segunda-feira, 29 de julho de 2019

POR CAUSA DAQUELAS PALAVRAS - JAMES PIZARRO (30.07.2019, pág.4 do DIÁRIO de Santa Maria)

Além de ter dado aulas na UFSM por várias décadas, ministrei aulas de Biologia nos cursinhos pré-vestibulares da cidade durante quase meio século. Foi a época áurea dos cursinhos preparatórios. Santa Maria tinha quase uma dezena deles, com professores da melhor qualidade, o que servia de pólo de atração de milhares de alunos do sul do país que para cá acorriam na esperança de cursar a UFSM, à época a única universidade existente na cidade.
O professor de cursinho - nas matérias mais procurados – tinha cerca de mil alunos no primeiro semestre, mil alunos no segundo semestre e mil alunos no intensivo de dezembro. Cerca de três mil alunos novos a cada ano. No meu caso, cerca de 130.000 alunos que, somados aos alunos dos quatro cursos que dei aula na UFSM se aproximam ao incrível número de 150.000 alunos, o equivalente a uma cidade de porte médio ! Até bem pouco tempo eu tinha as xerocópias dos cadernos de chamada e as listas dos nomes dos cursinhos para provar. Mas como eram caixas e caixas de papel, minha mulher promoveu uma limpeza em meu escritório...
Fiz centenas de amizades duradouras desse período. Fui padrinho de casamento de dezenas deles. Homenageado de turmas. Confidente e conselheiro de incontáveis. Mais de mil tenho adicionados no meu facebook, muitos já aposentados. Histórias incríveis teria para contar. Umas engraçadas. Outras trágicas. Mas uma em especial lembro sempre com emoção e vou rememorar e partilhar com vocês.
Dava eu uma aula sobre noções de introdução à embriologia para alunos do cursinho. Falava sobre a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, formação do zigoto, mórula, blástula, gástrula, folhetos embrionários e discorria de onde se originavam os sistemas nervoso, digestivo, etc...E dizia a eles que aquela estrutura já era um ser vivo e como tal tinha de ser respeitada. Inevitável que me emocionava ao falar do feto. E discorria sobre métodos contraceptivos, todos eles. E falava sobre planejamento familiar e controle de natalidade. Isso tudo – veja bem - há meio século !
Alguns meses depois, no ano seguinte, fui procurado no edifício Itaipu, onde eu morava no sexto andar. O zelador me avisou que uma mocinha vestida de branco queria me ver e perguntou se ela podia subir. Abri a porta e entrou aquela mocinha magra, vestida de branco, cabelos cor-de-fogo, sardenta, empurrando um carrinho de nenê. Sentou-se e com voz meiga e delicada, disse :
- Fui sua aluna no curso intensivo no cursinho e assisti sua aula sobre Embriologia. Eu estava grávida e meu namorado já tinha me mandado dinheiro da cidade onde moramos (uma cidade do norte do RS) para que eu fizesse o aborto, marcado para dois dias depois. Mas daí o senhor disse aquela frase, aquelas palavras, e eu resolvi enfrentar a familia e ganhar meu bebê. Meu namorado me abandonou. Aguentei a barra sozinha. Passei no vestibular de Farmácia. E vim trazer meu bebê para o senhor conhecer. E trazer esta lembrança para o senhor.
E me estendeu um envelope. Eu, curioso, abri o envelope rapidamente. Era o xerox da certidão de nascimento da criança. Abri li. E comecei a chorar.
O menino se chamava James.

segunda-feira, 15 de julho de 2019

À BRIGADA MILITAR, COM CARINHO E COM AFETO - James Pizarro (DIÁRIO de S. MARIA, pág. 4 de 16.07.2019)


Quando terminei o então chamado Curso Ginasial no MANECO, no final da década de 50, sete colegas meus de turma foram para Porto Alegre prestar exames no CFO da Brigada Militar, pois naquela época cursavam o então Científico na própria academia de BM junto com todas as demais disciplinas militares. Assim é que, através de cartas, relatos orais quando das férias, visitas minhas aos antigos colegas no Curso de Formação de Oficiais (CFO) em Porto Alegre, tornei-me um grande admirador da Brigada Militar. Poderia citar o nome de todos eles, coronéis aposentados, amigos que somos até hoje.

Vereador na legislatura de 1988/1991 sempre usei a tribuna para lembrar datas especiais à história da briosa Brigada Militar e, muito principalmente, para defender brigadianos quando julguei – por razões que não quero lembrar para não ferir suscetibilidades – injustamente atacados e até caluniados. Sempre fui sensível ao tipo de trabalho viril e corajoso de combate ao crime desenvolvido pela corporação (entre outras atividades) e a falta de quem lhes defendesse em situações de crise.

Durante quase duas décadas atuei como voluntário da PACTO-Pastoral de Auxílio ao Toxicômano e FSJ-Fazenda do Senhor Jesus e por muitas vezes, familiares de dependentes químicos tiveram de se socorrer dos préstimos da Brigada Militar para poder conter um dependente para evitar agressões físicas aos parentes idosos, demolição dos móveis da casa e até mesmo situações que beiravam risco de vida de parentes ou do próprio usuário. Nestas horas dramáticas, quando chamados, a BM com toda cautela e preparo soube tratar o usuário realmente como um doente, sem agressões, e ajudar a família a interna-lo. Este trabalho raramente chega ao conhecimento da comunidade.

