terça-feira, 24 de setembro de 2019

SEU PRÉDIO ESTÁ BEM SEGURO CONTRA INCÊNDIO ? - JAMES PIZARRO (DIÁRIO, pág.4, edição de 24.09.2019)


As poderosas redes de televisão do país na última semana encheram nossos olhos com imagens chocantes do incêndio ocorrido no Hospital Badim. A tragédia ocorrida no hospital carioca deixou um saldo de uma dezena de mortos e inúmeras pessoas intoxicadas pela fumaça.  Além das naturais situações de pânico, pavor, despreparo para atendimento  imediato, solidariedade de vizinhos, improviso, conforme relato dos próprios parentes dos internados. A tragédia poderia ter sido muito maior.

No dia 20 de agosto de 1954 (uma sexta-feira), assustado, com meus 12 anos, assisti ao terrível incêndio da Escola das Artes e Ofícios Hugo Taylor, na esquina da  avenida Rio Branco com a Andradas. Anos depois, no mesmo lugar, assisti mais dois incêndios : o do Shopping Hugo Taylor e  o do Colégio Riachuelo.  Mais recentemente, nas proximidades deste local, o trágico incêndio da boate  Kiss, que vitimou 242  jovens, dezenas deles meus ex-alunos.

De  sorte que, por tudo que narrei, sou traumatizado por incêndios e tenho medo deles.

Conversando com meus amigos na roda diária do cafezinho o assunto “incêndio” veio à baila. E obviamente muitas indagações foram feitas. Cogitações ficaram o ar. Todas elas, claro, contextualizadas  para situações de nossa cidade. Já que a maioria dos componente da roda são moradores de edifícios. Muitos idosos. Com dificuldades de andar. Alguns já usando bengala. Sabe-se  que nos prédios centrais há muito idoso que usa  cadeira de roda e andadores. Muitas perguntas ficaram no ar. Vou dividir com vocês algumas das inquietações dos meus amigos (e que são minhas também).

Nos edifícios são ministradas palestras (ou cursos) sobre como se comportar durante a eventualidade de um incêndio ? Mesmo que se promovam estas palestras, as mesmas não sendo de frequência obrigatória e com a rotatividade   dos inquilinos que alugam, que proveito terão  para a segurança ? Algum prédio na cidade já promoveu um exercício prático de  evacuação simulada de todos os moradores sob a coordenação de pessoal especializado ? Tenho a mais absoluta certeza que nosso valoroso Corpo de Bombeiros  - sempre que solicitado – estará  pronto a colaborar.

Todos os prédios  têm seus extintores em perfeitas condições, com prazo de validade, prontos para ser usados ? Os moradores foram treinados para usa-los ? Ou só os funcionários têm acesso a eles ? Eles são vistoriados periodicamente ?

Existem prédios (poucos) que não possuem funcionários  na portaria  durante a noite (outros estão cogitando dispensar funcionários no turno noturno por razões de “economia”, o que considero um erro grosseiro em matéria de segurança). Na eventualidade de um incêndio, a quem caberá a tomada de providências iniciais ?

Existem prédios com instalações internas obsoletas, precárias, necessitando de adequações modernas urgentes. Em alguns prédios o esforço e boa vontade do síndico esbarra na demora da companhia concessionária de energia em instalar transformador na parte externa do prédio.

Até quando empurrar tão urgente providência com a barriga ?

Moradores devem recorrer à justiça ? Condomínio deve acionar a concessionária de  energia ?

Ou devem apenas chorar pelos mortos depois ?

terça-feira, 10 de setembro de 2019

O RUSSO QUE AMAVA UM COLIBRI - JAMES PIZARRO (jornal DIÁRIO de S. MARIA, pág.4, 10.09.2019)


Pois a Iracema Dantas de Araújo é uma grande amiga que conheci, ao acaso, no mundo virtual. É professora, escritora, tradutora. Atenta a tudo que se passa no mundo. Seu marido é gaúcho e colorado de carteirinha ! Eles residem em Goiânia, Goiás.

