anos depois. Detalhe : o professor reitor Mariano da Rocha queria que as mudas fossem plantadas numa disposição tal que formassem a sigla UFM. E assim foi feito. Com a mudança de nome anos depois para UFSM, novo arranjo foi feito para que fossem introduzidas mudas grandes formando a letra “F”. Numa fotografia aérea ou numa visão feita a bordo de um helicóptero da Base Aérea poderá ser vista a sigla UFSM quando os ipês-amarelos estão floridos. O plantio dos ipês-amarelos foi feito por alunos, professores e funcionários do curso de Agronomia, naquele tempo chamado de Faculdade de Agronomia, dirigida pelo saudoso professor Ary Bento Costa. Minha turma se formava em 10 de dezembro de 1966 e, na condição de formandos fizemos o plantio junto com alguns professores. Recordo dos professores presentes à cerimônia, além do professor-reitor: Erb Veleda (Zootecnia), Armando Adão Ribas (Zoologia Agrícola, disciplina da qual fui monitor e, anos depois, professor), Mário Bastos Lagos (Fitotecnia e paraninfo de nossa turma), Mário Ferreira (Climatologia e Meteorologia), Dilon Lima do Amaral (Matemática e Cálculo) e Santo Masiero (Botânica Sistemática). Com a prodigiosa memória que o poderoso Deus me deu de presente (e pela qual agradeço comovidamente todos os dias em minhas orações) sou capaz de repetir, na íntegra, a bela peça oratória – feita de improviso – pelo Dr. Mariano na ocasião. Fez uma alocução belíssima – entre poética e ecológica – sobre a importância das árvores na vida dos homens. De todas as pessoas presentes àquele plantio dos ipês-amarelos, raras ainda estão no mundo dos vivos. Afinal, lá se vão 55 anos. Da última vez que fui ao campus levado por meu filho em seu automóvel para rever os novos prédios e matar as saudades, revi os ipês-amarelos. Os ipês que ajudei a plantar. A poucos metros da construção onde repousam os restos mortais do Dr. Mariano. Vi o novo prédio do Departamento de Biologia que foi construído. Gostaria de ter sabido da inauguração do mesmo para que, mesmo anonimamente para não atrapalhar ninguém, clicar algumas fotos e escrever uma retrospectiva memorialística sobre o departamento. Mas quem se lembraria do velho professor de Ecologia ? Pássaros cortavam o céu do campus. O dia estava mormacento. Duas mornas lágrimas correram pelo meu rosto. Meu filho perguntou se eu estava me sentindo bem. Queria saber porque eu estava tão quieto. Voltamos do campus em silêncio.

terça-feira, 15 de junho de 2021

QUANDO A VIDA SE ESVAI - JAMES PIZRRO (DIÁRIO - 15.6.2021)

Meu pai era enfermeiro. Trabalhava no Centro de Saúde número 7, em S. Maria, RS, durante o dia. À noite, trabalhava no SAMDU - Serviço de Assistência Médica Domiciliar e de Urgência, folgando entre uma noite e outra. E nas horas de "folga" ainda aplicava injeções a domicílio, geralmente em casas de famílias abastadas da cidade. Minha mãe era dona-de-casa exemplar para os padrões exigidos à época... Cozinhava muito bem. Costurava e fazia nossas roupas. Fazia doces e bolos sob encomenda. E reclamava porque nunca tinha conseguido concluir seu curso de violino, iniciado no Colégio Santa Terezinha, interrompido pelo casamento. Tive uma infância com educação severa. Apanhei muito. E cerca de 90 % das surras eram merecidas. Apanhava de vara de marmelo. De chineladas. E até de relho, desses de carroceiro bater em cavalo. Também ficava muito de castigo. Quando eu dizia palavrões, me colocavam pimenta na língua, providência pedagógica que se revelou ineficaz, além de me deixar viciado em pimenta... Costumavam me privar das coisas que eu mais gostava. Cortavam meu cinema. Aboliam a "Cyrillinha", refrigerante de fabricação local, feito à base de casca de laranja e que era minha bebida predileta. Eu era impedido de jogar bola. De brincar na sanga, hoje arroio Cadena. Normalmente, depois da surra, eu era obrigado a tomar banho, vestir um abominável pijama de pelúcia e ficar no meu quarto, nariz esborrachado na vidraça, vendo meu amigos jogando bola na rua. Existia uma espécie de sadismo, reconheço hoje. Mas era o sistema educacional vigente na década de 40/50. Mas meu pai era generoso. Eu tinha conta livre na Livraria do Globo para comprar todos os livros que quisesse. E todas as vezes que precisei de carona, de ajuda, de dinheiro...eu disse TODAS...ele nunca me falhou. E tinha uma peculiaridade : nunca me perguntou o porquê do pedido... o porquê da minha necessidade. Jamais usou este procedimento de humilhação, tão comum nos mais velhos que "ajudam". Aos 84 anos, o cardiologista indicou-lhe uma cirurgia para correção de um defeito. Lembro que ele não queria fazer. Eu fui procurar o médico, meu ex-aluno no cursinho pré-vestibular décadas atrás. Ele me disse que, sem a cirurgia, meu pai morreria repentinamente e que tinha, no máximo, seis meses de vida. O médico me disse que esse diagnóstico não era só dele mas de toda a equipe que acompanhava o caso de meu pai. Certa madrugada, meu pai me chamou para tomar chimarrão com ele às 5 da manhã. E pela primeira vez me pediu um conselho : - O que eu devo fazer ? Eu disse a ele : - Tu tens de te operar, o cirurgião é excelente e tu vais viver muitos e muitos anos. Ele me disse : - Vou me operar então...tomara que dê tudo certo porque eu quero ver a formatura dos meus bisnetos. A operação em si foi um sucesso. Mas na sala de recuperação rompeu-se a aorta abdominal, que possuía um aneurisma, coisa que os médicos ignoravam. E ele morreu. Meu avô materno também morreu assim : de ruptura da aorta abdominal. Fui ao necrotério. Vi meu pai nu, morto. Com cortes e suturas, porque precisaram fazer procedimentos no cadáver, devido à imensa hemorragia interna. Começaram a chegar os amigos. Os clubes da Terceira Idade. O pessoal da funerária. Minhas filhas, uma de Itajubá, MG e outra de Panambi, RS, foram avisadas. Meu filho, que mora em Santa Maria, foi nosso companheiro e presença sempre. Ele foi velado na sala de sessões da Câmara de Vereadores, pois tinha sido vereador na legislatura de 1958. Eu aguentei tudo dentro dos limites do possível. Mas quando minha mulher me avisou que meus alunos estavam chegando eu desabei. Olhei e vi aquelas turmas todas, aquela gurizada toda de 15...16 anos, dos quais eu era professor orientador...aqueles olhos assustados com o choro do seu professor...eu desabei literalmente. A Carolzinha me disse : "Nós pedimos o cancelamento das aulas pra ficar com contigo, Pizarro...como tu ensinaste para gente, que na hora da dor a gente fica junto". Dia desses me surpreendi fazendo um ultrassom abdominal para pesquisa de anomalias na aorta abdominal. Ela está íntegra. Sem anomalias. Por enquanto...

