quinta-feira, 31 de março de 2016

COLUNISTAS

Respingos

James Pizarro
por James Pizarro em 31/03/2016
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O SILÊNCIO - Deixe de pensar só em dinheiro, poupança, comprar coisas, juntar apartamentos/terrenos/móveis. Numa uma madrugada qualquer você despertará horrorizado, suando, com uma fisgada dolorosa no peito. Sensação de uma jamanta passando em seu tórax.
Verá, tarde demais, que tudo que comprou às custas de botar a saúde fora de nada lhe adiantará. Se tiver condução rápida ao hospital ainda terá uma nesga de chance de chegar à UTI. Onde verá apenas olhos e óculos de aros grossos das pessoas de branco que lhe olharão de cima, com a onipotência dos saudáveis. E ouvirá o ruído do eletrocardiógrafo e seu ziguezague coleante qual cascavel elétrica. Sedado, ouvirá sussurros de vozes incompreensíveis. E gemidos. Até o dia em que reinará o silêncio absoluto.
A DISPUTA - As relações humanas são baseadas na disputa. Mesmo na relação de afeto na família, um irmão disputa com o outro a atenção dos pais. Há todo um jogo, baseado no ciúme. Mesmo no amor há o encontro de dois desejos. Lembro que Lacan escreveu que “não há amor tal qual o concebemos”. O que há são dois tipos de amores. A mulher ama o homem de maneira A. E o homem ama a mulher de modo B. São namorados, noivos, casados...mas se amam de modos diferentes. Daí surgirem os ciúmes, as desconfianças, a disputa. Quem já não ouviu: “Eu te amo muito mais do que tu a mim”? Por causa da disputa eterna em tudo o convívio social tem de ser regrado. Vide a hierarquia e a disciplina nos exércitos, igrejas, tribunais, escolas, universidades. As instituições são baseadas em normas, regras, obediências. Caso contrário, vira barbárie, surge a selvageria. Basta olhar as ruas do nosso país e a impunidade vigente.
A VAIDADE - Tempo perdido em demasia em frente ao espelho. Perseguir a fama. Idolatrar o sucesso. Orgasmo com excesso de bens materiais. Sentimento de superioridade em relação aos outros. Exibicionismo com carros, joias, roupas. Prepotência. Onipotência. Desdém. Quantas pessoas a gente conhece que cultuam esses “atributos”? Recomendo a eles uma meditação profunda sobre um pensamento comum no meio dos romanos séculos antes de Cristo : “Homo humus; fama fumus; finis cinis.” Tradução tupiniquim :”O homem é barro; a glória é fumo: o fim é cinza.”
A CORRUPÇÃO - A respeito dos acontecimentos brasileiros dos últimos meses e o que vejo e ouço nos noticiários da mídia todo santo dia, me brotam do fundo do túnel da memória duas frases que guardei da juventude. A primeira é de autoria da francesa Simone de Beauvoir : “O mais escandaloso dos escândalos é que nos habituamos a eles”. E a segunda frase é um provérbio italiano de domínio popular : “Dinheiro público é como água benta: Todos põem a mão”. Lamentavelmente, as duas se aplicam ao Brasil atual.
James Pizarro

quinta-feira, 24 de março de 2016

COLUNISTAS

Pingo de mel

James Pizarro
por James Pizarro em 24/03/2016
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De apelido “Vica”, o Dr. Miguel Sevi Viero foi professor de Química do Maneco e também prefeito de Santa Maria. Homem de quase dois metros de altura, quase careca, gritão, barulhento, brincalhão, extrovertido, não havia possibilidade de silêncio ou tristeza por onde estivesse ou andasse. Morava à Rua Dr. Bozano, quase na Praça Saturnino de Brito, num prédio de dois andares, encimado pelo único “relógio do sol” que a cidade tinha.
Durante anos exerceu as funções de médico proctologista do instituto de previdência dos ferroviários, já que antes da unificação da Previdência Social no país (criação do INPS, depois INSS), cada categoria de trabalhador tinha seu próprio instituto.
Juntamente com sua esposa, foi proprietário de um restaurante chamado “Pingo de Mel”, que funcionou à Rua Venâncio Aires, em frente ao atual Restaurante Bovinus e Associação Rural. O restaurante servia saborosas iguarias, sob encomenda, como “pato laqueado”, além dos primorosos doces feitos pela Dona Eugênia, esposa de “Vica”.
O restaurante “Pingo de Mel” era avançado demais para o público santa-mariense. Pois a população sempre teve o duvidoso gosto por restaurantes enormes, com dezenas e dezenas de mesas, onde as pessoas podem ir para ser vistas. Locais onde a gente nem pode conversar direito, tal o barulho. E todos podem cuidar da vida de todo mundo, desde o modo de vestir, passando pelo prato pedido até à observação do companheiro da refeição.
O “Pingo de Mel” tinha menos de 10 mesas, era aconchegante, atendido pelos proprietários, típico local para se namorar ou comemorar uma data mais íntima. Local para ser frequentado por civilizados, não movidos a suco gástrico, saliva e peristaltismo intestinal. Por gente que quer algo mais...música suave, enlevo, paz e um certo bolor de Primeiro Mundo. Por isso, infelizmente, tal restaurante teve vida efêmera.
James Pizarro

