quarta-feira, 25 de maio de 2016

A VISITA - James Pizarro -jornal A RAZÃO, edição de 25/5/2016

COLUNISTAS

A visita

James Pizarro
por James Pizarro em 25/05/2016
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O Prado Veppo era médico psiquiatra, poeta, intelectual, vasta cultura geral. Era meu padrinho de casamento e meu grande amigo. Companheiro de papos quase diários durante mais de 40 anos. Continuo a amizade ainda hoje com seu filho, de igual nome, talentoso e respeitado advogado na comarca local.
Eu vivia importunando ele pra conhecer o hospital psiquiátrico por dentro. Um dia, ele me disse : - É hoje a tua visita. Vens comigo. Não pergunta nada, apenas me acompanha e faz tuas observações.
E assim foi que pela primeira vez adentrei ao HP da UFSM. Fiquei sabendo da divisão em duas alas. A ala do Serdequim, onde ficam os dependentes químicos. E a ala Paulo Guedes, onde ficam internados os pacientes que tem transtornos psiquiátricos.
À medida que os guardas iam fechando as portas e a gente avançava nos corredores, confesso que fiquei preocupado e meio arrependido da minha curiosidade. Chegamos numa sala de estar, onde ficava uma espécie de balcão da Ala Paulo Guedes e o Veppo me disse: - Ficas aqui,enquanto eu atendo meus pacientes.
Fiquei olhando, através das janelas com grades, a paisagem do campus que ficava para o lado da Base Aérea. Era uma manhã nublada, cinzenta, melancólica. Estava perdido em minhas elocubrações, quando uma mão me toca o ombro direito e me faz levar um susto. Viro rapidamente e dou de cara com um velho professor meu, abraçado a um grosso livro de capa dura e vermelha, cujo autor li de relance: Eça de Queiroz.
Muito sizudo de olhar fixo,o velho professor me indagou : - O senhor também está internado por aqui?
Sem saber o que dizer e para ser solidário, meio puxando conversa, respondi candidamente : - Ainda não !
James Pizarro

quinta-feira, 19 de maio de 2016

AS HISTÓRIAS DO MODESTO - jornal A RAZÃO, 19/5/2016

COLUNISTAS

As histórias do Modesto

James Pizarro
por James Pizarro em 19/05/2016
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Lépido e fagueiro, com seus mais de 91 anos bem vividos, o meu querido amigo Modesto Dias da Rosa é um dos mais antigos e populares frequentadores da antiga “Primeira Quadra”, hoje Calçadão Salvador Isaia. Modesto é natural de Tupanciretã e veio para Santa Maria em 1935. Militar, ele saiu de Santa Maria de 1951 a 1953 para servir em Ijuí, logo retornando para nossa cidade, onde se reformou. Ele me contou muitas histórias de Santa Maria referentes ao período 1930/1940 (década anterior ao meu nascimento) e me falou sobre alguns tipos, como “Fanático”, “Fanha”, “Pipoqueiro” e “Tivico”.
Modesto é pai do meu amigo Norton da Rosa, talentoso locutor de Santa Maria, aposentado da Rádio Universidade, muito popular por ser apresentador de dezenas de festivais de música nativista gaúcha. Modesto foi dono da primeira casa de venda de cartões da “Loteria Esportiva” através de máquinas automáticas. A casa se localizava à Avenida Rio Branco, em frente ao atual Banco do Brasil. A casa se chamava “Zebrão”, se minha memória é boa.
Tenho conversado quase diariamente com esta figura muito querida e aprendido muito sobre o passado de Santa Maria, principalmente sobre tipos populares da cidade, alguns deles que marcaram época. Muitos casos pitorescos, alguns deles não publicáveis por razões óbvias. Rememorado figuras ilustres. Profissionais renomados que a cidade teve em vários tipos da atividade humana. Políticos notáveis do passado (outros nem tanto assim). Jornalistas que deixaram seu nome gravado na imprensa da cidade. Músicos que embalavam a noite e a boemia santa-marienses na zona do meretrício, então, localizada em pleno centro da cidade, onde hoje está a prefeitura municipal. Relembramos casas famosas, entre elas a Gruta Azul e o Balalaika.
Enfim, esse meu retorno a Santa Maria e a frequência diária ao calçadão, proporcionado pela vida de aposentado, tem me dado a oportunidade agradabilíssima do reencontro de queridos amigos. O que me permite o reencontro com o passado histórico da cidade e que precisa ser registrado para que não se perca. Esporadicamente farei este registro, pois ele toca meu coração de santa-mariense. E creio tocar o coração do leitor também.
James Pizarro