domingo, 13 de junho de 2021

Avenida Tênis Clube é um local onde o esporte aproximou famílias e gerou amizades eternas Nos anos 1970, aprendi a jogar tênis nas quadras do Avenida Tênis Clube (ATC), de Santa Maria. E durante os anos 80/90, praticamente todos os dias, passava as minhas horas de folga nas dependências do clube, ora fazendo sauna, ora jogando tênis, ora fazendo churrasco, ora jogando bocha. E os familiares juntos. Em 1970, só haviam seis quadras no clube, lembro bem. Todas obedecendo rigorosa divisão hierárquica para facilitar a disciplina na ocupação das mesmas. Na quadra número 1 jogavam somente os tenistas veteranos. Na quadra 2, os “Seniors A”. Na quadra 3, os “Seniors B”. Nas quadras 4, 5 e 6, os juvenis, as mulheres e os demais tenistas que não disputavam o ranking. Grande número disputava por puro lazer, entretenimento e pouco estavam se importando para o resultado da partida. Já outros, principalmente, entre os veteranos, se concentravam, dormiam cedo, e entravam na quadra como se fossem disputar uma final em Wimblendon. Lembro de dois exemplos: Jarbas Cunha e o médico Heitor Silva, coronel do Exército, apelidado de “Fofo”, pois assim o chamava a esposa. Lembro – exercitando apenas a memória – de dezenas daqueles queridos amigos, a maioria deles já não mais entre nós, o que enche meu coração de melancolia. lembranças Anterinho Scherer, médico, ex-prefeito de Cacequi, famoso por suas folclóricas histórias. Máximo Knackfuss, professor do Curso de Engenharia da UFSM, que se emburrava facilmente, mas cinco minutos depois esquecia do motivo da zanga. Ênio Ferraz, representante de laboratório médico, apelidado de “Nonô”, que teve a capacidade aeróbica tirada pelo tabagismo. Alberto Leitão, de pavio curto, principalmente nos jogos de duplas, pois já no primeiro erro do seu companheiro, começava a reclamar. Arno Böhrer, era o alvo predileto das brincadeiras do Jarbas Cunha e, ignorando sua avançada idade, jogava várias horas por dia. Abdo Achutti Mothecy, farmacêutico, ex-jogador de basquete, dono de uma loja de aviamentos militares - e também de cortinas - na praça Hector Menna Barreto (ex-praça da República), mais conhecida por “pracinha dos Bombeiros”. De origem libanesa, Abdo foi casado com Tereza dos Santos Mothecy, mais conhecida por “Terezinha” ou “Tereca”. Lembro que o térreo da loja do amigo Abdo era quase uma extensão do ATC, pois ali se reuniam para tomar cafezinho os veteranos do clube, às vezes atrapalhando as atividades comerciais do dono. O Abdo sempre foi generosamente um pacificador, um aglutinador. Adorava pescarias e histórias antigas da cidade. Adaí Bonilha, dentista, esposo da também tenista, Dona Olga, que por muitos anos, também foi professora de tênis das crianças iniciantes. Álvaro Pfeifer, corretor de imóveis, professor de Matemática, dotado de notável espírito de humor. Arno Werlang, juiz, diretor do Fórum de Santa Maria, hoje desembargador em Porto Alegre, pai do Gerson Werlang (integrante da banda “Poços e Nuvens” e professor universitário de música). Arlindo Mayer, engenheiro, professor do Centro de Tecnologia da UFSM. Armando Vallandro, grande jogador de basquete do passado, apelidado de “Picolé”, ex-reitor da UFSM. Alnei Prochnow, também professor da UFSM, sempre alegre e disposto a uma brincadeira. Claudio Morais, coronel do Exército. Dalmo Kreling, engenheiro, dono da Construtora Dikrel, que transferiu depois residência para Santa Catarina. Dalton Kortz, ex-funcionário da Livraria do Globo, vendedor autônomo, hoje pastor metodista, talvez o mais brincalhão de todos. Darkson Cunha, professor do Centro de Educação Física da UFSM. Evaldo Morais, coronel do Exército, morador da Faixa Velha de Camobi, gostava de tocar violão e cantar músicas de seresta. Gerson Morais, funcionário da agência central do Banco do Brasil, na Avenida Rio Branco. Heitor Silva, campeão de tênis do Exército Nacional, cheio de estilo até no caminhar, tinha consciência exacerbada de que era um grande atleta. Jorge Merten, médico traumatologista. Carlos Pithan, dentista e professor da UFSM. Luiz Carlos Lang, dono de um reputado escritório de contabilidade, apreciador de vinhos chilenos. Luiz Carlos Pistóia Oliveira, engenheiro e professor da UFSM. Luiz Carlos Morales, advogado, hoje residindo em São Vicente do Sul. Luciano Rocha, cearense, professor da UFSM, dentista especializado em Odontopediatria. anos felizes Manoel Argentino Sissy, oriundo de São Borja, de apelido “Fanha”, notável contador de casos. Manoel Vianna, dentista, professor da UFSM, também de pavio curto. Paulo Roberto Oliveira, professor de Química da UFSM, ex-jogador de basquete. Simão Sampedro, coronel do Exército, irmão do também tenista, Renan Sampedro, professor de Educação Física da UFSM. Roberto Bisogno, dentista, radialista, professor da UFSM. Roberto Leitão, engenheiro, professor da UFSM. Engenheiro Lang, dono das piscinas “Golfinhos”. Coronel Bins, comandante da Base Aérea de Santa Maria. James Souza Pizarro, meu filho, que foi um talentoso tenista da categoria infanto-juvenil e disputou alguns torneios no estado, defendendo o nome do ATC, na companhia de Álvaro Pfeifer, Máximo Knakfuss, Roberto Bisogno e Arnaldo Valty (médico mineiro, oncologista, que trabalhava no Serviço de Cobaltoterapia da UFSM). Lembrei do Glicério que tomava conta dos motores da primeira piscina. Do amável e simpático Seu José que por décadas cuidava das quadras de saibro. Do ecônomo Chico e garçons da copa. Das dezenas de funcionários da portaria e segurança. Foram anos e anos felizes, com jogos diários, seguidos quase sempre de churrascos. Infelizmente, com o passar dos anos e no “curso natural dos acontecimentos” (como diria meu amigo e colega de rádio, Joel Abílio Pinto dos Santos, já falecido), a morte vai levando os companheiros. Outros se mudam de cidade ou de clube. Outros simplesmente deixam de jogar. Outros, premidos pelas exigências profissionais, se distanciam. Dia desses, vendo minha netinha Bethânia brincando nas dependências do ATC, olhei para os lados e dei falta de dezenas de amigos mortos. Tive de disfarçar rapidamente para que ninguém por perto percebesse que eu estava chorando.