Alma sensível, Iracema é engajada nas lutas ecológicas e de defesa de animais, não raro estando nas páginas dos jornais de Goiânia com seus textos. Gentilmente, mandou-me seu último livro em edição bilíngue. Por sua interferência já tive vários textos meus publicados na imprensa de Goiânia.

Está aqui no sofá da minha sala a almofada vermelha que ela mandou de presente para a minha mulher, assim como pendurada no teto está a mandala também vermelha enviada por ela. Vera Maria retribuiu com toalhinha com o nome de Iracema bordado. Enfim, somos amigos verdadeiros sem nunca termos nos visto.

Recebi e-mail da Iracema contando sobre a singela história ocorrida na rua com um amigo russo que mora em Goiânia, chamado Dimitri. Esse russo é casado com uma brasileira chamada Iraci. Vou transcrever a história do Dimitri, que se naturalizou brasileiro aos 74 anos, pelo que ela tem de delicada, terna e bela numa época onde a violência infesta qual praga os noticiários da mídia.

Este é o e-mail que Dimitri escreveu para Iracema :

"Iracema : toda tardinha vou comprar pão no supermercado da 23...na esquina tem muitos fios de energia e tem sempre um beija-flor pequeno, preto, c/rabinho em forma de tesoura...eu paro e dou um chauzinho c/2 dedos, o indicador e o médio...pois o beija-flor hoje deu um leve trinado e sacudiu o rabinho. Eu repeti o chauzinho pra ver o que acontecia...o passarinho repetiu o trinado e sacudiu o rabinho de novo. Vê como é a natureza ! Abraço do Dimitry/Iraci"

Quiçá para cada soldado que se mata estupidamente nas guerras existissem mil Dimitris pela face da Terra !

Para cada terrorista que mata brutalmente inocentes poderia existir um milhão de Iracemas em cada canto do planeta !

Como é bom  saber que em Goiás, distante milhares de quilômetros, uma escritora talentosa e de coração  nobre, mesmo com as limitações de cadeirante, é ativista do movimento ambientalista. E ainda encontra tempo para me mandar almofadas e mandala e ora por meus filhos e netos.

Como é bom saber que o russo Dimitri, no centro de Goiânia, dá chauzinho para o colibri que enterneceu seu coração e este lhe responde com suave trinado.

Apesar da corrupção, da maldade, da violência, do sanguinário noticiário da mídia, é preciso avançar com otimismo. Com a perseverança de um colibri no meio da fúria de um furacão.

O Bem sempre vencerá. Deus nos reserva surpresas maravilhosas.

E no amanhã acontecerão coisas fantásticas !

