quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

GRATIDÃO - JAMES PIZARRO (DIÁRIO, pág.4 da edição de 29.12.2020)

Vi o Pantanal sendo consumido pelo fogo. Pássaros desatinados voando sem rumo. E a onça-pintada com as patas queimadas gotejando sangue. Vi barragem rebentando e sufocando pulmões e rios com lama. Vi as balsas nos rios amazônicos carregadas com milhares de gigantescas toras de árvores ilegalmente derrubadas. Ouvi metralhadoras cantando seu ódio e esparramando cérebros e tripas em diversos morros e comunidades. Mas também vi maçãs maduras caindo do pé. E um sol que se levanta. E senti cheiros antigos. E revi faces amigas. E lembrei de rostos mortos. E aprendi a dizer não. E aprendi a dizer sim. E salvei náufragos. E eu mesmo, por mais um ano - por milagre - cheguei à praia. E escutei discussões sem delas participar. E ouvi queixas. E fiz queixas. E se queixaram de mim. Fiz um poema. Foi um ano violento. Muita doença. Muita morte. Mas consegui erguer paredes. Fazer barricadas. E fixei quadros de crianças. E sonhei com mulheres adormecidas. Fui segunda-feira. E me transformei em sábado também. E consegui ser domingo. Apesar da lama da barragem. E do terror de Paris. Da violenta explosão química no Líbano. Busquei – e alcancei - o Norte. E busquei o leste. E fugi para o oeste. E não pressenti o sul. Como por milagre passei por tardes loiras. E conheci o amor. E acompanhei cardumes. E me perdi com eles. E achei um cavalo-marinho. E recolhi conchas. E me transformei em faca. E anzol. E rede. Lembrei de uma sereia que falou comigo na praia de Canasvieiras há anos. Gaivotas drogadas voavam por sobre meus cabelos. E estive em terras longínquas vendo a insanidade no deserto da Síria. E ouvi metralhadoras e sangue jorrando ao som do rock em Paris. E a dor da revolta perplexa queimou minha pele de pecador. E toquei tambores de guerra. Mas orei forte em nome de Jesus e minha alma fumou o cachimbo da paz. E então andei por estepes. E descampados verdes. E desci ao fundo das minas. E naveguei por mansos canais azuis. E regressei à minha realidade. E aqui estou – aos 78 anos – saudável. Sentado ao entardecer olhando os morros de Santa Maria. Pensando nos meus filhos, netos e minha mulher. Entro em comunhão com a Energia do Universo. Com o caudal da Vida. E me entrego totalmente nas mãos de Deus. Recebi muita generosidade Dele. E quero agradecer por isso PUBLICAMENTE! Enquanto tenho tempo. Obrigado, Senhor !

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

UM TEMPO FELIZ - JAMES PIZARRO (DIÁRIO, pág.4, 15.12.2020)

