terça-feira, 24 de abril de 2018

UM CARDEAL APAIXONADO POR UM TIO INESQUECÍVEL - James Pizarro (jornal DIÁRIO DE SM, pág. 4, edição de 24.4.2018)


Já professor da UFSM, fui designado pela reitoria para representar a UFSM e fazer palestra sobre Ecologia na cidade de Getúlio Vargas, onde passava  férias nos meus tempos de piá. Falei para cerca de duzentas pessoas no cinema da cidade, numa promoção da Delegacia de Educação da região. E pedi ao meu anfitrião um favor : eu queria visitar o recém-criado município chamado "Antiga Estação", situado a uns 20 quilômetros dali, que fazia parte de Getúlio Vargas e onde meu tio Cassal havia  sido por décadas agente da estação ferroviária.

A outrora estrada barrenta está hoje asfaltada. E em poucos minutos lá estava eu a visitar as velhas instalações da ferrovia (ainda são as mesmas). A velha casa onde morava meu tio, pintada de marrom, onde eu passava as minhas férias na infância. Apenas dois funcionários na gare da estação que, na ausência de trens de passageiros, estão ali apenas para a fiscalização dos trens carregados de soja que dali partem em direção à cidade de Rio Grande. De onde a nossa soja é levada para países asiáticos, para se transformar em ração para porcos. Ou para países europeus, onde as pessoas já são superalimentadas e melhor saúde teriam se comessem menos. Enquanto parte do nosso povo passa fome e morre com o nariz achatado nas portas dos hospitais.

Falei com um dos funcionários, o mais antigo, e ele bondosamente me proporcionou acesso aos livros antigos, já depositados no "arquivo morto" da estação. Ao folhear os mesmos, deparei-me centenas de vezes com a espalhafatosa e esparramada assinatura de meu saudoso Tio Cassal, autorizando isso ou aquilo.

No pátio da antiga e abandonada casa, pude ver o poço - de onde tirávamos cristalina e pura água gelada - atulhado e transformado numa espécie de floreira. Um velho pé de plátano, com o tronco cheio de buracos e condenado à morte, completava o desolador quadro de abandono daquele pátio que foi tão importante nas minhas férias de guri.

Ao lado daquele pé de plátano ficava uma gaiola, com o bicho de estimação de meu tio : um gracioso cardeal. A gaiola ficava com a porta permanentemente aberta. O cardeal comia nas mãos de meu tio, ao amanhecer. E depois, voava para longe, passando o dia fora. Lá pelas 18:00h, servindo chimarrão para meu tio, ouvia ele dizer : "Vamos para o pátio que tá na hora do cardeal voltar". Inacreditável ! O bichinho aparecia. E como por encanto, pousava no dedo indicador do meu tio, que o colocava na gaiola. Onde já estavam um pedacinho de banana mole, uma gema de ovo e alpiste com semente de girassol.

Décadas depois, contei isso numa aula de Ecologia. Enquanto me virei para apagar o quadro-negro, tive o dissabor de ouvir este comentário de um aluno da primeira fila : "Que baita atochada ! "

Quer dizer: passei por mentiroso simplesmente porque estava contando...a verdade!

Não se fazem mais alunos como antigamente. Que ainda tinham a perspectiva encantadora do mistério.

Como também não se fazem mais tios inveteradamente encantadores. Nem tão pouco se fazem cardeais encantados com a liberdade, embora apaixonados por seu dono.

Por que esses tios têm de morrer ?

Por que esses cardeais são condenados à extinção ?

Por que a gente tem de caminhar rumo a uma antiga e pungente estação, chamada Solidão, que precede nossa chegada à estação definitiva ?

domingo, 22 de abril de 2018

O APOSENTADO

O velhinho caminhava tranquilamente quando passa em frente a um prostíbulo. Uma prostituta grita :
"Oi, Vovô! Por que não experimenta?"
O velhinho responde:
"Não, filha, já não posso!"
A prostituta: "Ânimo !!!!Venha, vamos tentar !!!"
O velhinho entra e funciona como um jovem de 25 anos 3 vezes ... e sem descanso.
"Puxa", diz a prostituta, "E ainda diz que já não pode mais?"
O velhinho responde:
-" Aaah, transar eu posso, o que não posso é pagar!"

quinta-feira, 12 de abril de 2018

A MORTE DO DESENHISTA - James Pizarro.