terça-feira, 1 de junho de 2021

DE BAR EM MAR - JAMES PIZARRO (DIÁRIO- 01.06.2021)

Tânia Regina dos Anjos é minha companheira de cafezinho, eis que frequentamos a Tabacaria/Confeitaria "Vícios e Virtudes", dos meus amigos Dol e Emerson, à rua Madre Maria Villac, em Canasvieiras. Ela pertencia a uma enorme confraria de amigos com os quais me reuni diariamente durante os dez anos em que morei naquela aprazível praia. Nascida em 1958, estudou no Grupo Escolar Antonieta de Barros, fazendo depois o Ensino Fundamental e o Ensino Médio no Instituto Estadual de Educação, ali concluindo o Curso Técnico de Redator Auxiliar. Cursou a Universidade Federal de Santa Catarina, graduando-se em Pedagogia. Publicou seus primeiros dez poemas no livro "Embrião", um coletânea com mais cinco colegas poetas. Quatro anos depois (1982) publicou seu primeiro livro, sob o título "Razão Maior", onde seus poemas falavam sobre ilha de Florianópolis. Em 11 de junho de 1987 lança outro livro : "De Bar em Mar", com capa de Jorge Prudêncio e ilustrações de Alfredo Rosar. Foi um exemplar deste livro que Tânia teve a gentileza de me presentear. Li o livro de um fôlego só e encontrei versos lindíssimos, tais como : "Engraçado, sinto-me como uma madrugada... Só não quero estar ocultada a vida inteira no teu peito tão estranho. Tenho um lado pervertido e outro convertido... Errei o passo no descompasso da capitulação." Tânia, sem dúvida alguma, muito mais que uma pedagoga é uma poetisa a ser lida, compreendida, meditada. Além de cantar suas emoções, suas experiências - malogradas ou não - canta as praias. Canta a ilha. Canta as ruas e avenidas de Florianópolis. Canta a ponte Hercílio Luz. Canta o povo manezinho. É uma poetisa que se orgulha da sua descendência açoriana. Agradeço à Tânia pelo livro que me deu. Agradeço porque seus poemas, de certa forma, me ensinaram mais sobre Florianópolis e sua gente. A ilha de Santa Catarina (este é o nome correto da ilha) abriga a parte insular da cidade de Florianópolis, que ainda tem uma pequena área continental que faz divisa com o município de São José. Esta ilha exerce um fascínio tremendo sobre as almas sensíveis. Suas histórias que se perdem nos tempos. Suas bruxas. Benzedeiras. Encantos. Corsários. Fortes. Não é à toa o título lindo de “Ilha da Magia”. É um lugar que apaixona qualquer um. Por isso, fica fácil ao turista distraído ir de “bar em mar”...

terça-feira, 18 de maio de 2021

SIM, EU CONFESSO COM ORGULHO : JÀ FUI UM SAPO ! - JAMES PIZARRO (DIÁRIO, 18.5.2021)