Bar Geaiten do Morisso. Claudio Machado Rizzato, Battistino Anele e Edifício Taperinha. Trem Minuano. Zebrinha da Loteria Esportiva no "Fantástico". Hugo da Flauta. Calça Topeka. Tio Santo. Negativo de foto. Tivico. Língua do "P". Sargento "Farol" da Banda do Sétimo. Emulsão de Scott. Abelin assoviador. Coppertone. Claudio e restaurante Moby Dick. Naftalina. Cabaré Balalaika. Dalmo Dikrel. Vera Soares e site Clavedesul. Viagens do Chicotim. Blusa de banlon. Gruta Azul. Pílulas de vida do Dr. Ross. Restaurante Gruta da Imprensa. Vemaguet. "Senadinho" do Clube Comercial. Rural Willys. Garçon "Chico" do Clube Caixeiral. Bobs para o cabelo. Trem Húngaro. Piadas de caserna das "Seleções". Revista "Realidade". Papel carbono. Trem "noturno" para Porto Alegre. Xampu de ovo. Revistaria da gare da estação ferroviária. Elefantinho da Shell. Stand do Wilson na Segunda Quadra da Bozano. Pó compacto Cashmere Bouquet. Matinê dominical das l3h15 do Cine Imperial. Leque feminino. Álbum de figurinhas "Marcelino, pão e vinho". Piteira para cigarros. Cabaré da Valda. Atirei o Pau no Gato. Retreta na praça Saldanha Marinho. Óleo Singer. Central de Máquinas. Disco de 78 rotações. Relojoaria Péreyron. Cobertor Sonoleve. Casa Feira das Sedas. General Osvino Ferreira Alves.Sabonetes Madeira do Oriente. Sibrama. Modess Pétala Macia. Calçados Morisso. Vidal Castilhos Dânia. Elevador Ótis. Brim Coringa Sanforizado. Bel Som. Pyrex. Livraria Dânia. Roy Rogers. Casa Escosteguy. Buck Jones. Casa "A Facilitadora". Gabriel Abbott. Tarzã. Guarany Atlântico. Corante Guarany. Bibelô. Bidê. Revista Intervalo. Revista Sétimo Céu. Revista Grande Hotel. Revista "O Cruzeiro". Heitor Silveira Campos. Revista do Globo. Relógio Cuco. Deocleciano Dornelles. Bomba de Flit. Mimeógrafo. Toca discos. Caminhão FNM. Dom Antônio Reis. Flâmula. Monark. Pneu Balão. Jardim Tropical ao lado da catedral. Clubes de basquetes Atlético e Irajá. Camisa Volta ao Mundo. Café Visita. Amigo da Onça. Café Cometa. Repórter Esso. Goma Arábica. Montanha Russa. Casa Cristal. Fanha. Tivico. Quinquinha. Sapato Vulcabrás. Neocid. Vasco "Capitão Caraguatá" Leiria. Enciclopédia Barsa. Tesouro da Juventude. Clube Juvenil Toddy. Escola de datilografia da Olga. Corte meia cabeleira. Corte Principe Danilo. Cabaré da Valda e da Geni. Casa das Malas. Joalheria Troian. Binaca. Envelope verde-amarelo para correspondência aérea. Alpargatas Roda. Monóculo com foto. Bombril na antena. Enceradeira. Fotonovela. Decalque. Araldite. Simca Chambord. Galocha. Chaveiro com pé de coelho. Meia-sola. Grupo de Vanguarda Cultural. Farol. Crocante. Tio Santo. Bloco de Carnaval "Bota que eu bebo". Máquina de moer carne. Sabonete Eucalol. Maiôs Catalina. Varig na Noite. Casa Aronis. Sabão Rinso. Dedal. Uniforme de Gala. Glostora. Leite de Rosas. Leiteiro. Fábrica de Mosaicos Ângelo Bolsson. Jogo de futebol de botão puxador. Mingau de aveia Quaker. Jeca-tatu. Saci-pererê. Reizinho. Drops Dulcora. Penico.Cartão de Natal. Mercurocromo. Espiral contra mosquito.Antoninho-faz-tudo. Bentinho do Carmo Machado. Engole-sapo. Talha. Filtro de Barro. Calça Far-west. Toca-fitas. Aqua Velva. Soldadinho de chumbo. Topo Gigio. Os Sobrinhos do Capitão. Kichute. Conga. Tênis Bamba. Manilhas Kozoroski. Casa Herrmann. Ovo de madeira para cerzir meia. Crush. Cyrillinha. Bambolê. Sabonete Lever. Instituto Universal Brasileiro. Tigre da Esso. Calçadeira. Slide. Quinta Seibel. Três em Um. Roupa engomada. Revista do Rádio. Cadernos do MEC. Cadernos Avante. Clube do Bolinha. Casinha na árvore. Cadeiras na calçada. Velar o defunto em casa. Seringa de vidro para dar injeção. Suadouro contra gripe. Escaldapé. Biliquê contra gonorréia. Rodelas de batata inglesa na testa contra dor-de-cabeça. Gemada com canela. Manta de lã contra cachumba. Entregador de vianda. *Se você tiver conhecido mais de 90% disso tudo, certamente terá mais de 70 anos...

