terça-feira, 30 de janeiro de 2018

SENTI O CHEIRO DA MORTE DEPOIS DO CAFÉ DA MANHÃ - Diário de Santa Maria, página 4, edição de 30.1.2018.

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Às 7h30min, estávamos eu e minha mulher no Cemitério Municipal de Santa Maria. Tínhamos a missão de tirar os ossos de uma parente querido de um local e colocar os mesmos no túmulo da família. Era um desejo manifestado em vida e uma promessa assumida pela minha mulher. Não havíamos feito antes porque não haviam passado os cinco anos previstos em lei para estes casos.

Quando o funcionário colocou os ossos no saco de plástico negro, eu estranhei o pequeno volume. E para puxar conversa, comentei isso com ele. Ele foi sintético e, com a alma distraída, disse:

- São poucos ossos...

Depois de cumprida a tarefa por três funcionários do cemitério e das taxas pagas, rezamos pela alma de ambos e resolvemos dar uma volta pelo cemitério. Registro aqui a gentileza e carinho dos funcionários municipais da secretaria do cemitério, fato surpreendente nos dias que correm nas repartições públicas brasileiras.

Foi surpreendente o número de túmulos encontrados de pessoas que não sabíamos que haviam morrido, uma vez que moramos em Florianópolis durante muitos anos. E não ficamos sabemos da partida de muitos amigos.

Fotografei grande número de túmulos com obras de arte em mármore e bronze. Fazem parte da chamada "arte cemiterial", pouca divulgada.

Mas o que mais me espantou foi um estranho cheiro que pairava no ar em certa zona do cemitério. Indaguei um dos funcionários que varria o local sobre a procedência daquele odor. Ele, candidamente, me respondeu :

- É o cheiro da morte.

Olhei para minha mulher e sem compreender direito, pedi informações a ele.  Deu detalhes que, para não ferir suscetibilidades, deixo de registrar. Resumo tudo afirmando numa só frase a explicação :

- Transladaram um corpo que ainda estava em putrefação para outra cidade.

O dia estava sombrio. Prenúncio de chuva. Saí de lá pensando muita coisa sobre a natureza humana. Vaidade dos homens. Traições para subir na vida. Brigas por heranças. Busca desesperada por cargos e poder. Avarentos que amealham. Ricos que concentram capital e vivem uma vida de pobre. Tudo para se ficar reduzido a "poucos ossos". E depois a pó.

Abracei minha mulher, que estava visivelmente emocionada. Saímos do cemitério. E caminhamos de mãos dadas em direção à calçada do Avenida Tênis Clube.

Mais uma vez firmei minha convicção : quero ser cremado.  Não gostaria de ter túmulo. Se morrer em Santa Maria, gostaria de ter as cinzas esparramadas pelos morros, onde tantas vezes subi quando escoteiro. Ou quem sabe, às escondidas, pedir para um neto meu espalhar minhas cinzas no Jardim Botânico da UFSM que eu ajudei a fundar.

Se morrer em férias gostaria de ter as cinzas largadas diretamente no tranquilo mar de Canasvieiras, em Florianópolis. Ou na praia do Matadeiro talvez.

Para deleite das tainhas. Que teriam uma pizarrônica refeição...


terça-feira, 23 de janeiro de 2018

A SATÂNICA BOATE KISS - James Pizarro


Nunca mais a catedral de Santa Maria
Baterá duas horas da madrugada
Sem que a cidade,
Na hora do espanto,
Rememore tudo para a eternidade.
Nunca mais a cidade terá a mesma alegria
Porque a ganância de uns
E a irresponsabilidade de outros
Prepararam ardilosamente,
Sob a desgraçada signa do cifrão,
O porão negro da morte.
Uma câmara escura de gás letal
Que faria inveja a Hitler
Levou para sempre
Futuros médicos, advogados, agrônomos, zootecnistas,
Além de socorristas voluntários e soldados.
Mais de 242 corpos achados.
Dois namorados abraçados, entre eles.
Com os corpos colados,
Carnes soldadas para sempre pela combustão
Como num pacto de amor eterno
O derradeiro carinho do amor que nunca acontecerá.
Naquela esquina maldita,
Em tempos idos, dois incêndios já produziram horror.
Escola Hugo Taylor e Escola Riachuelo já tinham ardido,
Mas os prejuízos foram apenas materiais.
Mas desta vez foi carne humana,
Sangue, esperança e juventude.
Este punhal ficará cravado em nossas almas para sempre.
Ódio à insensatez dos homens.
Misericórdia aos pais e avós
Que nunca mais ouvirão a voz e a alegria de seus filhos e netos.
Esquina da rua dos Andradas com Avenida Rio Branco.
Queima, desgraça dos homens!
Arde, tristeza das mães!
Fede, algoz de pais e avós!
Mas jamais – esquina do Diabo –
Me peças que eu te ame.