Nas datas importantes - principalmente nas datas cívicas - aconteciam no Grupo Escolar João Belém as chamadas "audições". O que era isso ? Todo o corpo docente e discente era reunido no salão de festas da escola. E havia apresentação de números artísticos : danças, corais, declamação de poesias, números musicais, mágicas, bandas, etc... Tudo isso era precedido pela fala do locutor. Que lia uma sinopse do número que ía ser apresentado. Devido ao desembaraço, desenvoltura ou "cara-de-pau" - seja lá que nome tenha isso - sempre fui escolhido para ser o locutor das "audições". O que me conferia um certo "status" com os professores. Simpatia com as meninas. E inveja dos colegas. Dou-me conta, agora, do óbvio : a influência que tais experiências da meninice podem ter na formação da nossa personalidade. E até nas nossas escolhas profissionais de adulto. Entre meus 45 e 50 anos fui radioator de historinhas infantis levadas ao ar pelo programa infantil apresentado pela radialista Maria Helena Martins : Programa "Era Uma Vez..." O programa ía ao ar todos os domingos, às 18:00h, pela Rádio Universidade de Santa Maria. A novela, apresentada em capítulos dominicais, chamava-se "Histórias do Sapinho Hortêncio". Eram escritas por João Teixeira Porto, militar reformado, funcionário da UFSM e ator amador da Escola de Teatro "Leopoldo Froes". Fui sarcasticamente criticado por alguns poucos colegas de docência da UFSM pois, para eles, um mestre universitário andar fazendo papel de um sapo em novelas de rádio "não se coadunava com a importância da cátedra". Nunca dei importância para as críticas e gozações desses sabichões. Um deles, chegou mesmo a dizer que eu só poderia fazer papel de sapo, numa clara alusão à minha obesidade. Muitas palestras fiz nas escolas da cidade para alunos do jardim da infância e do pré-primário. Mas fi-las, não como Prof. Pizarro, mas como Sapinho Hortêncio, este sim conhecido da piazada. Esta atividade como Sapinho Hortêncio sempre me foi muito prazerosa, porque ele foi importante veículo de educação ecológica para a infância da minha cidade. Na raiz dessa minha atividade não estará, lá bem no fundo, a saudosa professora alfabetizadora Luiza Leitão com as "Histórias do Coelhinho Joca" ? E meus programas de rádio ecológico pela Rádio Universidade ? E meus comentários diários na Rádio Imembui, nos programas do Vicente Paulo Bisogno e Pedro Feire Junior ? E meus voluntariosos pronunciamentos na Câmara de Vereadores quando lá estive de 1989 a 1992 ? E as dezenas de conferências em mais de 200 cidades gaúchas ao longo de quase 40 anos ? E as 10 horas de aula diárias nos cursinhos pré-vestibulares e na UFSM ? Na raíz de todas essas atividades ligadas ao uso público da palavra, da oratória como meio de vida, bem lá no cerne dessas atividades de adulto...não estará a figura franzina daquele meninote que era o locutor das "audições" do Grupo Escolar João Belém ? Que mistério ! Que estranho fermento a Vida e o Destino semeiam na sensibilidade da gente! E ao longo do tempo aquilo vai se metamorfoseando em pão. Amassado com o sangue da vocação. O suor da transpiração. E a lágrima da inspiração. Que mistério ! A ninguém é lícito deixar de colaborar na construção do mundo. Seja pescando crustáceos e peixes na orla marítima, para alimentar estômagos famintos. Seja pescando almas solitárias, melancólicas, com a isca fascinante da palavra. Não para dar-lhes pão, feito de trigo ou centeio. Mas o pão divino do amor e da fraternidade. Disfarçado pela oratória sensível do teatro. Do discurso. Do programa de rádio. Da aula bem dada. Todas elas, atividades movidas pela paixão. Quem não entender a paixão e o milagre da palavra, o seu amplo poder, perdeu o dom do mistério.

quarta-feira, 5 de maio de 2021

EXISTE MUITA GENTE CHORANDO DE FOME - JAMES PIZARRO (DIÁRIO - edição de 4.5.2021)

Há cerca de uns 40 anos ou mais, fui a Porto Alegre numa cabine dupla de vagão-leito pelo cha- mado “trem noturno” em compa- nhia de um colega professor da UFSM. Íamos para um congresso na capital re- presentando os nossos departamentos. Rapidamente pegamos no sono com aquele “telec-telec”, ruído característi- co do rodado do trem sobre os trilhos e mais o embalo da composição. Horas depois, nos acordamos e o trem estava parado. Imaginamos que estivesse parado numa estação para pegar novos passageiros ou desembar- car outros. Mas a como a demora estava muito inquietante e se ouviam rumores nos corredores do vagão, abrimos a porta para saciar a curiosidade. E fica- mos sabendo da terrível notícia através do “chefe de trem” : alguns quilômetros adiante um trem havia descarrilado e nós estávamos sem saber que horas chegar a Porto Alegre. Com o trem pa- rado num lugar ermo, presos no meio do campo. Imediatamente, convidei meu com- panheiro de viagem para ir ao carro- -restaurante tomar café, comer um bife com dois ovos, tomar um suco para enfrentar a demora pois a equipe de so- corro para desobstruir a composição acidentada teria de vir de Porto Alegre. Quando chegamos ao carro-restauran- te constamos o óbvio: todos tiveram a mesma ideia. E não havia para nós nenhuma uma desgraçada fatia de pão torrado ou uma minguada bolacha- -maria. Fomos chegar a Porto Alegre às 15 horas. Cansados. Suados. Quase des- maiando de fome. Senti na própria carne as sensações fisiológicas da fome. Passei a estudar e a ler tudo sobre a fome. Li toda a obra do Josué de Castro. Passei a falar em aula sobre a geopolíti- ca da fome. A Geografia da Fome. A Bio- logia Social. A fome endêmica. Sobre as ideias de Malthus. Resolvi escrever a respeito desse episódio do trem ocorrido comigo porque fico com o coração partido quando vejo na TV as entrevistas das famílias que não têm o que comer. São milhões de brasileiros que, pelas mais diversas razões – pandemia, desem- prego, políticas sociais, desigualdade, etc – estão com suas geladeiras e ar- mários vazios. Não tenho posses, nem cargo, nem poder. Tenho apenas sensibilidade. E já há bastante tempo eu e minha mulher temos uma pessoa carente que fica nas ruas centrais da cidade para a qual de- dicamos atenção na doação de roupas, medicamentos, lanches, amizade, acon- selhamento. E, de uns meses para cá, compramos embalagens descartáveis no supermer- cado, com divisórias, tipo “bandejão”, onde colocamos arroz, feijão, carne, sa- lada, uma fruta – enfim – a mesma co- mida nossa – e diariamente depois do meio-dia ficamos ao lado do contêiner da Venâncio Aires, em frente à Galeria do Comércio, onde sempre tem alguém esperando aquela marmita. Uma só por dia, mas é o que podemos dar. Comida boa, higienizada, com uma garrafinha plástica de água. Por favor, não quero bancar o cari- doso, o generoso, o salvador, o bonzi- nho. Minha mulher nem queria que eu escrevesse essa crônica. Mas eu me arrisco à crítica porque eu sou teimo- so. Resolvi escrever para convocar o leitor a fazer algo semelhante. Porque em quase todas as casas sobra comida. Que acaba indo para o lixo. Enquanto existe gente passando fome. E fome dói. Machuca. Deprime. Deixa humilhado. Vamos ajudar ?