COLUNISTAS

A gare da Viação Férrea

James Pizarro
por James Pizarro em 17/03/2016
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A gare da estação da Viação Férrea do RS, Santa Maria, foi local frequentado pela elite da sociedade santa-mariense, por mais incrível que isso possa parecer hoje aos mais moços, testemunhas da decadência da ferrovia.
Ali estavam os escritórios das chefias. A sala do diretor da estação (chamado de “Agente”). O amplo e completo “stand” de revistas (a chamada “Revistaria da Estação”). O higiênico e confortável restaurante, onde serviam-se desde refeições “à francesa” até rápidos lanches. A fantástica sorveteria com inimagináveis guloseimas servidas em finas taças de prata. O competente serviço de carregadores de bagagens (“mensageria”), com os servidores vestidos de azul, com colarinho e gravata, portando carrinhos de ferro para o transporte das malas. O serviço de autofalantes com as publicidades (chamadas “reclames”) ditas por um locutor cego, que tinha a fantástica capacidade de memorizar tudo. Entre um “reclame” e outro, valsas de Strauss e sambas de Ary Barroso.
Para ter acesso à gare da Viação Férrea, era necessário comprar ingresso. Vendido sob a forma de um papelote duro, numerado, metade branco, metade verde. Que era picotado pelo porteiro engravatado na roleta numerada que dava acesso ao interior das instalações. Rapazes e moças, acompanhados de seus pais, costumavam formar fervilhante torvelinho de gente nas horas de chegada e partida dos trens de passageiro. Trens que atendiam por nomes especiais: “Noturno”, “Fronteira”, “Serra”, “Porto Alegre”. A gente ficava abanando para as pessoas que partiam naquela “composição” formada por dezenas e dezenas de carros. Puxada por barulhenta e folclórica máquina a vapor, carinhosamente chamada de “Maria Fumaça”. Anos depois substituídas pelas máquinas movidas a diesel e pelos trens Húngaro, Pampeiro e Minuano, que tinham até ar condicionado e lanche gratuito.
Todo fim de ano lá ia eu com minha família - pelo trem da “Serra” - curtir férias escolares na cidade de Getúlio Vargas, situada depois de Carazinho e antes de Marcelino Ramos, na fronteira com Santa Catarina. Íamos no vagão-leito, composto de duas camas beliche, o máximo em conforto para a época.
Existiam carros de “Primeira Classe”, com poltronas estofadas. E carros de “Segunda Classe”, com bancos de madeira, ocupados pelas pessoas mais pobres, gaúchos de bota e bombacha que levavam desde galinhas enfarofadas até gaiolas com seus passarinhos de estimação. Havia o “Carro-Restaurante”, onde os mais abastados faziam suas refeições, servidas por garçons de gravata borboleta. Os dois últimos carros dessas composições eram para uso dos funcionários que estavam trabalhando no trem e para uso dos Correios e Telégrafos, já que os malotes de cartas e encomendas eram predominantemente transportados pela Viação Férrea. Lamentavelmente, graças à burrice das autoridades e dos políticos brasileiros, isso tudo morreu.
James Pizarro