GARE : OUTRORA ORGULHO TREPIDANTE VIROU TAPERA SOTURNA - JAMES PIZARRO (DIÁRIO, seção MEMÓRIA, caderno MIX, edição de 19.12.2020)

Para não desestabilizar minhas emoções nunca mais desci a avenida Rio Branco para visitar a gare, um dos locais mais importantes da minha infância. Na minha última visita ao local chorei muito. Voltei depressivo para casa. E resolvi jamais voltar àquele local. A gare da estação da Viação Férrea do RS foi local frequentado pela elite da sociedade santa-mariense, por mais incrível que isso possa parecer hoje aos mais moços, testemunhas da decadência da rede ferroviária. Ali estavam os escritórios das chefias. A sala do diretor da estação (chamado de "Agente"). O amplo e completo "stand" de revistas (a chamada "Revistaria da Estação"). O higiênico e confortável restaurante, onde serviam-se desde refeições "à francesa" até rápidos lanches. A fantástica sorveteria com inimagináveis guloseimas servidas em finas taças de prata. O competente serviço de carregadores de bagagens ("mensageria"), com os servidores vestidos de azul, com colarinho e gravata, portando carrinhos de ferro para o transporte das malas. O serviço de autofalantes com as publicidades (chamadas "reclames") ditas por um locutor cego, que tinha a fantástica capacidade de memorizar tudo. Entre um "reclame" e outro, valsas de Strauss e sambas de Ary Barroso... Para ter acesso à gare da Viação Férrea, era necessário comprar ingresso. Vendido sob a forma de um papelote duro, numerado, metade branco, metade verde. Que era picotado pelo porteiro engravatado na roleta numerada que dava acesso ao interior das instalações. Rapazes e moças, acompanhados de seus pais, costumavam formar fervilhante torvelinho de gente nas horas de chegada e partida dos trens de passageiro. Trens que atendiam por nomes especiais : "Noturno", "Fronteira", "Serra", "Porto Alegre". A gente ficava abanando para as pessoas que partiam naquela "composição" formada por dezenas e dezenas de carros. Puxada por barulhenta e folclórica máquina a vapor, carinhosamente chamada de "Maria Fumaça". Pouco depois substituídas pelas máquinas movidas a diesel e pelos trens húngaros, que tinham até ar condicionado e lanche gratuito. Todo fim-de-ano íamos eu com minha família - pelo trem da "Serra" - curtir férias escolares na cidade de Getúlio Vargas, situada depois de Carazinho e antes de Marcelino Ramos. Íamos no vagão-leito, composto de duas camas beliche, o máximo em conforto para a época. Existiam carros de "Primeira Classe", com poltronas estofadas. E carros de "Segunda Classe", com bancos de madeira, ocupados pelas pessoas mais pobres, gaúchos de bota e bombacha que levavam desde galinhas enfarofadas até gaiolas com seus passarinhos de estimação. Havia o "Carro-Restaurante", onde os mais abastados faziam suas refeições, servidas por garçons de gravata borboleta. Os dois últimos carros dessas composições eram para uso dos funcionários que estavam trabalhando no trem e para uso dos Correios e Telégrafos, já que os malotes de cartas e encomendas eram predominantemente transportados pela Viação Férrea. Meu tio, João Cassal Pizarro, era ferroviário e agente da estação de Getúlio Vargas. Um homem admirável, simpático, gordo, que tinha uma incrível propriedade : falava e se fazia entender com um canário de estimação ! As lágrimas escorrem pelo meu rosto quando me lembro daquele período de ouro dos ferroviários. Dos trens que cortavam as madrugadas da minha infância. E do meu adorável tio que falava com seu cardeal. Tudo – infelizmente – morreu.