terça-feira, 20 de abril de 2021

ESTOU ENCANTADO COM ENCANTADO ! - JAMES PIZARRO (DIÁRIO, crônica, edição de 20.04.2021)

Num lance fulgurante de inteligência, visão turística, fé religiosa e poderosa união comunitária, os habitantes da pequena e simpática cidade gaúcha de Encantado deram uma lição de como fazer as coisas. E Encantado passou nos últimos dias a ocupar páginas e páginas de jornais e revistas em todo o país, além de ser motivo de grandes reportagens nos principais programas das grandes redes de TV do Brasil. Tudo porque a comunidade se uniu e resolveu construir o monumento denominado Cristo Protetor, uma obra de 43 metros de altura, a terceira do mundo em altura. Relembro trecho de crônica que publiquei no DIÁRIO na edição de 6 de novembro de 2018, à página 4 : “ Em 2007, a Secretaria Municipal de Turismo de Santa Maria – leia-se Paulinho Ceccin – pensou em construir um monumento em homenagem à N. S. Medianeira, padroeira do Rio Grande do Sul (muita gente pensa que é São Pedro). O monumento seria construído no Morro do Cechella e teria todos os equipamentos modernos em seu entorno, como vias de acesso, capela, lancheria, mirantes, museu para contar a história da santa, restaurantes, vendas de lembranças e postais, policiamento. Seria uma obra gigantesca que atrairia milhares de turistas brasileiros e estrangeiros, pois seria o maior monumento brasileiro do gênero, planejada por artistas e técnicos santa-marienses, sob a direção do J. Amoretti. A prefeitura municipal não gastaria nada, pois todo dinheiro viria de doações, captação de recursos particulares e verbas do Ministério do Turismo. Na edição de 28/29 de julho de 2007 (sábado/domingo) de A Razão, publiquei e assinei matéria de página inteira sob o título “Até a Medianeira é repudiada aqui !? “. Fi-lo porque tão logo foi lançada a ideia pela construção do monumento setores obscurantistas iniciaram feroz campanha contra a iniciativa do então secretário Paulinho Ceccin. Essas pessoas nem se deram conta da vocação que Santa Maria tem para o turismo religioso. E ficaram contra a ideia mas não fizeram proposta alternativa em seu lugar. Nunca falei sobre isso com o Paulinho Ceccin. Nem com dom Hélio. Nem com ninguém. E ninguém me pediu para escrever a favor à época porque nunca aceitei escrever coisas por encomenda. Nem tão pouco apoiei a iniciativa por ser católico apostólico romano, praticante e convicto. Quisessem os umbandistas construir monumento semelhante em homenagem à Iemanjá, estaria eu a favor. Quisessem os meus amigos espíritas homenagear Allan Kardec com um monumento de igual tamanho, contariam com meu apoio. Sou de profunda formação ecumênica. E sempre fui A FAVOR DO DESENVOLVIMENTO E DO TURISMO DA MINHA CIDADE NATAL !!! Tivesse o projeto sido aprovado e construído teríamos hoje no morro do Cechella o maior monumento religioso do Brasil iluminando a noite santa-mariense: a santinha em sua posição original, de braços abertos, feericamente iluminada, maternal e generosamente acolhendo em seu seio todos os santa-marienses e gaúchos. Além do turismo rendendo divisas para nosso município. Que Nossa Senhora Medianeira ilumine a cabeça burra dos muitos que teimam em lutar contra o progresso de nossa querida cidade natal.” Meus parabéns à comunidade de Encantado !

sábado, 10 de abril de 2021

GARAJÃO DA UFSM E O TRANSPORTE GRATUITO DE ESTUDANTES - JAMES PIZARRO (DIÁRIO, Seção MEMÓRIA, 10.4.2021)