Quando tinha 14 anos, depois de tirar nota máxima na disciplina de Desenho durante todo o Ensino Fundamental (chamado de "Ginásio" à época), decidi ser desenhista. Eu tinha uma espécie de baú de vime atrolhado de milhares de desenhos e pinturas.
Devido à falta de dinheiro da família, eu misturava tinta de sapato, cola e talco e passava em cima de folhas de papelão e esperava endurecer. Depois fazia desenhos em cima com uma lâmina de barbear. Devido a esta "técnica" inventada por mim, a professora Dilma, minha mestra de Desenho no Colégio Estadual Manoel Ribas, em S. Maria, RS, promoveu uma exposição dos meus trabalhos nos murais e corredores da escola. Foi um sucesso no meio dos colegas pelo inusitado do material usado.
Tendo o incentivo da professora Dilma, fui falar a meu pai que queria entrar no então existente "Instituto de Belas Artes", que funcionava na rua do Acampamento, dirigido pelo maestro Garibaldi Poggetti. Lá ministrava cursos de desenho o pintor Eduardo Trevisan.
Meu pai, horrorizado pela idéia de que eu pudesse abandonar o estudo formal e sendo vítima também do preconceito que se tinha na década de 1950 contra artistas em geral, não deu seu consentimento. Lembro da terrível discussão que se seguiu, fruto da intolerância de meu pai e de minha rebeldia. Indignado por ver frustrado meu desejo, carreguei meu baú de desenhos para o meio do quintal e, munido de uma garrafa de álcool, toquei fogo em tudo. Enquanto via desaparecer meus desenhos e minhas pinturas sob a inclemência das chamas, eu chorava de pena e de ódio.
Durante os 45 anos que dei aulas de Biologia na UFSM, cursinhos e colégios, os alunos ficavam admirados com os belos desenhos de plantas, animais, órgãos, etc...que eu fazia no quadro-negro. Mal sabiam eles que eu estava sendo um artista naqueles momentos e não um professor comum de Biologia, tentando resgatar meus desenhos adolescentes das chamas do passado e da incompreensão do meu pai.
Meu futuro de desenhista e pintor foi abortado por meu pai. Certamente, na melhor das boas intenções. Mas foi minha primeira frustração.
Eu pagaria um preço alto para ter alguns desenhos daqueles de volta. Para dar de presente aos meus seis netos. Mas este é um milagre impossível.
Morreu minha professora de Desenho.
Morreu o Garibaldi Poggetti.
Morreu o Eduardo Trevisan.
Morreu meu pai.
Evaporaram meus desenhos.
E se volatilizou meu sonho.

QUANDO A VIDA SE ESVAI - James Pizarro.