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

UMA PROSTITUTA QUE DEU O QUE FALAR - James PIZARRO

Clarimundo Flores foi uma das glórias do jornalismo gaúcho. Pouco estudado e lembrado. É praticamente desconhecido até nos cursos de Comunicação Social nesta terrinha de Imembuí. Depois que veio de Uruguaiana, estabeleceu-se em Santa Maria,na década de 60, com um semanário denominado "A CIDADE". A sede e oficina do jornal ficava na rua Astrogildo de Azevedo, em frente onde hoje funciona o Curso Grécia. Pois foi neste jornal que cometi meus primeiros desatinos em matéria de escrever,pelos quais paguei um duro preço no início da minha vida profissional, principalmente dentro da UFSM. Mas isso é assunto para outro dia...
Pois a edição de "A CIDADE", de 17 de maio de 1965, anunciava com destaque a seguinte manchete : "SARTRE NO PALCO LOCAL A PARTIR DE SEXTA-FEIRA PRÓXIMA". Acompanhei e ajudei na elaboração de toda essa matéria. Tratava-se da peça "A Prostituta Respeitosa", de autoria de Jean-Paul Sartre, que por imposição da censura era anunciada na imprensa e nos cartazes esparramados pela cidade simplesmente como "A P...RESPEITOSA". Os cartazes eram de autoria do meu amigo José Newton Bento. A ilustração para a matéria do jornal foi feita pelo meu colega dos tempos do MANECO, chamado Luiz Carlos Retamozzo, que anos depois encontrei em Curitiba, trabalhando em artes visuais.
Nesta edição de "A CIDADE" havia um artigo intitulado "PORQUE A TAC OPTOU POR SARTRE",assinado por um "desconhecido" chamado Carlos Breno. A censura governamental andou meses atrás do tal articulista,não o encontrando,pois a turma era unida e sabia ficar de bico calado. Pois 41 anos depois, pela primeira vez, faço a revelação da identidade do misterioso articulista. Carlos Breno era o pseudônimo usado pelo então estudante Tarso Genro, hoje nosso Ministro da Justiça, recentemente homenageado em Santa Maria com o título de cidadão santa-mariense. Tanto eu como o Tarso pertencíamos ao GVC-Grupo de Vanguarda Cultural, junto com Freire Junior, Tasso Trevisan, Eliezer Pacheco, Dartagnan Agostini, Carlos Alberto Robinson, João Nascimento, Heber Santos, Alberto Rodrigues,etc...O grupo fazia reuniões nos porões do edificio da atual Casa do Estudante, à rua professor Braga, numa sala ao lado do Teatro Universitário (atual "catacumba"). E toda noite era sagrado o encontro no Bar Moby Dick, em várias mesas reunidas, onde hoje se encontra a Galeria Seibel, em frente à agência central do Banco do Brasil.
A peça era uma promoção da pomposamente chamada TAC, que era a sigla de TRÍPLICE ALIANÇA CULTURAL, formada pela União Santa-mariense dos Estudantes (USE), Diretório Central dos Estudantes da USM (então chamada apenas de Universidade de Santa Maria) e do GVT-Grupo de Vanguarda Cultural. E serviu para inaugurar o TEATRO PASCHOAL CARLOS MAGNO, situado nos porões da sede da USE, à rua do Acampamento, no prédio então em construção (construção ainda não concluída 41 anos depois...). O embaixador Paschoal Carlos Magno, figura de renome nacional por ser um dos raros protetores da cultura e das artes em geral naqueles tempos negros, esteve presente na inauguração. Depois da extréia, foi jantar conosco no Moby Dick, numa comemoração que demorou até ao amanhecer.
A peça debatia um tema atual, qual seja o da segregação racial nos Estados Unidos. Justo no momento em que os americanos se debatiam num episódio sangrento entre negros e brancos. Para a extréia do dia 21 de maio de 1965, publicou-se também no jornal esta "maravilha" de formalidade e protocolo :
"O primeiro espetáculo está anunciado para sexta-feira próxima, dia 21, às 21 horas,em avant-première, em traje de noite, dedicada ao professorado local, autoridades especialmente convidadas e imprensa falada e escrita".