Prestei vestibular para a então chamada Faculdade de Agronomia da UFSM em janeiro de 1963. As provas foram realizadas no prédio da Antiga Reitoria, na rua Floriano Peixoto. Quatro disciplinas eram exigidas em prova escrita: Língua Portuguesa (uma redação, correção de 10 frases e análise sintática), Biologia, Química e Física. Três disciplinas ainda tinham prova oral. Enquanto aguardava em pé, no corredor do segundo andar do prédio a chamada do meu nome para prestar o exame oral, pela primeira vez observei com atenção pela janela aquela construção de metal situada à rua Astrogildo de Azevedo, contígua ao prédio da Antiga Reitoria. Aprovado no vestibular, vim a saber que se tratava do famoso “Garajão”. Tema sobre o qual me debruço hoje. O saudoso reitor Dr. José Mariano da Rocha – entre tantas medidas pioneiras que teve – estabeleceu uma linha regular de ônibus entre o campus de Camobi e o centro, para o transporte gratuito dos estudantes, funcionários e professores da UFSM. Nada mais, nada menos do que 13 ônibus faziam o transporte ininterrupto centro/campus/centro das 7h às 21h. Lembro que me formei em 1966 e nunca – durante os quatro anos do curso – paguei um centavo pela condução. Os ônibus ficavam abrigados no Garajão ao final do dia. Durante a manhã e início da tarde formavam-se imensas filas em frente a ele aguardando o vai-vem dos ônibus pintados de azul e branco, com o quero-quero estampado nas laterais, ave-símbolo da UFSM. Uma vez formado, comecei a dar aula na UFSM e continuei a usar os ônibus por alguns anos. O meu querido e saudoso amigo professor Luiz Gonzaga Isaia, meu vizinho na Galeria do Comércio e companheiro de longos papos, teve a oportunidade de registrar nas suas memórias o seguinte: “Em 1970 o Serviço de Transporte da UFSM já possuía uma estrutura com garagem, oficina e posto de lubrificação e abastecimento e uma frota com 13 ônibus, 2 automóveis e 21 utilitários, além de 29 motoristas, 4 mecânicos e 3 funcionários do posto de gasolina”. E, também, lamentou o professor Isaia: “Houve a tentativa da administração central de introduzir uma linha ferroviária que facilitasse o transporte de servidores e estudantes, mas devido às dificuldades alegadas pela direção da Rede Ferroviária o pedido não obteve sucesso; assim a solução foi investir no transporte rodoviário”. Mas nessas lembranças eu gostaria de registrar alguns nomes de motoristas que ficaram no meu coração e na minha memória. Muitos deles que me transportaram não só como aluno. Mas me conduziram com zelo e segurança para fazer palestras em congressos e simpósios durante minha vida docente de quase quarenta anos. De alguns lembro do nome inteiro: Ademar Sitoni Fraga, Paulo Farias, Antônio José Pedroso da Rosa, Aurélio de Souza, Reno Schmidt, Nilson Silveira, Jesus Pujol. De outros lembro apenas do primeiro nome ou do apelido: Carioca, Bordim, Miro, Fraga, Paulinho, Pedroso, Adão. Muitas excursões fui com os alunos. Muito chimarrão tomei no Garajão com os motoristas. Ao lado, funcionava a primeira sede da Cesma. Aos fundos, funcionava a sede da Cooperativa dos funcionários da UFSM. Pelo Garajão passaram milhares de pessoas. Projetos de vida. Sonhos. Hoje, ao passar por ele, abandonado, pichado, enferrujado, apresso o passo. Sem olhar para trás. Com medo de começar a chorar na rua.

terça-feira, 6 de abril de 2021

FUGINDO DO ALZHEIMER NAS MADRUGADAS DO ISOLAMENTO - JAMES PIZARRO (DIÁRIO - ediçao de 6.4.2021)

Nessas madrugadas de isolamento social tenho a mente assaltada por lembranças de figuras incríveis e episódios marcantes vividos nessa Santa Maria da Boca do Monte. E que faço questão de cultivar, escrever e registrar como exercício para evitar o Alzheimer. Os mais jovens talvez ignorem, mas Santa Maria já foi famosa no cenário nacional do basquetebol. Durante muitos anos deteve a hegemonia deste esporte em nível estadual. E tudo graças ao desempenho fantástico da famosa equipe que a diretoria do Corintians conseguiu formar nos anos 60 e 70. Lembro do MAIR, jogador de basquete da seleção brasileira, técnico do Corintians, na época áurea dos campeonatos estaduais de basquete. Era um verdadeiro ídolo na cidade. Os jogos eram no “Alçapão”, quadra de basquete que ficava atrás do Clube Caixeiral, onde hoje existe um estacionamento. Mair inovou o basquete, juntamente com outros vários técnicos, dos quais lembro Maquiline, Nascimento, Lenk, Fumanchu (trazido do Vasco da Gama), etc...Foi a época de ouro do basquete santa-mariense, com inesquecíveis jogadores : Deroci, Queijo, Balaio, Paulinho, Liminha, Nilton Nieves, Mair, Tassinho, Pati, Bibi, Jau e tantos outros. Lembro, emocionado, que o “Alçapão” lotava aos sábados à noite e a torcida enlouquecia. Que fase! Que época ! No início dos anos 60, um grupo de jovens estudantes vestibulandos se reunia todos os sábados no porão da casa da avenida Presidente Vargas, 2067, residência do Dr. Hélvio Jobim, advogado famoso na comarca santa-mariense. Ali se reuniam : Nelson Jobim e Walter Jobim Neto (filhos do dono da casa, que viriam a se formar em Direito, como o pai), Antônio Rossatto (“Padre”, que se formou em Direito), Antônio Carlos dos Santos (“Tonico”, que se formou em Medicina), Luiz Alberto Belém Leite (“Betinho”, que se formou em Medicina), Carlos Horácio Hertz Genro (que se formou em Medicina) e eu (que me formei em Agronomia).Motivo das reuniões: estudar literatura, discutir política, declamar poemas, recitar crônicas. Eu fico me perguntando se haverá, nos dias atuais, algum grupo semelhante em algum recanto do Brasil ? Registro dois Bentos da minha juventude. Bento do Carmo Machado (“Bentinho”),envelhecido, casacão surrado, sempre carregando cadernos com anotações, vivia arrumando jogos entre nossas equipes de futebol amador. Escrevia textos e noticiário completo sobre esporte amador nas páginas de A RAZÃO e tinha um programa esportivo na Rádio Imembui. Era membro da então atuante Liga de Futebol Santa-mariense. E o Ir. Bento José Labre, o segundo Bento do qual me lembro hoje, era padre. Foi diretor da Escola Hugo Taylor e dirigente da Tropa de Escoteiros Tupanciguara, cuja sede era ao lado da agência central do Banco do Brasil. Tradicionalista ferrenho, sempre desfilava no dia 20 de setembro com o CTG Ponche Verde. Outro querido amigo, falecido em março de2002 (acho que no dia 6), foi João Francisco Goldman, provavelmente o maior estilista da moda que a cidade de Santa Maria já teve. Prestou grandes serviços à Escola de Samba Unidos do Itaimbé quando Alfeu Pizarro, Zaira e Luizinho de Grandi (todos falecidos) faziam parte da diretoria, confeccionando as principais fantasias da escola que por vários anos foi campeã do carnaval santa-mariense. Goldman foi frequentador da semanal da sauna do Avenida Tênis Clube, com dezenas de outros saudosos amigos : Antero Scherer, Máximo Knackfuss, Arnaldo Walty, Abdo Mothcy, entre outros tantos. Ficou um vazio na sua arte, onde foi verdadeiro expoente ! Nessas madrugadas silenciosas, isolado há 13 meses, contemplo os morros da cidade e as torres da catedral da janela do meu apartamento. Depois dessa procissão de mortos que passa pela minha mente começa a revoada diária das centenas de garças que vêm da zona oeste rumo a Camobi. Prestes a fazer 79 anos, quando minha alma fará a revoada definitiva desse planetinha azul ?

