terça-feira, 23 de abril de 2019

UMA NOITE MÁ - JAMES PIZARRO (DIÁRIO de S. Maria, pág. 4, edição de 23.4.2019)


Era domingo de manhã. Eu havia chegado tarde da noite. Era 14 de junho de 1965. Morava separado da casa da família. Meu quarto era no fundo do pátio. Onde ficava assegurada minha privacidade. Acordei pelas 8h da manhã com os gritos da minha mãe. Que esbordoava a porta do meu quarto pedindo socorro.
Meu avô morava na casa ao lado. Estava caído no chão da cozinha. Gemia com muita dor no peito.
Chamamos um taxi, naquela época chamado de "carro de praça". Levado ao hospital, foi sedado. E iniciaram os exames para o diagnóstico. Só à noite descobriram que era um aneurisma na aorta. Que estava por rebentar. A única solução era uma cirurgia heróica.
Minha avó estava desesperada. Amava meu avô. O cirurgião disse que tínhamos de providenciar doadores de sangue naquela hora. Pois não existiam bancos de sangue na cidade.
Enquanto minha namorada ficava no hospital, fui para a rua à cata de doadores. Consegui alguns nos quartéis da cidade. Mas eles foram desnecessários. Mal a operação havia iniciado, a aorta rompeu-se e esguichou sangue por todo o bloco cirúrgico. Meu pai, enfermeiro, auxiliava na cirurgia como instrumentador.
Quando subi ao segundo andar da "Casa de Saúde", em Santa Maria, eu o vi com o avental ensanguentado. E os médicos também. Meu pai chorava. Eu tive a péssima idéia de entrar no bloco cirúrgico enquanto retiravam o cadáver de meu avô. Duas funcionárias já providenciavam na limpeza. O local me pareceu mais um abatedouro. Como se tivessem sangrado um porco.
Quando desci ao térreo, minha mãe estava desolada. E me disse : "Tu és a pessoa mais ligada com a tua avó, tu tens de contar pra ela". Coube a mim falar para minha amada avó. Ela se agarrou a mim. Ficou muda. Petrificada. Com olhar de espanto.
Nunca haverei de me esquecer daquela noite. O carro fúnebre levando o corpo do meu avô para casa. Porque naquela época os corpos eram velados em casa. O carro subindo a avenida Rio Branco, coberta de densa cerração. E minha avó, com a cabeça deitada em meu ombro, soluçando, num taxi que nos levava. Porque ninguém da família possuía carro.
Daquela hora em diante, eu e minha namorada Vera Maria - com quem casei - ficamos exclusivamente cuidando da minha avó. O enterro teve grande acompanhamento, pois meu avô era muito querido no meio dos ferroviários. No Clube de Atiradores Santa-mariense. No grupo de bolão "7 de setembro". Na Igreja Católica, onde ele fazia parte dos Vicentinos.
Eu não fui ao enterro. E nem deixei minha avó ir. Vi aquela enorme fila de carros atrás do carro fúnebre subindo a rua Silva Jardim. E ficamos em casa eu, minha namorada e a vó Olina. Ela apertou minha mão e me disse que não podia haver coisa mais triste do que aquela. Anos depois eu ficaria de mãos com ela na hora de sua morte.
E nestes últimos anos morreram meu pai e meus sogros. E por último, minha mãe. Tempos mais modernos. De se morrer sozinho no CTI, UTI ou UNICOR. Não importa a sigla burocrática. Ouvindo ruídos de eletrocardiógrafos. Respiradouros artificiais. Tubos de oxigênio no máximo de sua pressão. Murmúrios de vozes. Rostos estranhos. Máquinas que tentam fazer o impossível. Sem ninguém para apertar suas mãos. Como provavelmente também morrerei eu. Sozinho.
Ah...lembrei que o Tarso, um dos meus netos, está no quarto ano de Medicina na UFSM.
Com um pouco de sorte quem sabe ele – já formado - esteja de plantão por lá. Para agarrar minha mão.
Enquanto a vida for se esvaindo. Como o som do clarinete do Benny Goodmann.
Seria muita sorte...