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

JUBILEU DE OURO DOS AGRÔNOMOS DA UFSM/1970 - JAMES PIZARRO (Diário, pág. 4, edição 1.12.2020)

Nos primeiros dias de março de 1967 iniciei minha vida docente na UFSM dando aulas para o Curso de Agronomia (então, chamado Faculdade). A disciplina tinha um nome longo : “Zoologia Agrícola : Anatomia e Fisiologia dos Animais Domésticos”. Era ministrada por três docentes. O eng. agr. Armando Adão Ribas dava as aulas de Zoologia Agrícola. O médico-veterinário Flávio Martini dava as aulas de Anatomia dos Animais Domésticos. E eu dava as aulas de Fisiologia dos Animais Domésticos. Eu tinha apenas 25 anos quando comecei na carreira universitária, mas tive a sorte de estar acompanhado pelos experientes professores Martini e Ribas, que sempre me trataram carinhosamente e com muito incentivo. Eu mesmo já tinha muita experiência didática porque já dava aulas nos cursinhos pré-vestibulares desde os 18 anos. Lembro que nessa primeira turma de alunos muitos eram mais velhos que eu. E por ser a minha primeira turma de universitários eu dei o máximo dos meus esforços e dedicação. Fiquei muito amigo de todos, uma turma de mais de 60 alunos que por se formarem quatro anos depois constituíram uma associação chamada AFA-70 (Associação dos Formandos em Agronomia de 1970). No final do curso, para imensa surpresa minha, fui um dos homenageados da turma de formandos, o que muito me emocionou. Contei tudo isso, porque recebi ontem esta carta que peço licença ao leitor para transcrever : “Prezado professor James : Neste ano de 2020 comemoramos o nosso Jubileu de Ouro. Precisamente no dia 9 de dezembro de 1970, dia de grande euforia, 64 jovens sedentos de Agronomia foram coroados com a beca da sabedoria agronômica para impor-se sobre a terra e, com a benemérita ciência, fazê-la produzir e conduzir o único meio de sobrevivência da Natureza : a alimentação humana, animal e vegetal. Nesse dia, as famílias se regozijavam e o senhor, caríssimo professor James Pizarro, estava conosco regozijando-se também pelo mérito de ter contribuído com o seu sábio conhecimento para a formação desses jovens e, em cumprimento da missão de ensinar, entregar ao Brasil e ao mundo, tantos talentos que contribuíram para o engrandecimento da Agronomia. Por essa razão, caro professor Pizarro, queremos congratularmo-nos com sua honrosa presença no dia 11 de dezembro do ano em curso, as 18h00, no Hotel Recanto Business Center, Recanto do Maestro, proximidades de Vale Vênetto, ocasião em que se encontrarão os seus outrora discípulos comemorando o seu Jubileu de Ouro os seus 50 anos de formados. Ansiosamente, aguardamos a sua honrosa presença com certeza de que enriquecerá o nosso tão esperado encontro e, acima de tudo, comoverá a todos os que copiaram o altruísmo e o exemplo de um autêntico profissional como foi o nobre professor. Eng. Agr. CAMILO CERVI (pela Comissão Organizadora do Encontro AFA-70) “ Agradeço aos meus queridos ex-alunos, hoje colegas, por tornarem a lembrar de mim meio século depois. Lembrei de todos e lembrei das aulas enquanto lia a carta. Lembrei do receio que tive antes das primeiras aulas em não estar a altura da missão. Medo que logo se dissipou. Agradeço a Deus por ter tido alunos tão generosos para comigo. Não me envergonho de dizer ao leitor que terminei de ler a carta chorando. Precisava repartir esta emoção contigo. Num país sem memória e num mundo sem gratidão, ser lembrado cinquenta anos depois é uma medalha que prego no meu peito. E que dedico a meus filhos e netos. Glória alta e compreensão entre os homens a todos os meus alunos da AFA – 70 !!!