terça-feira, 23 de março de 2021

MISSÃO CUMPRIDA, SERVIDORES MUNICIPAIS DA SAÚDE ! - JAMES PIZARRO (DIÁRIO, 23.03.2021)

Apesar de todos os cuidados com o isolamento social, álcool em gel, uso da máscara e procedimentos afins, é claro que a vontade de qualquer um era tomar logo a vacina contra o terrível vírus que está matando diariamente milhares de pessoas. E o medo se torna mais doloroso quando ele começa a ceifar vidas de amigos, de pessoas próximas a nós. E quando essas tristes notícias começam a virar rotina. Assim é que, quando li nas páginas do nosso DIÁRIO que tinha chegado a data da vacinação para os idosos da minha idade, fiquei feliz da vida. Meu filho foi para a fila do Colégio Santa Maria às 5h da manhã e conseguiu a senha número 036 para mim. Às 7h ele me ligou para que eu fosse com minha mulher. Eu imaginava encontrar uma cena de idosos sentados em banquinhos, cadeiras de pescaria, em pé, etc...talvez com meu cérebro alimentado pelas terríveis cenas dos noticiários de televisão que mostravam as vacinações de idosos no RJ e em SP. Ledo engano meu ! Já no portão da escola um enfermeiro impecavelmente vestido me recepcionou e me indicou gentilmente o caminho. Fui conduzido – junto com os outros idosos que estavam chegando – ao pátio interno do colégio onde centenas de cadeiras nos esperavam, todas separadas cerca de 1,5m uma da outra obedecendo rigorosamente o distanciamento social. TODOS OS IDOSOS FICARAM SENTADOS. Os avisos eram dados por autofalantes e as pessoas – antes das 8h – já eram cadastradas para não haver atropelos. Haviam seis mesas com cadeiras para que o idoso pudesse fazer seu cadastro confortavelmente sentado com um atendente que anotava os dados pessoais, tipo de vacina e data da segunda dose. Tudo sem pressa e na maior simpatia. Os que tinham dificuldade para se locomover eram auxiliados pela enfermeira com a maior polidez. Do cadastramento passavam para a sala seguinte onde haviam cerca de 8 enfermeiras fazendo a vacinação. Que se dispunham ainda, simpaticamente, a chamar uma colega para tirar a fotografia do ato da vacinação, um pedido da maioria dos idosos (inclusive eu). Total de todo procedimento : menos de 15 minutos ! Faço este relato e dou este depoimento pessoal porque a Secretaria Municipal de Saúde, seus funcionários, enfermeiros, enfim – todos seus componentes – executaram um serviço de Primeiro Mundo ! E quando as coisas todas saem bem feitas, raramente elas são reconhecidas. Mas eu penso diferente. A gente tem de ser grato publicamente. Obrigado, Servidores Municipais da Saúde de Santa Maria ! Vocês foram nota 10 ! Até dia 13 de abril, para a segunda dose !

sábado, 20 de março de 2021

HOMENAGEM AO "EXÉRCITO DE BRANCO" QUE SE DEDICA AO CUIDADO DE TODOS NÓS - JAMES PIZARRO (DIÁRIO, seção MEMÓRIA, edição de 20.3.2021)

