Já professor da UFSM, fui
designado pela reitoria para representar a UFSM e fazer palestra sobre Ecologia
na cidade de Getúlio Vargas, onde passava férias nos meus tempos de piá.
Falei para cerca de duzentas pessoas no cinema da cidade, numa promoção da
Delegacia de Educação da região. E pedi ao meu anfitrião um favor : eu queria
visitar o recém-criado município chamado "Antiga Estação", situado a uns
20 quilômetros dali, que fazia parte de Getúlio Vargas e onde meu tio Cassal
havia sido por décadas agente da estação ferroviária.
A outrora estrada barrenta
está hoje asfaltada. E em poucos minutos lá estava eu a visitar as velhas
instalações da ferrovia (ainda são as mesmas). A velha casa onde morava meu
tio, pintada de marrom, onde eu passava as minhas férias na infância. Apenas
dois funcionários na gare da estação que, na ausência de trens de passageiros,
estão ali apenas para a fiscalização dos trens carregados de soja que dali
partem em direção à cidade de Rio Grande. De onde a nossa soja é levada para
países asiáticos, para se transformar em ração para porcos. Ou para países
europeus, onde as pessoas já são superalimentadas e melhor saúde teriam se
comessem menos. Enquanto parte do nosso povo passa fome e morre com o nariz
achatado nas portas dos hospitais.
Falei com um dos funcionários,
o mais antigo, e ele bondosamente me proporcionou acesso aos livros antigos, já
depositados no "arquivo morto" da estação. Ao folhear os mesmos,
deparei-me centenas de vezes com a espalhafatosa e esparramada assinatura de
meu saudoso Tio Cassal, autorizando isso ou aquilo.
No pátio da antiga e
abandonada casa, pude ver o poço - de onde tirávamos cristalina e pura água
gelada - atulhado e transformado numa espécie de floreira. Um velho pé de
plátano, com o tronco cheio de buracos e condenado à morte, completava o
desolador quadro de abandono daquele pátio que foi tão importante nas minhas
férias de guri.
Ao lado daquele pé de plátano
ficava uma gaiola, com o bicho de estimação de meu tio : um gracioso cardeal. A
gaiola ficava com a porta permanentemente aberta. O cardeal comia nas mãos de
meu tio, ao amanhecer. E depois, voava para longe, passando o dia fora. Lá pelas
18:00h, servindo chimarrão para meu tio, ouvia ele dizer : "Vamos para o
pátio que tá na hora do cardeal voltar". Inacreditável ! O bichinho
aparecia. E como por encanto, pousava no dedo indicador do meu tio, que o
colocava na gaiola. Onde já estavam um pedacinho de banana mole, uma gema de
ovo e alpiste com semente de girassol.
Décadas depois, contei isso
numa aula de Ecologia. Enquanto me virei para apagar o quadro-negro, tive o
dissabor de ouvir este comentário de um aluno da primeira fila : "Que baita
atochada ! "
Quer dizer: passei por
mentiroso simplesmente porque estava contando...a verdade!
Não se fazem mais alunos como
antigamente. Que ainda tinham a perspectiva encantadora do mistério.
Como também não se fazem mais
tios inveteradamente encantadores. Nem tão pouco se fazem cardeais encantados
com a liberdade, embora apaixonados por seu dono.
Por que esses tios têm de
morrer ?
Por que esses cardeais são
condenados à extinção ?
Por que a gente tem de
caminhar rumo a uma antiga e pungente estação, chamada Solidão, que precede
nossa chegada à estação definitiva ?
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