domingo, 15 de maio de 2016

O BODOQUE - James Pizarro, jornal A RAZÃO, 12/5/2016


COLUNISTAS

O bodoque

James Pizarro
por James Pizarro em 12/05/2016
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O mais antigo inimigo de incautos pássaros em nossa cidade, como de resto em todo território gaúcho, era o estilingue, o popular bodoque. No final dos anos 80 uma indústria de brinquedos de São Paulo lançou na praça uma forma moderna de estilingue, com uma peça de metal em forma de letra Y (no formato de uma forquilha) e com duas tiras de borracha de uso cirúrgico, substituindo as velhas tiras feitas de câmara de pneus de automóvel. Ainda havia um melhoramento técnico: uma empunhadura que se encaixava no antebraço do atirador.
Este tipo de artefato passou a ser vendido em Santa Maria, tendo eu recebido denúncia contra os Supermercados Trevisan (denúncia feita pela Associação Protetora dos Animais, através da ativa militante, professora Vera Resende). A rede Trevisan de supermercados era a mais importante da cidade e seu presidente, meu amigo João Trevisan, era inclusive o presidente da Associação de Supermercados do Rio Grande do Sul. Fui falar com ele pessoalmente (eu “estava” vereador à época) e fiz ver que, um daqueles bodoques modernos era capaz de atirar uma bola de gude (nossa tradicional “bolita”) a 80 km/hora, cerca de 25 metros por segundo, com um alcance efetivo de 30 metros. Disse que, a essa velocidade, abriria um buraco na cabeça de uma criança. Falei sobre o instinto de violência desenvolvido nas crianças, a mortandade de pássaros em nossa região, etc...
Imediatamente, na minha frente, João Trevisan chamou o gerente-geral da principal loja dos supermercados que dirigia (onde tempos depois se localizou o Supermercado Real) e ordenou que fosse retirada das prateleiras e gôndolas todos os bodoques, que fossem devolvidos à fábrica paulista e cancelados os novos pedidos. Depois disso, fiz uma série infindável de palestras nas escolas de ensino fundamental de nossa cidade, falando sobre a necessidade da gente ter mais pássaros, mais ninhos, mais vida. Foi um golpe de morte no uso de bodoques em nossa cidade, do qual me orgulho ter participado.
Nunca esqueci da sensibilidade demonstrada pelo amigo João Trevisan. Nem eu.
E nem os passarinhos.
James Pizarro

quinta-feira, 5 de maio de 2016

O RADINHO DE PILHA - James Pizarro, 5/5/2016, jornal A RAZÃO.

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O radinho de pilha

James Pizarro
por James Pizarro em 05/05/2016
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Quando assumiu o governo estadual gaúcho, o Dr. Leonel Brizola elaborou uma lei de incentivo através da qual os estudantes universitários dos cursos de Agronomia e Medicina Veterinária receberiam um salário-mínimo por mês durante todos os meses de aula do curso. Na prática significava que cada aluno receberia oito salários-mínimos por ano. Razão: aumentar o número desses profissionais no mercado gaúcho.
Fui aprovado no Curso de Agronomia da UFSM, Santa Maria, RS, em 1963 (segunda turma do curso) e passei a receber a bolsa do Dr. Brizola. Os alunos não recebiam a bolsa mensalmente. No início do ano a gente era chamado à Secretaria da Fazenda, em Porto Alegre, e recebia de uma só vez em dinheiro vivo os oito salários-mínimos.
No último ano (naquela época a Agronomia tinha apenas 4 anos) houve uma crise nas finanças do Estado e os alunos receberam a bolsa em forma de letras do tesouro, as chamadas “brizoletas”. As “brizoletas” possuíam respeitabilidade no mercado financeiro, tanto que a gente trocava as mesmas nos bancos pagando por isso um pequeno deságio.
No início de 1963, quando fui chamado a Porto Alegre para receber a bolsa no “Tesouro” (nome popular dado ao grande e amarelo prédio da Secretaria da Fazenda, perto da Praça da Alfândega). Todo dinheiro que recebi (oito salários) eu coloquei dentro da pasta da faculdade, uma vistosa bolsa de cor azul com inscrições em letras amarelas.
Atravessei a rua e fui concretizar um velho sonho de garoto pobre. Entrei nas quase solitárias instalações do porto do Guaiba, já decadente, onde encontrei um funcionário vestido apenas de calção. Eu tinha sido informado de que ali se vendiam muitas coisas de contrabando. Disse-lhe que queria comprar um radinho de pilha, que era a grande moda entre os jovens daquela época. Talvez eu fosse o único rapaz da minha turma que não possuísse um.
Ele me pediu para acompanhá-lo e entramos dentro de um daqueles enormes galpões. Havia uma roda de jogo de baralho com vários mal encarados jogando. Ele se dirigiu a um deles que se levantou e me disse : “São 5 pilas pelo rádio, ele tá meio velho mas funciona bem”. Na mais santa das ingenuidades de rapaz de interior eu abri a minha bolsa da faculdade e de lá tirei 5 “cruzeiros” (moeda da época). Ele fez uma cara de espanto ao ver dentro da minha pasta aquele monte de dinheiro. Agradeci e saí caminhando apressadamente, quase correndo. Até hoje não sei avaliar o perigo que corri e o porquê de não ter sido assaltado.
Acho que desde aquela época o meu anjo da guarda era muito forte. E muito provavelmente era um anjo que gostasse também de radinho de pilha. Ou naquela época o bandiditismo era menor. Saí de lá feliz da vida escutando a orquestra do Ray Connif, pela Rádio Guaiba.
James Pizarro