Para que os mais jovens possam entender, antigamente a maratona da vida escolar seguia este cronograma sequencial : curso Primário (5 anos), curso Ginasial (4 anos) e curso Científico (3 anos). Depois, os cursos primário e ginasial se fundiram pra formar o hoje denominado Ensino Fundamental, enquanto o curso científico passou a ser chamado de Ensino Médio. Eu estudei o curso primário no Grupo Escolar João Belém quando este funcionava ainda no prédio onde hoje funciona o Colégio Estadual Manoel Ribas. Fiz o temido exame de “Admissão ao Ginásio” e permaneci no mesmo prédio, com a fundação do MANECO. Por que fiz este preâmbulo todo para tratar do assunto de hoje ? Porque tenho bem clara na minha memória a importância que a escola, os professores, os governantes, enfim - as autoridades em todos os escalões da República – tinham da necessidade imperiosa de cuidar com carinho da saúde do aluno ! No final da década de quarenta, início dos anos 50, lembro perfeitamente que numa certa época do ano estacionava em frente ao colégio um vistoso ônibus branco, com a cruz vermelha pintada e no seu interior tinha uma aparelhagem de raio-X. E todos os alunos faziam fila para fazer a sua abreugrafia, radiografia dos pulmões tirada por um método barato inventado por um médico brasileiro chamado Manuel de Abreu para detectar, prevenir e tratar a tuberculose. Isso há 70 anos !!! No MANECO, por exemplo, para praticarmos ginástica ou qualquer tipo de esporte coletivo, o professor de Educação Física fazia a ficha de peso e altura, mais dados pessoais e encaminhava o aluno para os médicos da escola (lembro dos saudosos Paulo Lauda e Miguel Sevi Viero). Cada aluno tinha pressão medida, pulmões auscultados, ficha médica preenchida, finamente liberado. Se tivesse algum problema de saúde a família era chamada à escola para falar com o médico. Os professores orientavam os alunos sobre a necessidade de vacinação (catapora, varíola, paralisia infantil, etc...). E era comum a população encontrar pelas ruas e calçadas da cidade diariamente centenas de filas de pequeninos alunos de mãos dadas, cuidados por zelosas professoras, sendo conduzidos ao Centro de Saúde número 7, que funcionava – naquela época - à rua do Acampamento, onde hoje funciona a sede da Sociedade Italiana. Ali, responsável pela sala de vacina, esteve - durante mais de 40 anos – o enfermeiro Alfeu Pizarro, meu saudoso pai, que vacinou muitas gerações de santa-marienses. Os pais e professores procuravam espontaneamente a vacinação. Seria inimaginável – naqueles tempos – se pensar em movimento antivacinal... Na rua Daudt, transversal da avenida Rio Branco, num terreno doado pelo farmacêutico e literato João Daudt de Oliveira, foi construído o Dispensário, órgão vinculado à Secretária da Saúde do RS, que tratava de ISTs (infecções sexualmente transmissíveis), naquela época chamadas de “venéreas”, além de outras doenças como hanseníase, etc...As profissionais do sexo eram lá atendidas e medicadas com todo respeito há mais de meio século. Ao rememorar este trabalho dos médicos e paramédicos da minha infância e juventude, nestes tempos duros de pandemia, quero registrar publicamente meu profundo agradecimento a este exército de branco que se encontra extenuado, tenso, com uma sobrecarga desumana de trabalho, nem sempre recompensados financeiramente como deviam, arriscando-se diariamente por nós na linha de frente. A todos vocês, desejo que Deus lhes dê glória alta e compreensão entre os homens !

terça-feira, 9 de março de 2021

OS MASCARADOS DA VENÂNCIO AIRES - JAMES PIZARRO (DIÁRIO - 9.3.2021 - terça-feira)

Completei meu primeiro aniversário de isolamento social. Coisa que jamais pensei que iria conseguir. Mas noto alterações no biorritmo. Fico a lembrar das aulas de Ecologia. Ritmos induzidos pelo foto-período. Ritmos lunares. Ritmos circadianos. Não irei chatear o leitor com esnobismos científicos. Mas o comportamento dos seres vivos altera-se com o número de horas de sol. Com a lua. Com a alternância de dia e noite. Poderia dar exemplo para cada um dos casos. Não o farei. Da janela do meu terceiro andar tenho notado que as centenas de garças têm voado mais tarde do sentido oeste-leste. As centenas de pássaros pretos que voam entre a Galeria do Comércio e a catedral também na direção oeste-leste ao amanhecer também estão voando tardiamente. Tudo porque o sol tem aparecido mais tarde. São os primeiros avisos do fim do verão. Indiferentes diante da pandemia, os pássaros cumprem seu destino de voar. Obedientes ao ritmo do sol. À procura de alimento, água e prazer. Em ordeiros bandos aéreos com formação que lembra a letra V. Onde na ponta do V, capitaneando o bando, vai geralmente a ave mais velha. A que sabe por experiência a melhor rota, velocidade e direção. Porque no mundo das aves os idosos são respeitados. Tenho escancarado as janelas do meu apartamento. Porque os infectologistas avisam que coronavirus detesta ambientes arejados. Os sons da noite sobem com facilidade. E penetram nos meus ouvidos sempre atentos. Ambulâncias passam. Sirenes estridentes. Bombeiros. Carros da polícia. Mas é à noite que minha audição fica mais acurada. Já ouvi de tudo. Automóveis particulares com som a mais de 100 decibéis acordando todo prédio. Conversas em voz alta de bandos de jovens que estão alterados. Brigas de namorados. Já vi um rapaz esbofetear uma moça e cinco minutos depois estarem se beijando. Quase na esquina da avenida Rio Branco a Prefeitura Municipal colocou enorme contêiner para recebimento de lixo. Toda santa noite – e cada vez mais cedo - há disputa pelo lixo reciclável. Jogam todo lixo para fora para catar as latinhas de bebida e outros materiais aproveitáveis. E não devolvem os sacos para dentro do contêiner. Fica tudo esparramado na calçada. E às vezes há brigas entre eles, agressões, ameaças de morte, disputa pelo “ponto”. Na madrugada do último fim-de-semana,ao voltar da cozinha onde fui tomar água gelada, ouvi gemidos estranhos vindos da rua. Sem ligar a luz e preocupado porque poderia ser alguém assaltado e ferido na rua precisando de ajuda, cheguei à janela. E me deparei com uma cena nova para mim em termos de Venâncio Aires. Um casal de namorados estava fazendo amor, em pé, no portão da casa do saudoso reitor Mariano. Pelo menos os dois estavam de máscara...