segunda-feira, 21 de setembro de 2020

A COOPERATIVA DOS FERROVIÁRIOS NOS MEUS TEMPOS DE GURI- JAMES PIZARRO (DIÁRIO -CadernoMIX,19.9.2020)

Nas cercanias do Colégio Estadual Manoel Ribas funcionava a monumental Cooperativa dos Ferroviários da Viação Férrea do Rio Grande do Sul, com dezenas de prédios dedicados a múltiplos fins. Um grande prédio servia de sede burocrática e também de armazém de "secos e molhados", expressão em voga à época. Ali existia qualquer tipo de alimento imaginável para comprar. Anexo a este grande armazém havia loja de roupas e tecidos, alfaiataria, relojoaria, carvoaria, fábrica de sabão, padaria, lenheira, farmácia, etc Em frente ao prédio do Maneco funcionava um gigantesco açougue, prédio ainda hoje existente e restaurado. Em frente a este prédio, no passado, formava-se longa fila desde a madrugada, principalmente de meninos que, munidos com seus "ganchos" (estruturas de ferro em forma de letra jota) esperavam para levar a carne para casa. Não se usava dinheiro, pois a Cooperativa fornecia, no início de cada mês, uma série de "vales", fichas de papelão azul que correspondiam a uma certa quantia em dinheiro, de acordo com o ordenado do ferroviário. Os meninos entregavam aqueles "vales" para o açougueiro (eram mais de 10 açougueiros atendendo simultaneamente), em troca dos "pesos" solicitados. Chamava-se de "peso" ao tipo de carne solicitada, isto é, filé, costela minga, coxão de fora, coxão de dentro, etc Tinha de haver cuidados no transporte daquele gancho com carne até à casa. Os cachorros corriam atrás, pulando, para roubar a carne. Muito guri tomou surras homéricas por ter deixado o gancho com carne no chão enquanto jogava "bolita" (bola de gude). E a cachorrada levava a carne do penitente. Ou a carne era roubada por outros guris ! Às vezes, mentiam que não tinha chegado a carne. E trocavam os "vales" por outro tipo de compra nos bares e lojas da cidade. Os "vales" tinham inteira credibilidade na comunidade santa-mariense e circulavam livremente no comércio, como se dinheiro fosse. Aliás, os próprios adultos - quando ficavam com pouco dinheiro no fim do mês e tinham "vales" sobrando - trocavam-nos por dinheiro, numa transação chamada popularmente de "touro". Era comum o ferroviário dizer : "Me apertei de dinheiro, vou ter de fazer um touro." Não consegui descobrir até hoje o porquê do uso da expressão "touro". MANECO E FERROVIA É indispensável falar na Ferrovia e na Cooperativa nos dados iniciais sobre a história do Maneco, pois os destinos dessas instituições se entrelaçam. A maioria absoluta dos filhos e netos de ferroviários estudavam no Maneco, assim como filhos de funcionários públicos, classe média e proletariado em geral. Os filhos de famílias mais abastadas e da classe média alta estudavam no Colégio Sant'Anna e Colégio Centenário (as moças) e Colégio Santa Maria (rapazes). Os sapatos todos que usei, até à idade de 14 anos ou 15 anos, foram presentes dos meus avós maternos, vó Olina e vô Fredolino. Sapatos comprados na sapataria da Cooperativa dos Ferroviários. O primeiro relógio que ganhei na vida, de enorme mostrador e pulseira de couro brilhante, foi comprado na relojoaria da Cooperativa : era um típico "cebolão" ! Na época, chamava-se "cebolão" ao relógio que possuia mostrador muito grande. A GARE DA VIAÇÃO FÉRREA A minha ligação com a ferrovia vem do fato do meu avô Fredolino ter sido ferroviário. Era exímio carpinteiro, verdadeiro artista, cujo trabalho, dedicação, assiduidade e pontualidade lhe faziam gozar de enorme prestígio junto aos superiores. Trabalhou mais de 45 anos na ativa, sem nunca ter tirado licença, atestado médico, faltado ao serviço. Vô Fredolino trabalhava no chamado "recinto", que nada mais era do que o imenso espaço existente em frente à gare da Estação da Viação Férrea de Santa Maria. Ali existiam vários departamentos da ferrovia e meu avô exercia suas atividades no chamado "Posto de Visitas", onde se situava a carpintaria geral da "Rede". A Viação Férrea era conhecida em todo o território gaúcho simplesmente por "Rede". Quando os ferroviários entravam em greve, reuniam-se no campo gramado que existia atrás do Maneco, ao lado de um enorme depósito de combustível (chamado de "tonel"), construído para armazenamento de óleo para as primeiras locomotivas a óleo diesel adquiridas e que causavam grande admiração aos habitantes da cidade. Este campo, outrora gramado, passou a ser estacionamento de ônibus de empresas de transporte coletivo. De cima daqueles barrancos os ferroviários faziam comícios, proferiam palavras de ordem e jogavam pedra nos ferroviários que não aderiam ao movimento paredista, então chamados de "furadores" de greve ou "carneiros". Anos depois, nas aulas de Zoologia do próprio Maneco, aprendi que os carneiros e as ovelhas eram animais tão passivos, tão dóceis. que não dão nenhum gemido quando são levados para o abate, ou mesmo quando estão sendo abatidos. Daí a razão óbvia do apelido de "carneiros" que tinham os "fura-greves".Tanto isso é verdade que, nas fazendas e abatedouros do Rio Grande do Sul, quando um carneiro "berra" (o verbo certo seria "balir", mas o povo fala "berrar") na hora do abate, é imediatamente poupado, solto, e jamais molestado ou morto por alguém. Diz a crendice popular que aquele que ousar matar um carneiro que berrou na hora do abate sofrerá toda sorte de desgraças para o resto da vida. AS GREVES Eu sempre fugia de casa e me misturava àquela multidão de ferroviários grevistas. Aquilo me fascinava. Lembro que, certa vez, aquela manifestação foi dispersada por uma tropa de cavalarianos da Brigada Militar. Cerca de 40 homens montados e empunhando espadas reluzentes que serviam para dar estrondosos "planchaços" nas costas dos grevistas, o que os fazia urrar de dor. "Planchaço" é um golpe dado com a parte lateral da espada e que produz enorme mancha arroxeada na pele do golpeado, provocando dor insuportável, edema e faz a coragem desaparecer na mesma hora ! Minha avó usava o termo "planchar" para nomear a ação de passar calças de homem com o ferro de passar roupas municiado de ardentes brasas. Aliás, o ferro de passar roupas usado pela vó Olina está cuidadosamente enfeitando a sala de visitas de minha casa, preciosa relíquia para mim. A Rede desapareceu. Os trens ficaram na memória. Ninguém mais usa ferro com brasa para passar. Os prédios da Cooperativa estão povoados de fantasmas. A gare abandonada. Ouço, às vezes, de madrugada apitos de trem carregando soja. E sinto uma saudade lancinante da vó Olina...

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