Durante o governo Alceu Collares, a pedido do governador eu fui cedido com ônus total para a UFSM para exercer o cargo de dirigente da FZB – Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul. Fui para Porto Alegre numa missão de sacrifício, pois “ônus total para a UFSM” significa que fui ganhando apenas meu salário de professor da UFSM, que me ofereceu apenas um apartamento no Hotel de Trânsito dos Oficiais da Brigada Militar, situado dentro do Clube Farrapos, ao lado do Jardim Botânico, onde ficava a administração da FZB-RS. Detalhe : eu pagava pelo apartamento do meu salário. Contei este detalhe apenas para relatar que neste período em que morei sozinho neste hotel tive a oportunidade de conhecer, conviver e me tornar amigo de quase todos os oficiais da Brigada Militar do RS. Por isso me sinto tão próximo a esta categoria.

Jamais escrevo sobre política, futebol e religião. Apesar de ancião, gozo de boa memória. !E por isso tenho feito memorialística no jornal, procurando registrar coisas da cidade, fazer justiça a certas pessoas, entidades e reviver episódios. Ou então, vez por outra, exercer o devaneio de um lirismo desenfreado quando a emoção toma conta de mim. Mas nos últimos dias, tenho ficado chocado com a sucessão de morte de homens da Brigada Militar.

Cheguei às lágrimas há poucos dias quando vi e ouvi na TV a notícia de um soldado da BM de apenas 26 anos que foi metralhado por bandidos. Toda semana escorre o sangue brigadiano pelas avenidas e ruas do solo gaúcho. E eles continuam a fazer seu trabalho com garra, determinação, coragem, destemor. Apesar do salário não condizente com o tipo de trabalho de tamanha periculosidade. Por isso resolvi sair dos meus temas prediletos e escrever hoje sobre a Brigada Militar. É preciso que alguém diga, fale, grite que vocês são importantes, sim ! Que vocês são heróis, sim ! Que vocês merecem o respeito de todos ! Infelizmente, não tenho poder algum para lhes recompensar, mas já ensinei meus descendentes a ter o maior respeito por vocês ! A Brigada Militar talvez seja a entidade mais gloriosa e séria do RS ! E como tal deve ser respeitada !

Que Deus proteja a vida de todos vocês !


terça-feira, 2 de julho de 2019

É ISTO A VIDA ? - JAMES PIZARRO (DIÁRIO. pág. 4, edição de 2.7.2019)


Ao  quase sonâmbulo que percorria a calçada úmida da rua do Acampamento ao anoitecer – quase um fantasma para o medo das famílias – eu perguntei :
é isto a Vida ?

No silêncio do mitório público da praça Saldanha Marinho naquela noite quente de dezembro eu  perguntei ao homem  fantasiado de Papai Noel que chorava convulsivamente :
é isto a Vida ?

Eu vi  a foto com a placa indicando o local onde havia caído a bomba e à avó do neto anômalo de Hiroshima eu  perguntei :
é isto a Vida ?

Em tempo de delação e tramóia, quando em reuniões   secretas se enchem malas de dinheiro podre e se traem amigos antigos eu fiquei a pensar :
é isto a Vida ?

Quando o orgasmo involuntário macula o lençol do adolescente inquieto e a pressurosa e moralista mãe lhe ameaça com o  pântano do inferno do alto da  treva de sua ignorância, eu indaguei :
É isto a Vida ?

Quando o passarinho exausto, depois  de um dia gasto à procura de alimento para os filhotes, pousou no galho da pitangueira e recebeu um tiro do humanoide boçal em férias, ficando com as vísceras à mostra, excêntrica mistura de chumbo e sangue, eu perguntei :
é isto a Vida ?

Quando o mesmo pai  que se desvaneceu na torturada carne da amante ficou pálido diante da gravidez da filha caçula e sua mão de falsa  e ultrapassada moral gritou um tapa na face de porcelana da futura mamãe, eu perguntei :
É isto a Vida ?

Quando a censura  - como soturno réquiem – quer se abater contra a exaustão da mente a criar, eu morro carbonizado de tédio, tensão, vômito e náusea porque eu sei, bem dentro do meu miocárdio de ancião eu sei,  que todo cérebro humano é uma vasta terra de  horizonte livre para plantar o que quiser. Por isso aprendi com os anos a ter misericórdia com o velho atleta de músculos flácidos. O irônico colega perturbado. Ao vulto do inimigo escondido  atrás da cortina. Aos inimigos navegando para a Morte. Ao que uiva de dor nas madrugadas nos sanatórios.

Mas diante de uma colméia, quando as abelhas – pacificamente – organizam tudo e ainda produzem mel, imediatamente lembrei de uma frase de Santo Agostinho : “A Paz está na Ordem”.  E me certifiquei :
É ISTO A VIDA !