domingo, 1 de maio de 2016

O RETORNO - James Pizarro, 28/4/2016, jornal A RAZÃO

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O retorno

James Pizarro
por James Pizarro em 28/04/2016
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Milhares de passarinhos regressavam ao entardecer às árvores da praça Saldanha Marinho para o olhar carinhoso e terno dos aposentados. Na mesma praça as retretas no coreto onde semanalmente brilhava a Banda do Sétimo Regimento de Infantaria, na qual despontava o tenente “Farol” e suas acrobacias mágicas tocando pratos.
No magnífico Teatro 13 de Maio funcionava o Centro Cultural e também a Biblioteca Pública, onde discursou Érico Veríssimo. E milhares de estudantes consultavam gratuitamente livros didáticos, romances, poesias, histórias infantis e os jornais do dia. A Ligia, Freire Junior, Flávio Cassel, Correa de Barros, Ney Almeida, Caticha e demais funcionários diligentemente atendiam os frequentadores da biblioteca.
O “Calçadão” ainda se chamava “Primeira Quadra” e ali se reuniam dariamente Romeu Beltrão, Amaury Lenz, Edmundo Cardoso, Prado Veppo, Eduardo Trevisan, Alcides Roth, Lamartine Souza, Chico Ribeiro, Antônio Abelin, Abdo Mothcy, Quintino Oliveira, Pinha, Pantaleão Lopes, Horst Lippold e centenas de outras figuras.
Na Livraria do Globo os funcionários Valdemar Cavalheiro (gerente), José Cimirro, Braulio Araujo Souza, Vidal Castilhos Dânia (que depois foi prefeito), Milton Bidel e tantos outros orientavam estudantes na compra de seus livros.
Na “Gruta da Imprensa”, ao lado da agência central dos Correios e Telégrafos, as reuniões na madrugada onde compareciam os grandes boêmios e as meretrizes mais ousadas da cidade.
Na recém construída Galeria Chami se reuniam os estudantes do curso científico do Colégio Santa Maria, integrantes da Banda do Irmão Leão e os atletas de basquete do Corintians : Serginho Segala, Tiquinho Weber, Osório (mór da banda), Claudio Segala, Mayr, Balaio, Queijo, Derocy e outros.
Na frente da Livraria Dânia e Livraria do Globo a reunião era dos alunos do Maneco e integrantes da banda marcial do colégio : Binatão, Nelson Segala, Feliciano Albuquerque, Claudio Tadeu (mor da banda), Paulo Ary Moreira, Luiz Fernando Bezerra, Izidorinho Lima Garcia, Joacir Medeiros, Flori Flores e muitos outros.
A Central de Máquinas vendia eletrodomésticos e muitos discos eram vendidos pelo prestativo Candinho, concorrendo com a vizinha loja “Bel Som”, exclusiva na venda dos famosos bolachões de vinil de 33, 45 e 78 rpm (rotações por minuto).
Na esquina, o Café Turfista jamais fechou suas portas, pois atendia dia e noite sem parar. Na parte superior funcionavam um estudio de fotografia, a sede do velho PTB, a sede da UBACARSUL (união dos barbeiros, cabelereiros do RS) e o escritório de contabilidade do Luiz Carlos Lang.
O Salão Lord era o máximo em matéria de barbearia com vários profissionais, onde se destacavam o Venito e o Crescêncio Vieira. Impossível esquecer as famosas casas comerciais : Feira das Sedas, Elegância Feminina, Casa Paris, Sibrama, Casa Roth, Café Cristal, Confeitaria Segala, Casa Lang, Farmácia Probus, Livraria Pallotti, Confeitaria Pezzi, Casas Pernambucanas, Casa Royal.
Na saída das sessões dos cinemas Independência, Glória e Cine-teatro Imperial a primeira quadra da Bozano era fechada ao trânsito e todos os homens ficavam no meio da rua enquanto as moças passeavam nas calçadas indo e vindo. Centenas de casamentos tiveram seu início nessas trocas de olhares. As moças que não saiam da Primeira Quadra eram pejorativamente chamadas de “vassourinhas” pelas comadres linguarudas da paróquia.
Pois é para este ambiente que volto e passo a morar. A partir de 3 de maio estarei relembrando com emoção meus amigos mortos. E esperando meus amigos vivos para um chimarrão. Para um cafezinho no Gato Preto. Para uma massa folheada na Confeitaria Copacabana. Para um abraço emocionado. E para uma lágrima de muita saudade.
James Pizarro