terça-feira, 24 de março de 2020

QUARENTENA E QUARESMA - JAMES PIZARRO (DIÁRIO de S. MARIA, pág. 4, edição de 24.03.2020)


Se bem me lembro das aulas de catecismo, depois alicerçadas na preparação ao batismo e confirmação no crisma, sedimentadas em 16 disciplinas  que tive a oportunidade fantástica de assistir como aluno especial no Curso de Teologia do Colégio Máximo Palotino, a Quaresma é um tempo litúrgico que começa na Quarta-feira de Cinzas e termina no Domingo de Ramos, totalizando 40 dias.

Desde pequeninos nos foi ensinado que esse período deveria ser de reflexão profunda, de introjeção espiritual, de arrependimento dos erros, da busca do perdão, do convívio fraterno. Lembro  que a saudosa e sempre amada vó Olina, que morava ao lado da minha casa quando criança, depois da janta me convidava para rezar o terço na frente do seu oratório, repleto de imagens com seus santos de preferência. Nem sempre ía  de boa vontade, mas jamais ousei magoa-la.

Mas o que realmente eu queria dizer é que, ao longo dos anos, perdeu-se no seio da sociedade – pelo menos na maioria das pessoas com as quais convivo – o sentido real da Quaresma. A prática do jejum e da abstinência, levadas a sério  na prática a partir do século IV pela Igreja, foram abandonadas praticamente. O propósito firme de abandonar o ódio, a inveja, o ciúme, o rancor, o exercício público do perdão, o despojamento e a opção pelos pobres, etc...passaram a ser vistos como atitudes piegas ou bizarras.  Às vezes, dignas de chacotas e piadas.

Mas eis que surge o Coronavírus-19 ! E com ele, a imposição da Quarentena ! Em plena Quaresma !

Que ironia ! Que mistério !

Um microrganismo desprezível faz a humanidade toda se curvar, ficar de joelhos, deixar um pouco da sua onipotência e se recolher à força para a intimidade das suas casas para tentar não morrer. Senhores poderosos de todas as nações com olhos amedrontados, boca e nariz cobertos por máscaras, dão entrevistas na TV.  Artistas famosos cancelam seus shows. Estádios de todos os esportes estão vazios. Olimpíadas de Tóquio ameaçadas de cancelamento. Bares, boates, restaurantes, clubes, igrejas e shoppings fechados.

Polícia tem de percorrer balneários, praias, ruas e avenidas e retirar transeuntes que teimam em desobedecer as ordens das autoridades da saúde pública. Escolas de todos os níveis e universidades cancelaram suas aulas. Fronteiras de países são fechadas. Rodoviárias, aeroportos, ônibus municipais e estaduais paralisados. Bancos e lotéricas prejudicadas.

Hospitais, médicos, paramédicos e autoridades ligadas à área da saúde pública preparando estratégias para os infectados que virão e terão de ser atendidos. Que Deus abençoe todo esse imenso exército de avental branco que estará expondo sua própria vida para salvar a vida alheia. Particularmente, tenho imenso orgulho de um neto que está no quinto ano de Medicina da UFSM e, mesmo  sem aulas, está desde o primeiro momento trabalhando de voluntário no hospital.

Nosso  jornal ao longo dos últimos dias, mercê do trabalho duro de toda a equipe, está oferecendo à população santa-mariense uma cobertura completa sobre a epidemia em nossa cidade e região, além dos vídeos veiculados pelas redes sociais.

Poderia fazer colocações críticas, políticas, partidárias, descendo a lenha ou elogiando este ou aquele, ao sabor da minha preferência pessoal. Não é do meu feitio e nem do meu estilo nesta minha fase de vida. A meu juízo, o país precisa neste momento, de um cristão espírito de união. Aquele espírito inicial que a Quaresma deve ter. Deixar limpo nosso coração, livre de todos os ódios. Para que Deus possa nele agir, operar,  levar a tranquilidade.

A todos vocês que me dão a honra de sua leitura quinzenalmente eu desejo – com todas as forças da minha alma – que Deus lhes proteja e lhes dê muita saúde nestes dias difíceis ! Se não for pedir demais, gostaria que vocês – em suas orações – pedissem saúde para meus seis amados netos ! Obrigado !

segunda-feira, 9 de março de 2020

OS LOTÓFAGOS - JAMES PIZARRO (DIÁRIO, pág. 4, edição de 10.3.2020)


Existem palavras nunca usadas. Ou  poucos conhecidas. Ou totalmente ignoradas.

A palavra LOTÓFAGO é uma delas. Ainda mais porque está relacionada à Mitologia Grega, tema que as novas gerações ignoram ou nunca dela tomaram conhecimento, infelizmente.

Os LOTÓFAGOS constituíam um povo, habitante de uma ilha da África Setentrional, que se alimentava de flor de lótus. Estas flores tinham um princípio ativo de efeito sonífero, narcotizante, produtor de um manso sono aos habitantes da referida ilha.

Na celebérrima ODISSÉIA, de Homero, Ulisses aporta a essa ilha, desembarca e come lótus. Ele e toda a tripulação, como consequência da ingestão do lótus, fica acometida de permanente amnésia.  Todos esquecem totalmente seu passado. E  ficam com desejo de renascer.

Ah...se existisse lótus em quantidade suficiente em nosso meio, multidões fariam uso da flor de lótus como alimento. Esqueceriam os amores frustrados. Os atos inconsequentes. As traições e ofensas. As palavras ditas em momentos impensados. Os rancores. As invejas. As ambições desmedidas.

Todos teriam - zerada a memória - chance de renascer para a felicidade.

Fiquei a cogitar sobre este assunto porque este é um ano eleitoral. E muito em breve nossos lares serão invadidos por promessas mirabolantes através da mídia. Mesmo que a gente não aceite os santinhos dos cabos eleitorais nas ruas, mesmo que desliguemos o rádio e a televisão, o som dos autofalantes entrará por nossas janelas com palavras melífluas. Promessas inebriantes. Anunciando o paraíso.

Eu tenho nos meus arquivos as centenas de recortes de entrevistas, panfletos, santinhos, plataformas e assemelhados das últimas eleições  municipais e estaduais. Até lhes afirmo que memorizei quase todas de quase todos os candidatos. Vou lembrar algumas...

“Meu primeiro ato de governo será acabar com as filas nas unidades de saúde com a contratação IMEDIATA de 50 médicos, 50 enfermeiros e 50  técnicos de  enfermagem.”

“Abertura IMEDIATA do Hospital Regional, mutirão fila zero, programa Mãe santa-mariense de apoio pré-natal e às crianças recém—nascidas.”

“Cercamento eletrônico da cidade para controlar o fluxo de veículos que entram e saem no município.”

Mais inúmeras promessas sobre segurança, guarda municipal, construção de creches, núcleo de atendimento ao professor, recuperação das escolas, etc...

Quanto à remodelação e obras do calçadão, por exemplo, nosso jornal anunciou com destaque o início das obras para 8 de janeiro, portanto, há 60 dias. Um excelente período para obras porque não choveu e a cidade estava vazia. Foram retiradas as mudinhas de flores e as grades de ferro nesse período. Agora começaram as aulas. O que dizem os proprietários das lojas comerciais ? Os usuários do calçadão ? Os vereadores ?

Será que a população da cidade anda ingerindo em sua água extrato de flor de lótus ?

E ficou esquecida, zonza, abobalhada e...”feliz” ?