sábado, 20 de abril de 2019

BALNEÁRIO DO PASSO DO VERDE : LUGAR DE LAZER SOB O OLHAR DE UM AMBIENTALISTA - JAMES PIZARRO (jornal DIÁRIO, 21.5.2015

DIÁRIO (Santa Maria), edição de 20.4.2019, seção " MEMÓRIA " : "Balneário do Passo do Verde: lugar de lazer sob o olhar de um ambientalista" . Texto : JAMES PIZARRO Fotos: GASPAR MIOTTO
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terça-feira, 9 de abril de 2019

"ALTO DA EIRA" : QUEM SABE ONDE FICA ? - JAMES PIZARRO (crônica na pág 4 do DIÁRIO de S. Maria, edição de 9.4.2019)


Tive a sorte de possuir uma infância com enorme pátio na minha casa. Que se continuava no pátio da casa dos meus avós, que moravam ao lado. As duas casas ficavam nos barrancos da Silva Jardim, em Santa Maria, entre as ruas Dutra Vila e Benjamin Constant. Hoje, pelo plano diretor, é zona central. Bem antigamente, antes de se chamar Vila Leste e bairro Menino Jesus, aquela região se chamou Alto da Eira.

Logo abaixo ficava o arroio Cadena, enorme sanga com água corrente, com vegetação marginal formada por arbustos, ervas, grama, bananeiras, taquareiras e árvores de pequeno porte. Na água a gente ainda encontrava peixinhos. E no terreno que margeava o arroio a gente encontrava sapos. Rãs. Pererecas. Cágados. Insetos. Lesmas. De vez em quando aparecia uma cobra, que causava alvoroço entre a gurizada.

Tudo isso hoje desapareceu. O Cadena, cujas nascente se encontram perto da antiga rodoviária - onde hoje existe um grande supermercado - se encontra canalizado. E tudo se transformou no que se chama hoje de "Parque Itaimbé".

No pátio da minha casa tinha árvores frutíferas de várias "qualidades", como dizia minha avó. Algumas árvores de grande porte, como jacarandás, cinamomos, laranjeiras. Tinha bergamoteiras, abacateiros, limoeiros, figueiras e - coisa que nunca mais vi - até um pé de marmeleiro. Eu odiava este pé de marmeleiro porque várias surras eu tomei com os galhos arrancados dele, as populares "varas de marmelo". Eram finas, flexíveis e - depois de tiradas as folhas - ficavam saliências que produziam hematomas ardidos nas pernas.

Numa enorme laranjeira, alta, frondosa, com dois galhos caprichosamente paralelos eu fiz a minha "casinha do Tarzã". Com tábuas pregadas nos galhos, tinha uma área para que duas pessoas pudessem sentar-se. E lá ficava conversando com meus amigos. Guardava algumas revistas de mulheres nuas, raridade naqueles tempos ingênuos. Trocava confidências. Ficava longe das amigas da minha irmã que costumavam bisbilhotar. Lá ficava deitado olhando nesgas de céu que apareciam por entre os galhos e folhas da laranjeira. E quando a árvore dava frutos, comia lá em cima mesmo as doces laranjas.

Passaram-se os anos e vi meus seis netos brincando com geringonças eletrônicas. Vendo filmes e desenhos animados com monstros, brigas, assassinatos, pauladas, facadas, guerras. Eles nem sabem o que era ver um "filme de mocinho" ou de outros heróis, como Roy Rogers, Hopalong Cassidy, os irmãos Jesse James, Durango Kid, Capitão Marvel, Batman e Robim, o Homem Submarino, o mágico Mandrake, Tarzan e Jane.

Todos meus heróis já morreram.

E eu nem me dei conta disso.