Meu pai era enfermeiro. Trabalhava no Centro de Saúde número 7, em S. Maria, RS, durante o dia. À noite, trabalhava no SAMDU - Serviço de Assistência Médica Domiciliar e de Urgência, folgando entre uma noite e outra. E nas horas de "folga" ainda aplicava injeções a domicílio, geralmente em casas de famílias abastadas da cidade.
Minha mãe era dona-de-casa exemplar para os padrões exigidos à época... Cozinhava muito bem. Costurava e fazia nossas roupas. Fazia doces e bolos sob encomenda. E reclamava porque nunca tinha conseguido concluir seu curso de violino, iniciado no Colégio Santa Terezinha, interrompido pelo casamento.
Tive uma infância com educação severa. Apanhei muito. E cerca de 90 % das surras eram merecidas. Apanhava de vara de marmelo. De chineladas. E até de relho, desses de carroceiro bater em cavalo.
Também ficava muito de castigo. Quando eu dizia palavrões, me colocavam pimenta na lingua, providência pedagógica que se revelou ineficaz, além de me deixar viciado em pimenta... Costumavam me privar das coisas que eu mais gostava. Cortavam meu cinema. Aboliam a "Cyrillinha", refrigerante de fabricação local, feito à base de casca de laranja e que era minha bebida predileta. Eu era impedido de jogar bola. De brincar na sanga, hoje arroio Cadena.
Normalmente, depois da surra, eu era obrigado a tomar banho, vestir um abominável pijama de pelúcia e ficar no meu quarto, nariz esborrachado na vidraça, vendo meu amigos jogando bola na rua.
Existia uma espécie de sadismo, reconheço hoje. Mas era o sistema educacional vigente na década de 40/50.
Meu pai era onipotente. Mandava em tudo. Dirigia tudo. E tudo obedecia à sua vontade. Os parentes todos obedeciam. E o único que se rebelava, teimava e mantinha discussões acirradas com ele era eu. Minha psiquiatra diria décadas depois que eu consegui criar um "mecanismo reativo" e , adulto, me transformei num contestador em todas as áreas onde atuei. Nunca suportei mandonismos, chefias, opressões, ordens absurdas. Sempre fui da oposição politicamente. E de certa forma, acho que inconscientemente temo que meus candidatos assumam um dia o poder. Porque terei de ficar contra eles. Porque todos eles se corrompem e ficam sendo o inverso do que pregavam ser.
Mas meu pai era generoso. Eu tinha conta livre na Livraria do Globo para comprar todos os livros que quisesse. E todas as vezes que precisei de carona, de ajuda, de dinheiro...eu disse TODAS...ele nunca me falhou. E tinha uma peculiaridade : nunca me perguntou o porquê do pedido... o porquê da minha necessidade. Jamais usou este procedimento de humilhação, tão comum nos mais velhos que "ajudam".
Aos 84 anos, o cardiologista indicou-lhe uma cirurgia para correção de um defeito. Lembro que ele não queria fazer. Eu fui procurar o médico, meu ex-aluno no cursinho pré-vestibular décadas atrás. Ele me disse que, sem a cirurgia, meu pai morreria repentinamente e que tinha, no máximo, seis meses de vida. O médico me disse que esse diagnóstico não era só dele mas de toda a equipe que acompanhava o caso de meu pai.
Certa madrugada, meu pai me chamou prá tomar chimarrão com ele às 5 da manhã. E pela primeira vez me pediu um conselho :
- O que eu devo fazer ?
Eu disse a ele :
- Tu tens de te operar, o cirurgião é excelente e tu vais viver muitos e muitos anos.
Ele me disse :
- Vou me operar então...tomara que dê tudo certo porque eu quero ver a formatura dos meus bisnetos.
A operação em si foi um sucesso. Mas na sala de recuperação rompeu-se a aorta abdominal, que possuía um aneurisma, coisa que os médicos ignoravam. E ele morreu. Meu avô também morreu assim...de ruptura da aorta abdominal.
Fui ao necrotério. Vi meu pai nu, morto. Com cortes e suturas, porque precisaram fazer procedimentos no cadáver, devido à imensa hemorragia interna.
Começaram a chegar os amigos. Os clubes da Terceira Idade. O pessoal da funerária. Minhas filhas, uma de Itajubá, MG e outra de Panambi, RS, foram avisadas. Meu filho, que mora em Santa Maria, foi nosso companheiro e presença sempre.
Ele foi velado na sala de sessões da Câmara de Vereadores, pois tinha sido vereador na legislatura de 1958.
Eu aguentei tudo dentro dos limites do possível. Mas quando minha mulher me avisou que meus alunos estavam chegando eu desabei. Olhei e vi aquelas turmas todas, aquela gurizada toda de 15...16 anos, dos quais eu era professor orientador...aqueles olhos assustados com o choro do seu professor...eu desabei literalmente. A Carolzinha me disse : "Nós pedimos o cancelamento das aulas pra ficar com contigo, Pizarro...como tu ensinaste prá gente, que na hora da dor a gente fica junto".
Dia desses me surpreendi fazendo um ultrassom abdominal para pesquisa de anomalias na aorta abdominal. Ela está íntegra. Sem anomalias.
Por enquanto.

