segunda-feira, 26 de agosto de 2019

SANTA DERCY, ROGAI POR NÓS ! - JAMES PIZARRO (DIÁRIO de SM, pág.4, 27.08.2019)



Fugitiva de casa ainda adolescente.
Artista circense. Humorista. Atriz. Comediante. Teatro rebolado.
A única mulher brasileira que se assumiu tal qual era.
Sem fazer uma única concessão comportamental ou de linguagem.
Enfrentou a família, a escola, os patrões, os inimigos, os pretensos amigos.
Jamais aceitou ser sustentada por alguém.
Lutou pela sua independência.
Pagou caro por isso.
Berrando e reagindo às acusações de meretriz, desmiolada, grosseira, desbocada.
Linda quando moça. Vaidosa depois de velha.
Foi tema-enredo de  escola de samba.
E em plena Sapucaí, durante o desfile, tirou a blusa e mostrou os seios centenários para o planeta em rede de tv mundial.
Foi aplaudida com delírio. E riu com deboche dos moralistas de plantão.
Jamais se deixou fotografar sem a peruca.
Implorava trabalho. Pois detestava estar desempregada.
Não acumulava tensões. Dizia o que queria.
Quando irritada ou sentindo-se humilhada, chamava o interlocutor de FDP.
E quando lhe criticavam, sempre afirmava estar c... e andando para crítica.
Viveu 101 anos por ser justamente assim. Sem mordaças. Sem falso puritanismo.
Imaginem se Dercy ainda fosse viva !
O que estaria falando da demora das reformas políticas ?
O que estaria dizendo sobre as principais figuras políticas nacionais ?
Qual seria sua opinião sobre os escândalos diários que pipocam na mídia ?
E sobre os funcionários federais que não recebem aumento há três anos ?
E os funcionários estaduais que recebem parceladamente o salário mensal ?
Dercy, mulher sem censura.
Dercy, mulher sem hipocrisia.
Já entrou no céu mandando São Pedro à m...
Que saudade às vezes sinto dessa mulher quando vejo políticos mentindo na TV com a maior cara de pau.
Santa Dercy !
Olhai por nós !
Rogai por nós !

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

UMA SAUDADE QUE NÃO PASSA NUNCA - JAMES PIZARRO (Diário de SM, pág. 4, edição de 13.08.2019)


Meu pai, Alfeu Pizarro, foi um dos primeiros enfermeiros de Santa Maria. Naquela época não existiam os cursos de enfermagem. E nem de técnicos em enfermagem. Eram ministrados cursos rápidos, de algumas semanas. Fetos estágios em hospitais de Porto Alegre. E eram nomeados pelo presidente Getulio Vargas com uma portaria declarando-os "práticos-licenciados". Estou falando dos anos 40 e anos 50. Os dois primeiros enfermeiros dos quais tenho notícia em Santa Maria foram meu pai e o seu companheiro Olmiro Vargas, de apelido "Varguinhas".

Meu pai trabalhou no Centro de Saúde 7, que funcionava à rua do Acampamento, no prédio onde hoje está a Sociedade Italiana. Ali ele foi responsável, por mais de 40 anos, pela "Sala de Vacinação". Lembro de alguns colegas dele, embora eu fosse um garoto : Julinha Nunes da Silva (servente), Tolentino (portaria), Vicente de Oliveira (de apelido "Vicentão", do qual eu ganhei meu primeiro livro de presente, "As Aventuras de Tibicuera", de Érico Veríssimo), Dona Maria (do Raio-X), Dr. Massot, Dr. Crossetti e Dr. Izidoro Lima Garcia (pai), médicos que chefiaram aquela repartição e tantos outros.

Além de trabalhar no Centro de Saúde, meu pai trabalhou no SAMDU-Serviço de Assistência Médica Domiciliar e de Urgência, uma criação do presidente João Goulart, uma das coisas mais sérias que já existiu no Brasil em matéria de assistência pública. Meu pai participou da equipe do SAMDU desde a sua inauguração, tendo por chefe o médico militar, baiano, Dr. Raymundo Braga.
Depois dele, o chefe do Posto 4 do SAMDU em S. Maria, foi chefiado pelo Dr. Clândio Marques da Rocha, onde eu fui seu auxiliar administrativo, depois de ter prestado concurso público entre mais de 150 candidatos e ter tirado primeiro lugar. Ali convivi com cerca de 100 funcionários (médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, motoristas, porteiros, atendentes, serventes, burocratas). Além do Dr. Clândio, pelo qual tenho imenso carinho (fez um horário especial – permitido por lei - para que eu pudesse fazer meu curso de Agronomia na UFSM), lembro de quase todos : Dr. Ronald Bossemeyer, Dr. Eugênio Streliaev, Dr. Agostinho, Dr. Meyer, Dr. Oz, Dr. Mazza, etc...
De sorte que meu pai trabalhava durante o turno diurno (no Centro de Saúde) e 15 vezes por mês também acumulava o trabalho do período noturno (no SAMDU). Eu o via, portanto, muito pouco. Além disso, tinha os clientes particulares que o contratavam para que ele desse injeções a domicílio.
Era uma vida dura. Criou a mim e minha irmã de forma digna. Conseguiu formar os dois. E levou quase 8 anos para construir uma casa própria, de alvenaria.
Uma coisa que meus amigos sempre invejaram na minha vida estudantil era o fato de meu pai, embora de difícil situação financeira, ter aberto uma conta com crédito ilimitado na Livraria do Globo, cujo gerente era o seu Valdemar Cavalheiro. Graças a isso eu pude ter, como estudante universitário,  uma biblioteca com mais de 600 volumes. Graças ao sacrifício do meu pai. Lembro bem de que eu já tinha casado quando meu pai conseguiu quitar toda a conta dos meus livros.
Aos 84 anos fez uma cirurgia cardíaca para correção duma anomalia nas válvulas do coração. Operou-se numa quarta-feira. Ao entardecer do domingo (9 de maio de 2004) , quatro dias depois, faleceu com ruptura de aneurisma da aorta abdominal. Foi velado na sala de sessões da Câmara de Vereadores, ex-vereador e vereador emérito da cidade que era. Sua morte teve ampla divulgação pela imprensa, pois liderava o movimento da Terceira Idade e era pessoa com livre trânsito na mídia. Presidiu o Conselho Municipal de Idosos, era presidente do Grupo Mexe Coração e lutou pela implantação da Delegacia do Idoso, pioneira no RS. Seu enterro teve enorme acompanhamento de idosos, políticos, sacerdotes, amigos, vizinhos, público em geral. Foi um grande homem. E um pai fora-de-série.

Cada domingo dedicado aos pais sinto um aperto no peito.

E uma saudade que não passa nunca.