segunda-feira, 1 de novembro de 2021

A ESTRADA - JAMES PIZARRO (DIÁRIO - 02.11.2021)

Desculpe o mau jeito, caro amigo. Mas você acaba de morrer. Morrer você e seu carro. Você é um daqueles caras recolhidos ao Instituto Médico Legal. Você é a nossa triste notícia. Mais uma rotineira manchete. Vamos falar com franqueza : nós detestamos dar notícias tristes. Todos os fins-de-semana, após cada feriadão, procuramos nunca chocar as pessoas. Porque o que gostamos mesmo de falar é da beleza dos ipês-roxos nos morros de Santa Maria. Dos ipês-amarelos do campus da UFSM. Da beleza das quaresmeiras e azaleias. E dos plátanos à beira das estradas. Somos até um pouco exagerados e repetitivos. Vivemos pedindo aos pedestres que tomem cuidado ao atravessar as ruas e avenidas. E não nos cansamos de alertar os motoristas dentro e fora da cidade. Porque em cada rua, preferencial ou não, sempre há uma criança ou um velhinho. E essa gente requer uma atenção toda especial. Fazemos isso não só nos feriadões e fins-de-semana. Mas todos os dias. Existem alguns raros otimistas que acreditam no impossível : que um belo dia ninguém morrerá nas estradas nem nas ruas. É claro que quando isso acontecer – se acontecer – essa será a nossa manchete ! Até lá nós vamos dando avisos. Conselhos. Recomendações. E nem assim, meu caro amigo, você se livrou de morrer ! Não precisa nos dar nenhuma explicação ! Apenas queremos saber que desculpa você vai dar à sua mulher, que está no hospital. Ou a seus filhos, agora órfãos. É melhor não falar nada. Eles não estão querendo desculpas. Eles estão querendo você ! É inútil falar dos freios. Da fechada. Lombada. Ultrapassagem. Sono. Dois dedos de caipirinha. Pressa. Compromissos. Hora marcada. Falta de sinalização. Ausência de policiamento. Falta de estabilidade do automóvel. Defeito do velocímetro. Luz alta. Nós o estávamos esperando de volta. E você falhou. E não foi por falta de aviso. Sempre. Em todos os momentos. A mídia e nós cansamos de dizer que “todo carro é uma arma”. E uma arma que não perdoa desaforo. Agora estamos aqui com seu prontuário de bom motorista. Sem saber o que fazer com ele. Mas isso não é vantagem. Todos nós somos bons motoristas. Os melhores do mundo ! E disso nos gabamos enquanto lemos (porque estamos vivos) a relação dos mortos nas estradas. Enquanto lemos a estória da sua morte. A morte de um ex-bom motorista. Veja : você acabou de manchar de sangue o seu prontuário ! Você acaba de jogar fora a sua vida. Você não tem nenhuma desculpa. Você, meu caro amigo, morreu numa estrada asfaltada que corta o centro do Paraná. E você, meu caro amigo, vai nos fazer muita falta. Que pena !

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