terça-feira, 29 de novembro de 2022

A FOME DÓI, MACHUCA, DEPRIME, HUMILHA ! - James Pizarro (DIÁRIO = 29.11.2022)

Há cerca de uns 40 anos ou mais, fui a Porto Alegre numa cabine dupla de vagão-leito pelo chamado “trem noturno” em companhia de um colega professor da UFSM. Íamos para um congresso na capital representando os nossos departamentos. Rapidamente pegamos no sono com aquele “telec-telec”, ruído característico do rodado do trem sobre os trilhos e mais o embalo da composição. Horas depois, nos acordamos e o trem estava parado. Imaginamos que estivesse parado numa estação para pegar novos passageiros ou desembarcar outros. Mas a como a demora estava muito inquietante e se ouviam rumores nos corredores do vagão, abrimos a porta para saciar a curiosidade. E ficamos sabendo da terrível notícia através do “chefe de trem” : alguns quilômetros adiante um trem havia descarrilado e nós estávamos sem saber que horas chegar a Porto Alegre. Com o trem parado num lugar ermo, presos no meio do campo. Imediatamente, convidei meu companheiro de viagem para ir ao carro restaurante tomar café, comer um bife com dois ovos, tomar um suco para enfrentar a demora pois a equipe de socorro para desobstruir a composição acidentada teria de vir de Porto Alegre. Quando chegamos ao carro-restaurante constamos o óbvio: todos tiveram a mesma ideia. E não havia para nós nenhuma uma desgraçada fatia de pão torrado ou uma minguada bolacha-maria. Fomos chegar a Porto Alegre às 15 horas. Cansados. Suados. Quase desmaiando de fome. Senti na própria carne as sensações fisiológicas da fome. Passei a estudar e a ler tudo sobre a fome. Li toda a obra do Josué de Castro. Passei a falar em aula sobre a Geopolítica da Fome. A Geografia da Fome. A Biologia Social. A fome endêmica. Sobre as ideias de Malthus. Resolvi escrever a respeito desse episódio do trem ocorrido comigo porque fico com o coração partido quando vejo na TV as entrevistas das famílias que não têm o que comer. São milhões de brasileiros que, pelas mais diversas razões – pandemia, desem- prego, políticas sociais, desigualdade, etc – estão com suas geladeiras e armários vazios. Não tenho posses, nem cargo, nem poder. Tenho apenas sensibilidade. E já há bastante tempo eu e minha mulher temos uma pessoa carente que fica nas ruas centrais da cidade para a qual dedicamos atenção na doação de roupas, medicamentos, lanches, amizade, aconselhamento. E, de uns meses para cá, compramos embalagens descartáveis no supermercado, com divisórias, tipo “bandejão”, onde colocamos arroz, feijão, carne, salada, uma fruta – enfim – a mesma comida nossa – e diariamente depois do meio-dia ficamos ao lado do contêiner da Venâncio Aires, em frente à Galeria do Comércio, onde sempre tem alguém esperando aquela marmita. Uma só por dia, mas é o que podemos dar. Comida boa, higienizada, com uma garrafinha plástica de água. Por favor, não quero bancar o caridoso, o generoso, o salvador, o bonzinho. Minha mulher nem queria que eu escrevesse essa crônica. Mas eu me arrisco à crítica porque eu sou teimoso. Resolvi escrever para convocar o leitor a fazer algo semelhante. Porque em quase todas as casas sobra comida. Que acaba indo para o lixo. Enquanto existe gente passando fome. E fome dói. Machuca. Deprime. Deixa humilhado. Vamos ajudar ?

terça-feira, 1 de novembro de 2022

UM ANJO NA ROMARIA DE N. S. MEDIANEIRA - James Pizarro (DIÁRIO - 1.11.2022)

Compreendo quem tem insônia. Relevo quem tem sono agitado. Quem é atormentado por pesadelos. Tenho imensa piedade por amigos que têm distúrbios ligados ao sono. À dificuldade de dormir. Porque dos meus nove aos treze anos comi o pão que o diabo amassou por causa desses problemas. Porque sofria de insônia. Noites mal dormidas. Temores noturnos. Quando o sol ia se pondo e a noite se avizinhava, eu já sentia verdadeiro pavor. Meu pai me levou a médicos. Que me perguntavam coisas. Ouvi pediatras dizerem para meu pai que eram distúrbios da pré-adolescência. Que eu era sensível. Um deles disse que eu era "precoce". Lembro como se fosse hoje que eu fiquei estarrecido quando o médico disse isso. Porque eu não conhecia a palavra “precoce”. Na minha mente agitada imaginei que fosse um tumor, uma moléstia grave. Fiquei tranquilo quando, ao chegar em casa, consultei o único dicionário que existia na época, de autoria do Fernando Fernandes. E fiquei sabendo o que queria dizer "precoce". A Medicina não resolveu meus problemas noturnos. Eu continuava a ouvir ruídos. Ouvia gente cochichando. E via coisas. Principalmente fogueiras. Nunca vi pessoas e nem animais. Tudo que eu via era relacionado com fogo. Tinha vergonha e muito medo de contar para os outros. Principalmente sobre as fogueiras. Porque temia que me chamassem de louco. Como a Medicina não resolveu meu problema, a família apelou para outros recursos. Como fazem as famílias até hoje diante de casos insolúveis. Minha mãe me levou então a centros espíritas. A sessões de umbanda. Tomei passes de descarga. Sessões de descarrego. E toda uma terminologia que eu não entendia direito. Numa sessão dessas o médium receitou "Kola Fosfatada Soel", um medicamento feito de ervas muito popular naqueles tempos. E disse que eu teria de comer muita alface na janta. Também não adiantou nada. Até que minha amada e saudosa avó Olina me levou na romaria de Nossa Senhora Medianeira. A primeira romaria das dezenas que eu iria comparecer depois durante toda minha vida. Lembro que fui todo de branco, com enormes asas de anjo. Carregando uma vela de quase um metro de altura. Alguns amigos meus me esperaram na rua do Acampamento. E quando eu passei um deles gritou : “Tu é um demônio, tu não é anjo”. Porque a minha fama de autor de travessuras na Silva Jardim era grande. Minha avó me dizia durante todo o trajeto da romaria que eu rezasse com fé. Que aquelas vozes, aquelas visões de fogo iriam desaparecer. E que eu jamais iria sentir medo da noite. Quando a santinha passou eu olhei para ela e fiquei em estado de graça. Estava tomado pela fé da minha vó Olina. E ela me disse : “Olha para ela...pede agora, com todas as tuas forças.” E eu, chorando, pedi. Com todas as minhas forças. Como minha vó tinha mandado. As vozes realmente sumiram. Nunca mais tive medo. E quando me perguntavam se eu ainda enxergava fogueiras, labaredas, eu mentia. Porque eu continuei a ver aquele fogo durante algum tempo. Eu não queria decepcionar minha avó. E muito menos decepcionar a santinha. Até que um dia – como num passe de mágica - nunca mais enxerguei nada. E até hoje durmo que nem uma pedra.