COLUNISTAS

O aneurisma


James Pizarro

por James Pizarro em 10/03/2016
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Corria o ano de 2004. Aos 84 anos, o cardiologista indicou a meu pai uma cirurgia urgente para correção de um defeito. Lembro que ele não queria fazer. Eu fui procurar o médico, meu ex-aluno no cursinho pré-vestibular décadas atrás. Ele me disse que, sem a cirurgia, meu pai morreria repentinamente e que tinha, no máximo, seis meses de vida. O médico me disse que esse diagnóstico não era só dele mas de toda a equipe que acompanhava o caso de meu pai.
Certa madrugada, meu pai me chamou prá tomar chimarrão com ele às 5 da manhã. E pela primeira vez me pediu um conselho :
- O que eu devo fazer ?
Eu disse a ele :
- Tu tens de te operar, o cirurgião é excelente, é decisão de toda a equipe e tu vais viver muitos e muitos anos.
Ele me disse:
- Vou me operar então...tomara que dê tudo certo porque eu quero ver a formatura dos meus bisnetos.
A operação em si foi um sucesso. Mas na sala de recuperação rompeu-se a aorta abdominal, que possuía um aneurisma, coisa que os médicos ignoravam. E ele morreu. Meu avô também morreu assim : ruptura da aorta abdominal.
Fui ao necrotério. Vi meu pai nu, morto. Com cortes e suturas, porque precisaram fazer procedimentos no cadáver, devido à imensa hemorragia interna.
Começaram a chegar os amigos. Lembro que o primeiro foi o “Pinha” (Raphael Theodorico), falecido há poucos meses.Os clubes da Terceira Idade. O pessoal da funerária. Minhas filhas, uma de Itajubá, MG e outra de Panambi, RS, foram avisadas. Meu filho, que mora em Santa Maria, foi nosso companheiro e presença sempre. Minha irmã.
Ele foi velado na sala de sessões da Câmara de Vereadores, pois tinha sido vereador na legislatura de 1958.
Eu aguentei tudo dentro dos limites do possível. Mas quando minha mulher me avisou que meus alunos estavam chegando eu desabei. Olhei e vi aquelas turmas todas, aquela gurizada toda de 15 e 16 anos, dos quais eu era professor orientador. Aqueles olhos assustados com o choro do seu professor. Eu desabei literalmente. A Carolzinha me disse : “Nós pedimos o cancelamento das aulas pra ficar contigo, Pizarro...como tu ensinaste prá gente, que na hora da dor a gente fica junto”.
Dia desses, pensando na fatalidade do DNA, me surpreendi fazendo um ultrassom abdominal para pesquisa de defeitos na aorta abdominal. Ela está íntegra. Sem anomalias. Por enquanto.

James Pizarro

quinta-feira, 3 de março de 2016

O ZOO - James Pizarro (3/3/2016)


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O Zoo


James Pizarro

por James Pizarro em 03/03/2016
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Pois minha amizade com o Pedro Mauá Duarte Pinto Freire Jr - conhecido tão somente por Freire Jr - durou coisa de meio século. Desde os tempos gloriosos do mais famoso bar/restaurante que teve Santa Maria nas décadas de 60/70: o saudoso Moby Dick! Depois das minhas aulas na UFSM e cursinho pré-vestibular (e ele,depois do trabalho na Câmara de Vereadores ou dos ensaios no teatro), nos reuníamos todas as noites nesse bar/restaurante para comer o famoso bife à milanesa do Claúdio e tomar chope. E ali ficávamos a discutir poesia, teatro, declamar, recitar, discutir política.
Foi ali que, sob a liderança do Freire, se formou o GVC-Grupo de Vanguarda Cultural, formado pelo Tarso Genro (ex-Ministro da Justiça e ex-governador, hoje morando no RJ), João Nascimento (funcionário da Câmara de Vereadores, ex-vereador e hoje advogado em Porto Alegre), Tasso Trevisan (médico psiquiatra, recentemente falecido, filho do pintor Eduardo Trevisan), Dartagnan Agostini (engenheiro civil em Santa Maria), James Pizarro (professor de cursinho,estudante de Agronomia e hoje professor universitário aposentado), Eliezer Pacheco (historiador e político estudantil), Zuil Pujol (hoje médico cardiologista em Livramento, RS), Luiz Entges (estudante de Direito, cujo destino perdi de vista), Carlos Alberto Robinson ( estudante de Direito, hoje advogado em Porto Alegre), Adalberto Villa Real (estudante de Direito, hoje promotor público aposentado em Florianópolis), Antoninho Sineide Costa (já falecido, por várias legislaturas vereador em Santa Maria), etc...
Em 2006, eu e o Freire planejamos ensaiar e apresentar uma peça de teatro famosa, chamada “O Zoológico”. Apenas dois atores, que fazem o papel de dois homossexuais. A peça tem um ato só, de 70 minutos, com os dois sentados num banco de praça, à noite, conversando. Peça de autoria do Edward Albee. Chamada abreviadamente de “O Zoo”. Chegamos a ler juntos o texto várias vezes. Freire, às gargalhadas, me dizia: “Vai ser o maior sucesso teatral de S. Maria...e também um escândalo, eu uma bicha velha e histérica e tu fazendo o papel duma bicha gorda e escandalosa !”. Infelizmente, Freire faleceu em 2007, vítima de complicações pulmonares advindas do tabagismo. Nas vésperas de levar à cena sua peça de número 100, deixou a cidade culturalmente mais pobre. E os amigos íntimos aflitos. Saudosos. E melancólicos.
Assim é que - até hoje - guardo na alma este desejo não realizado. O de ser ator amador. Junto com meu querido amigo Freite Junior. Em pleno Teatro 13 de maio. Certamente para uma plateia escandalizada. Ou não. Jamais saberei se teria dado certo...

James Pizarro