MINHA DISTRAÇÃO E MEUS ALUNOS - James Pizarro

Depois de ter me aposentado na UFSM ainda dei aulas numa escola particular durante 7 anos, onde ajudei a instalar o ensino médio até então inexistente naquele educandário.
Foi um período muito feliz por causa do contato com os alunos, as novas amizades (que duram até hoje) e pela experiência que sempre quis fazer : ser professor de Biologia de uma mesma turma durante os 3 anos do ensino médio. Isto é, desenvolver com eles um trabalho metodológico, com bases evolucionistas. E eu mesmo dando todo o conteúdo : Citologia, Genética, Ecologia, Botânica e Zoologia.
Fora da sala de aula eu frequentava o barzinho da escola onde fazia meu lanche com os alunos, deixando meses a fio de comparecer na sala dos professores, o que no final foi mal visto pela direção e por alguns colegas de mente obtusa.
Os alunos me visitavam em casa também para tomar chimarrão e contar suas mágoas, seus problemas com drogas, aborto, namoro, dores de corno e outros assuntos comuns à adolescência. Eu tinha dedicação total para eles, pois amava o que estava fazendo. Eu me dava conta que não estava sendo apenas um vomitador de conteúdo, mas também um educador !
Reconheço que exerci influência sobre a cabeça da maioria deles. Muitos foram cursar a universidade em faculdades pertinentes à Biologia por influência minha. Centenas deles tenho adicionados ao meu messenger, através dos quais trocamos idéias e experiências. Daria um livro rememorar tudo.
Mas o que me veio à mente hoje foi um fato curioso ocorrido em 2002 com uma turma que tinha aula comigo às 7,30h. Eu costumava levantar muito cedo e me arrumar no escuro para não acordar minha mulher. Quando comecei a minha aula todo mundo começou a cochichar e sorrir. Foi daí que me dei conta que eu estava com um pé de sapato preto e o outro pé de tênis. Dei aula toda a manhã daquele jeito.
Qual não é minha surpresa que no dia seguinte todos os 40 alunos da sala compareceram à escola com pés de sapatos e tênis de cores diferentes, o que causou uma algazarra em todo o colégio. Admoestados por uma das coordenadoras, os alunos disseram que eu tinha lançado a moda e eles queriam me acompanhar porque tinham achado excelente a idéia. A gurizada do ensino fundamental já estava se combinando em fazer a mesma coisa.
Fui chamado à vice-direção, que me pediu explicações. Eu disse que não tinha explicações a dar. E que não poderia ser culpado por algo que não fiz intencionalmente. Instado a dizer se eu tinha feito comentário para os alunos diante da balbúrdia eu disse :
"- Fiz comentário, sim. Disse que achava ótima a alegria deles e que se quisessem continuar vindo de sapatos e tênis trocados teriam todo meu apoio. Eu me interesso é pelo cérebro deles e não pela moda."
Por episódios como este e por causa de outras coisas "modernas demais" para a escola, alguns meses depois fui demitido. Mas valeu a pena. Foram 7 anos de alegre e salutar convívio com os alunos.
E o que mais me dá orgulho é que no ano em que fui demitido eu era "professor conselheiro" de duas turmas do ensino médio e homenageado dos formandos.
Eu queria ir à formatura com os pés de sapato de cores diferentes. Mas como minha mulher não deixou, não fui à cerimônia...

terça-feira, 10 de abril de 2018

QUE BRUTAL SAUDADE DA FERROVIA DA MINHA INFÂNCIA ! - James Pizarro (crônica no DIÁRIO, pág.4, edição de 10.4.2018)


 Nas cercanias do Colégio Estadual Manoel Ribas funcionava a monumental Cooperativa dos Ferroviários da Viação Férrea do Rio Grande do Sul, com dezenas de prédios dedicados a múltiplos fins. Um grande prédio servia de sede burocrática. Outro, de armazém de "secos e molhados", expressão em voga à época. Ali existia qualquer tipo de alimento imaginável para comprar.

Anexo a este grande armazém havia loja de roupas e tecidos, alfaiataria, relojoaria, carvoaria, fábrica de sabão, padaria, lenheira, farmácia. Ao lado do prédio do Maneco funcionava um gigantesco açougue, prédio em ruínas ainda hoje existente. Em frente a este prédio, no passado, formava-se longa fila desde a madrugada, principalmente de meninos que, munidos com seus "ganchos" (estruturas de ferro em forma de letra jota) esperavam para levar a carne para casa.

Não se usava dinheiro, pois a cooperativa fornecia, no início de cada mês, uma série de "vales", fichas de papelão azul que correspondiam a um certo valor em dinheiro, de acordo com o ordenado do ferroviário. Os meninos entregavam aqueles "vales" para o açougueiro (eram mais de 10 açougueiros atendendo simultaneamente), em troca dos "pesos" solicitados. Chamava-se de "peso" ao tipo de carne solicitada, isto é, filé, costela minga, coxão de fora, coxão de dentro, etc...Tinha de haver cuidados no transporte daquele gancho com carne até à casa. Os cachorros iam atrás, pulando, para roubar a carne. Muito guri tomou surras homéricas por ter deixado o gancho com carne no chão enquanto jogava bolita (bola de gude). E a cachorrada levava a carne do penitente. Ou a carne era roubada por outros guris !

