quarta-feira, 5 de maio de 2021

EXISTE MUITA GENTE CHORANDO DE FOME - JAMES PIZARRO (DIÁRIO - edição de 4.5.2021)

Há cerca de uns 40 anos ou mais, fui a Porto Alegre numa cabine dupla de vagão-leito pelo cha- mado “trem noturno” em compa- nhia de um colega professor da UFSM. Íamos para um congresso na capital re- presentando os nossos departamentos. Rapidamente pegamos no sono com aquele “telec-telec”, ruído característi- co do rodado do trem sobre os trilhos e mais o embalo da composição. Horas depois, nos acordamos e o trem estava parado. Imaginamos que estivesse parado numa estação para pegar novos passageiros ou desembar- car outros. Mas a como a demora estava muito inquietante e se ouviam rumores nos corredores do vagão, abrimos a porta para saciar a curiosidade. E fica- mos sabendo da terrível notícia através do “chefe de trem” : alguns quilômetros adiante um trem havia descarrilado e nós estávamos sem saber que horas chegar a Porto Alegre. Com o trem pa- rado num lugar ermo, presos no meio do campo. Imediatamente, convidei meu com- panheiro de viagem para ir ao carro- -restaurante tomar café, comer um bife com dois ovos, tomar um suco para enfrentar a demora pois a equipe de so- corro para desobstruir a composição acidentada teria de vir de Porto Alegre. Quando chegamos ao carro-restauran- te constamos o óbvio: todos tiveram a mesma ideia. E não havia para nós nenhuma uma desgraçada fatia de pão torrado ou uma minguada bolacha- -maria. Fomos chegar a Porto Alegre às 15 horas. Cansados. Suados. Quase des- maiando de fome. Senti na própria carne as sensações fisiológicas da fome. Passei a estudar e a ler tudo sobre a fome. Li toda a obra do Josué de Castro. Passei a falar em aula sobre a geopolíti- ca da fome. A Geografia da Fome. A Bio- logia Social. A fome endêmica. Sobre as ideias de Malthus. Resolvi escrever a respeito desse episódio do trem ocorrido comigo porque fico com o coração partido quando vejo na TV as entrevistas das famílias que não têm o que comer. São milhões de brasileiros que, pelas mais diversas razões – pandemia, desem- prego, políticas sociais, desigualdade, etc – estão com suas geladeiras e ar- mários vazios. Não tenho posses, nem cargo, nem poder. Tenho apenas sensibilidade. E já há bastante tempo eu e minha mulher temos uma pessoa carente que fica nas ruas centrais da cidade para a qual de- dicamos atenção na doação de roupas, medicamentos, lanches, amizade, acon- selhamento. E, de uns meses para cá, compramos embalagens descartáveis no supermer- cado, com divisórias, tipo “bandejão”, onde colocamos arroz, feijão, carne, sa- lada, uma fruta – enfim – a mesma co- mida nossa – e diariamente depois do meio-dia ficamos ao lado do contêiner da Venâncio Aires, em frente à Galeria do Comércio, onde sempre tem alguém esperando aquela marmita. Uma só por dia, mas é o que podemos dar. Comida boa, higienizada, com uma garrafinha plástica de água. Por favor, não quero bancar o cari- doso, o generoso, o salvador, o bonzi- nho. Minha mulher nem queria que eu escrevesse essa crônica. Mas eu me arrisco à crítica porque eu sou teimo- so. Resolvi escrever para convocar o leitor a fazer algo semelhante. Porque em quase todas as casas sobra comida. Que acaba indo para o lixo. Enquanto existe gente passando fome. E fome dói. Machuca. Deprime. Deixa humilhado. Vamos ajudar ?

Um comentário:

Anônimo disse...

Que legal professor, atitude admiravel de vcs.