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

O PAÍS DO DEIXA PRÁ DEPOIS QUE DEUS VAI DAR UM JEITO ! - crônica do dia 16.1.2018 pág. 4 Diário de Santa Maria

Um dos meus primeiros professores de Biologia no Colégio Estadual Manoel Ribas vivia repetindo que "a gente começa a morrer no dia em que nasce". 

Uma coisa óbvia, mas que a nossa meninice custava um pouco a atinar. A cada dia que passa, realmente, nos aproximamos mais da morte. E menos tempo nos sobra de vida. Meu avô materno dizia a mesma coisa usando um ditado que ninguém mais conhece : "Tempo e hora não se ata com soga".

Anos depois, estudei quatro anos de latim com o querido e saudoso professor Albino Seibel, nos quatro livros  : Ludus Primus, Ludus Secundus, Ludus Tertius e Ludus Quartus. E nas aulas de latim aprendi uma célebre frase de Virgílio (Georgicas, livro III, v.284) que se referem a este tema do tempo.

"FUGIT IRREPARABILE TEMPUS"...o tempo foge, perdido para sempre.

Virgílio estava a nos avisar o que outros também perceberiam : o tempo voa.  Portanto, não devemos desperdiçar o tempo em frivolidades.

Lembro disso quando vou visitar pessoas e elas estão vidradas em novelas da Globo. Eu mesmo me surpreendo perdendo tempo escutando discursos de políticos em redes de TV, apesar de saber que aquilo tudo é grotesca mentira.

Muitos namorados e noivos perdem tempo em brigas inúteis, em mágoas que vão matar o amor, ao invés de ocupar a boca e a língua em beijos intermináveis.

Muitos casais perdem  tempo pegando seus travesseiros e, aferrados estupidamente a seus pontos-de-vista e pisando duro, vão dormir em quartos separados. O que é de uma burrice oceânica, principalmente quando a discussão é no inverno e poderiam dormir abraçadinhos, empernados, como mamíferos felizes.

Quanto tempo os proprietários de apartamentos perdem em exaustivas e intermináveis reuniões de condomínio ? E muitas vezes os motivos são fúteis, um gatinho que miou, um cachorrinho que escapou para o corredor, um ar condicionado pingando, um som  que tocou  mais alto, a desconfiança sempre presente de estar sendo logrado por todos...

Dia desses na missa dominical da manhã na catedral de Santa Maria assisti a uma cena felliniana e que me tirou a concentração durante toda a celebração ministrada pelo meu amigo Pe. Ênio. Uma moça teclou seu celular e “falou” com alguém durante todo o tempo, alheia ao que se passava na igreja. E na hora da comunhão, botou o celular no bolso, levantou, comungou, voltou, sentou e voltou a teclar ao celular. Sem fazer juízo de valor, mas já fazendo, que valor teve a missa para essa jovem ? Essa moça perdeu tempo, certamente.

Imagino que também os estudantes que façam uso do celular na sala de aula fiquem ausentes do processo educativo. Não estão nem aí para o conteúdo que o professor está tratando. Para não se incomodar muitos professores não reclamam do aluno. Então, o aluno faz de conta  que aprende. O professor faz de conta que ensina.  O governo faz de conta que paga bem. As famílias fazem de conta que os filhos vão  ter emprego depois da formatura.

É o país do faz de conta. Do talvez. Do quem sabe. Do jeitinho. Do nunca mais. Do deixa prá depois. Do Deus vai dar um jeito.