Às vezes, mentiam que não tinha chegado a carne. E trocavam os "vales" por outro tipo de compra nos bares e lojas da cidade. Os "vales" tinham inteira credibilidade na comunidade santa-mariense e circulavam livremente no comércio, como se dinheiro fosse. Aliás, os próprios adultos - quando ficavam com pouco dinheiro no fim do mês e tinham "vales" sobrando - trocavam-nos por dinheiro, numa transação chamada popularmente de "touro". Era comum o ferroviário dizer : "Me apertei de dinheiro, vou ter de fazer um touro." Não consegui descobrir até hoje o porquê do uso da expressão "touro".

Os sapatos todos que usei, até à idade de 15 anos ou 16 anos, foram presentes dos meus avós maternos, vó Olina e vô Fredolino. Sapatos comprados na sapataria da Cooperativa dos Ferroviários. O primeiro relógio que ganhei na vida, de enorme mostrador e pulseira de couro brilhante, foi comprado na relojoaria da Cooperativa : era um típico "cebolão" ! Na época, chamava-se "cebolão" ao relógio que possuía mostrador muito grande.

A ferrovia, a cooperativa e o MANECO marcaram para sempre minha vida. E creio que a vida de milhares de conterrâneos. Por isso, quando vejo o prédio da Associação dos Ferroviários, clube social onde muito dancei e assisti partidas de bolão, virado numa tapera e os prédios abandonados da outrora pujante cooperativa abandonados, meu coração se aperta.

E tenho de me controlar para não chorar em plena via pública.


quarta-feira, 4 de abril de 2018

TARZÃ, O FALECIDO - James PIZARRO.


Tive a sorte de possuir uma infância com enorme pátio na minha casa. Que se continuava no pátio da casa dos meus avós, que moravam ao lado. As duas casas ficavam nos barrancos da Silva Jardim, em Santa Maria, entre as ruas Dutra Vila e Benjamin Constant.
Logo abaixo ficava o arroio Cadena, enorme sanga com água corrente, com vegetação marginal formada por arbustos, ervas, grama, bananeiras, taquareiras e árvores de pequeno porte. Na água a gente ainda encontrava peixinhos. E no terreno que margeava o arroio a gente encontrava sapos. Rãs. Pererecas. Cágados. Insetos. Lesmas. De vez em quando aparecia uma cobra, que causava alvoroço entre a gurizada.
Tudo isso hoje desapareceu. O Cadena, cujas nascente se encontram perto da antiga rodoviária - onde hoje existe um grande supermercado - se encontra canalizado. E tudo se transformou no que se chama hoje de "Parque Itaimbé".
No pátio da minha casa tinha árvores frutíferas de várias "qualidades", como dizia minha avó. Algumas árvores de grande porte, como jacarandás, cinamomos, laranjeiras. Tinha bergamoteiras, abacateiros, limoeiros, figueiras e - coisa que nunca mais vi - até um pé de marmeleiro. Eu odiava este pé de marmeleiro porque várias surras eu tomei com os galhos arrancados dele, as populares "varas de marmelo". Eram finas, flexíveis e - depois de tiradas as folhas - ficavam saliências que produziam hematomas ardidos nas pernas.
Numa enorme laranjeira, alta, frondosa, com dois galhos caprichosamente paralelos eu fiz a minha "casinha do Tarzã". Com tábuas pregadas nos galhos, tinha uma área para que duas pessoas pudessem sentar-se. E lá ficava conversando com meus amigos. Guardava algumas revistas de mulheres nuas, raridade naqueles tempos ingênuos. Trocava confidências. Ficava longe das amigas da minha irmã que costumavam bisbilhotar. Lá ficava deitado olhando nesgas de céu que apareciam por entre os galhos e folhas da laranjeira. E quando a árvore dava frutos, comia lá em cima mesmo as doces laranjas.
Passaram-se os anos e vi meus netos brincando com gerinçonças eletrônicas. Vendo filmes e desenhos animados com monstros, brigas, assassinatos, pauladas, facadas, guerras. Eles nem sabem o que era ver um "filme de mocinho" ou de outros heróis, como Roy Rogers, Hopalong Cassidy, os irmãos Jesse James, Durango Kid, Capitão Marvel, Batman e Robim, o Homem Submarino, o mágico Mandrake.
Tarzã já morreu há muitos anos.
E eu nem me dei conta disso.