O espetáculo, que tinha censura até 14 anos, gerou uma polêmica bárbara, que tomou conta de toda a cidade. Pois estimulado por setores conservadores da sociedade, pelos guardiões da moral e dos bons costumes, pelas vestais do templo (que sempre foram numerosas e patologicamente organizadas por estas bandas) , meia dúzia de pessoas detentoras de poder tentaram cercear AINDA MAIS a liberdade de expressão (como se isso fosse possível com a censura ferrenha da época) dos estudantes e de todos os integrantes da TAC. Infelizmente e pressionado por estas pessoas, Dom Luiz Victor Sartori, o bispo daquela época abriu as baterias contra a peça de Sartre. Falava nas rádios,pregava nas missas e escrevia nos jornais que o povo católico não deveria comparecer às apresentações da peça. O que se revelou inútil, pois serviu de publicidade. Principalmente no meio estudantil, que lotava as apresentações.
Clarimundo Flores, jornalista polêmico e justo,pregador de total liberdade de expressão, abriu as páginas do valente tablóide "A CIDADE" (àquela época já dirigido por seu filho, J.B.Flores). E na contracapa do jornal,em página inteira (edição de número 9, Ano 6,maio de 1965), a TAC respondeu ao bispo numa "carta aberta". A carta, em nome de toda a TAC,foi assinada pelo meu querido amigo de quase meio século, Freire Junior (Diretor e ator da peça em questão).
O trágico equívoco em tudo isso é que os "moralistas" fizeram fogo cerrado contra a peça SEM TER LIDO A MESMA ! Se ativeram apenas ao nome. Porque o termo "prostituta " naquela época, e acredito que ainda hoje - em determinadas cabeças esclerosadas - causava impacto e soava como palavrão. O termo soava como pornografia. Quando a sujeira e o preconceito estão dentro da cabeça de quem fala. E não na boca de quem diz, escreve ou (no caso) encena uma peça. Afinal, Sartre - o pai do Existencialismo francês - era Prêmio Nobel de Literatura. Reconhecido em todo o planeta, era censurado nesta cidade de Santa Maria...
Em nome do resgate da memória da cidade e para conhecimento dos jovens de hoje, cito alguns dados da peça : Jean-Paul Sartre (texto), Miroel Silveira (tradução) e Pedro Freire Junior(direção). Cito a seguir os atores e seus papéis, bem como pessoal de apoio técnico :
Aldonir Costa (papel de Lizzie, a prostituta)
Carlos Horácio Genro (irmão de Tarso Genro, no papel de Fred)
J.Brasil Teixeira Filho (o negro)
Carlos Alberto Robinson (o inspetor)
Carlos Renan Mello (o policial)
Pedro Freire Junior (o senador)
Tarso Fernando Genro (contra-regra)
Luiz Carlos Retamozzo (iluminação)
Newton José Bento (diretor de cena)
Waldomiro Messias (montagem)
Maria Augusta...hoje Feldman (maquilagem)
Elvandro (fotografias)
José Bento (xilogravura)
Eduardo Trevisan (desenho de Sartre na capa do programa)
A peça obteve sucesso tão estrondoso que o embaixador Paschoal Carlos Magno, que assistiu a extréia, selecionou a mesma para que fosse representar o Rio Grande do Sul no "V Festival de Estudantes do Brasil", que se realizou em junho de 1965,na Aldeia de Arcozello (primeira Universidade de Arte no Brasil), no Estado da Guanabara.
Muita gente ajudou a peça a ser encenada. A Rádio Santa-mariense, gratuitamente, ofereceu as gravações do poema de Hughes e a advertência de Genet, utilizados durante a peça. Rádio Guarathan abriu espaços para propaganda. A Rádio Imembuí emprestou os efeitos sonoros. O decorador e empresário Braustein orientou nos móveis. Muitas famílias sem medo e de cabeça arejada emprestaram móveis, vasos, etc...Waldomiro Messias construiu SOZINHO todo o teatro Pascoal Carlos Magno. O Coronel Walter Almeida, ligado ao movimento de março de 1964, no meio daquele obscurantismo todo contra a peça soube muito bem compreender os estudantes. E por isso faço esse registro aqui, registro que também o Freire Junior fez no programa (folheto) explicativo da peça, distribuido antes das sessões.
Como sou detalhista e gosto dos pormenores históricos, o que mais me espantou nos perseguidores da peça foi isso : a peça foi encenada em Santa Maria em 1965. Mas Sartre a escreveu em 1951, 14 anos ANTES ! Ela foi encenada no Brasil pela Maria Della Costa, à época,a primeira dama do teatro brasileiro. Portanto, não era uma "armadilha escrita propositadamente para corromper a juventude santa-mariense",como escreveu um figurão local.
Os anos se passaram. A História começa a fazer sua leitura crítica. As cabeças estão um pouco mais arejadas. A censura hoje é mais velada. Ninguém mais vai para a cadeia por razões culturais. E a gente pode escrever livremente sobre isso.