Até quando, insensatos ?



terça-feira, 9 de janeiro de 2018

EURÍPIDES, O FILHO - James Pizarro

Começou a desconfiar das saídas noturnas do filho.
Numa noite de inverno o seguiu. Pisando nas lajotas soltas da rua do Acampamento, em Santa Maria, RS. Noite chuvosa. Muito raio e trovão.
Viu o filho entrar num dos prédios. Quando o filho desapareceu no elevador, ele ainda ficou cuidando na luzinha vermelha o andar em que o filho descera.
Foi atrás. Ouviu ruídos de copos, música, gritinhos. Saiam do apartamento do final do corredor. Apertou a campainha.
Veio atender um moreno. Alto. Pintado. Rebocado. Vestido de Carmem Miranda. Que lhe perguntou o que queria.
- Vim falar com o Eurípedes.
Ele deu detalhes do Eurípedes, estatura, cor dos olhos,cabelos.
Com Eurípedes devidamente identificado, o rebocado moreno gritou com voz esganifada pra dentro do apartamento :
- Chamem o Cu-de-seda !...tem mais um cliente prá ele !
O pai desmaiou.

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Travessia milagrosa de 75 anos no planetinha azul - James Pizarro (página 4 do Diário de Santa Maria, edição de 2.1.2018)



Travessia milagrosa de 75 anos no planetinha azul

02 Janeiro 2018 13:31:00

Como por milagre, não torci o pé nem fui agredido ou assaltado no Calçadão da minha querida cidade



Como por milagre, eu vi procissões. E vultos através da vidraça. E maçãs maduras caindo do pé. E um sol que se levanta.
Como por milagre, eu senti cheiros antigos. E revi faces amigas. E lembrei de rostos mortos. E aprendi a dizer não. E aprendi a dizer sim.
Como por milagre, eu salvei náufragos. E eu mesmo - como por milagre - cheguei à praia. E escutei discussões sem delas participar. E ouvi queixas. E fiz queixas. E se queixaram de mim.
Como por milagre, fiz um poema. E ergui paredes. E fixei quadros de crianças. E sonhei com meus pais e sogros mortos. E visitei seus túmulos.
Como por milagre - metamorfose inexplicável -, fui segunda-feira. E me transformei em sábado também. E consegui ser domingo.
Como por milagre, busquei - alcancei - o Sul. E busquei o Leste. E fugi para o Oeste. E como por milagre não pressenti o Norte.
Como por milagre, passei por tardes loiras. E conheci o amor. E acompanhei cardumes. E me perdi com eles. E achei um cavalo-marinho. E recolhi conchas. E me transformei em faca. Em anzol. E rede.
Como por milagre, uma sereia falou comigo. E gaivotas drogadas voavam por sobre meus cabelos. E estive em terras longínquas. E ouvi morteiros ao entardecer. E o napalm queimou minha pele de pecador. E toquei tambores de guerra. E fumei o cachimbo da paz.
Como por milagre, andei por estepes desoladas. E descampados verdes. E desci ao fundo das minas. E naveguei por mansos canais azuis. E por mais de uma vez sonhei com Prado Veppo. E com Pedro Freire Junior. Que me sorriam amável e alegremente. Como sempre me fizeram em vida.
Como por milagre, nasceu Bethânia, minha sexta neta. E outros dois netos se formaram no Ensino Fundamental. E outra completando Ensino Médio. E mais dois netos avançavam na universidade rumo à formatura.
Como por milagre, mais um ano sem ter erisipela. E por doze meses suportei silenciosamente a flauta gremista (por estar meu amado Colorado na Série B). E fiquei calado - como por milagre - quando o Real Madrid foi campeão, respeitando civilizadamente a dor azulada do adversário que, onipotente, prometia acabar com o planeta.
Como por milagre, não torci o pé nem fui agredido ou assaltado no Calçadão da minha querida cidade. E meus salários de aposentado foram depositados integralmente no segundo dia útil de cada mês.
Como por milagre, completei 51 anos de casamento ao lado da mesma companheira que a bondade divina me destinou. E que me entende. Estimula. Suporta. Faz meu braço se transformar em tacape forte para quebrar rochas duras. E sobre o bom senso dela se alicerça toda a estabilidade da família pizarrônica. Agradeço a Deus todas as noites por isso.
Como por milagre, estou indo para os 76 anos em 2018. Em companhia de todos vocês: desde a direção, repórteres, funcionários até os prezados leitores.
Que Deus dê a todos muita saúde, glória alta e compreensão entre os homens!