Transcrevo, na íntegra, o discurso pronunciado pelo prof. Francisco Álvares Pereira, paraninfo da turma de 1963, da Faculdade de Medicina, da Universidade Federal de Santa Maria.
Este discurso foi reproduzido no dia posterior à cerimônia no jornal "A CIDADE", sob a direção do jornalista Clarimundo Flores, uma das glórias do jornalismo gaúcho.
O discurso é surpreendente e visionário, pois o paraninfo da turma, Dr. Francisco Alvares Pereira, já em 1963 - há cerca de 48 anos atrás - falava premonitoriamente sobre Ecologia para uma turma de jovens médicos recém-formados.
NOTA DE JAMES PIZARRO
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“A moderna crise mundial, em um de seus aspectos fundamentais, decorre da não adaptação do homem e da sociedade às condições materiais criadas pelo progresso da máquina. Tão rápida e surpreendente está sendo a evolução revolucionária da técnica científica, que o espírito humano não teve o necessário tempo de se ajustar devidamente”
“Como dispor de visão global uma geração a que faltam os instrumentos ou a sensibilidade imaginativa para analizar e reconstruir o mundo em têrmos globais?” (A. Saint Pastous).
Estas palavras escritas pelo professor Saint Pastous em seu recente livro “A terra e os homens” a propósito do que êle denomina “consciência ecológica” põem-nos, senhores diretores das Faculdades, senhores professores, senhores e senhoras, na perspectiva da vida destes jovens médicos agora formados.
Nesta hora tão esperada e cheia de emoções para vós, prezados afilhados, todos nos congratulamos convosco. Vossos pais vêem se concretizar seus anseios e suas esperanças; vossas esposas e noivas divisam a realização de seus sonhos. Vossos professores, aqui presentes, sentimo-nos recompensados assistindo a cerimônia de conclusão de vosso curso médico.
Desejamos todos a cada um de vós uma vida profissional plena e feliz.
Vós pedistes que eu vos desse a última aula. Creio, porém, que nada mais há a acrescentar concernente ao ensino que habilite à atividade profissional. Há, porém, outro assunto que não consta nos currículos e contudo faz parte da sapiência de um médico, do novo médico, dos novos tempos: refiro-me à consciência ecológica, a que se refere o professor Saint Pastous.
Convido-vos, então, para fazermos algumas considerações que estabeleçam os elementos de diagnóstico da situação histórica brasileira, na qual se desdobrará a vossa vida de médicos.
Para formarmos uma idéia do que acontece hoje caracterizando o momento atual, deveríamos recordar a maneira de viver do homem desde que habitou a terra, isto há mais de trinta mil anos, e a evolução de sua mentalidade através dos séculos.
Quero ressaltar, entretanto, que com o advento da ciência experimental e da tecnologia a partir, sobretudo, do século XVIII, houve um substancial adianto no conhecimento das leis da natureza que deu, ao homem, uma nova consciêcia, e à humanidade uma nova visão do mundo e do lugar que por direito a vida nele ocupa.
Na época pré-industrial, o lugar dos indivíduos se definia em função do estar.
Em função das situações eram os indivíduos classificados, “emprateleirados” conforme a sua origem ou a profissão do pai, etc.
O homem medieval era um adorador de Deus, um admirador do Universo, a sua mentalidade era a de um vassàlo.
A História era encarada como um destino ou uma Providência que importava com virtude e resignação aceitar. E o trabalho, uma obediência ou um dever, se não uma expiação e uma pena.
Gradualmente, porém, sucedeu-se outra mentalidade. A ciência experimental trouxe a compreensão das coisas nos seus determinismos naturais. A possibilidade de combinar então êsses determinismos para a realização de efeitos novos a seu favor, deu ao homem um sentimento de autonomia, face ao desencadear-se dos acontecimentos, um sentimento de senhor da natureza, autor da própria existência.
Houve uma reviravolta de mentalidade, o homem de admirador submisso se transformou em criador, de espectador se tornou dono dos próprios destinos, adquiriu o conceito dinâmico da vida.
Do mesmo modo, a idéia e o sentimento dos direitos passa ao primeiro lugar na hierarquia dos valores, com tôda a sua força polarizadora. O Direito, o homem post-medieval passou a entendê-lo como do ser à vida e a vida igual para todos.
Esta reviravolta da mentalidade acontece onde intervém o fator tecnológico alterando a configuração cultural de uma comunidade.
No Brasil, pela revolução industrial, teve início o processo brasileiro onde as culturas se defrontam.
Em todos os setores brasileiros em desenvolvimento há confrontações de culturas e de civilizações. Não vivemos sòmente a cultura e a política nacional, os meios de comunicação, a alfabetização, o rádio, a imprensa transportam-nos todos para o universal.
Quando confrontamos a cultura brasileira, ainda em muitos aspectos limitada, cheia de improvisações e fantasias, com a cultura universal, evoluída, colocada em bases sólidas por uma civilização técnica e científica, sentimo-nos abalados nos alicerces.
Não é que devamos importar pré-fabricadas, lá de fóra, as soluções dos nossos problemas. Mas é decepcionante para nós, que muitos daqueles que irão solucioná-los, ainda sejam fabricados em série, na linha de montagem de um anfiteatro, sem a objetividade das nossas necessidades, e das nossas deficiências.
O homem, neste processo histórico, sente-se chamado a uma tarefa criadora, procura “reconstruir o mundo em termos globais”.
Também não foi encontrada uma solução social duradoura que satisfaça a maior parte dos brasileiros. É que para muitos, sobretudo os que gozam posições privilegiadas, não há interêsse em achar a solução verdadeira. Talvez lhes seja difícil compreender, talvez nunca compreenderão as aspirações e as necessidades dos outros. Raciocinando em têrmos de situações, situações ultrapassadas, não compreendem que aqueles que reclamam seus direitos, estão procurando construir um mundo melhor.
O conhecimento de que esta situação é uma conjuntura histórica na evolução da civilização brasileira, e que há de passar, nos dá uma esperança. Mas as elites devem ficar sabendo que nenhum estratagema, nenhuma violência deterá a evolução. É irreversível. Todos devem ter igual sentimento da realidade e definirem sua parte nesta cruzada nacional.
Caros amigos: quisera falar-vos francamente. Digo-vos que penso sòmente, pela estima que inspirais, no êxito de vossa vida profissional.
Eu me pergunto, então, se a vida de um médico, hoje e aqui no Brasil, não se coloca dentro de novo contexto histórico, com uma nova significação. Eu me pergunto, então, se a nossa felicidade, em particular, não se condiciona à consciência que tiverdes desse fato e da coragem com que assumirdes esta nova situação.
Sem uma profunda sintonia com seu tempo e sua terra, uma profissão que seja a do médico ou qualquer outra pode ser posta em dúvida como útil. Pode ser considerada inútil e nociva, sem razão até. Mas será útil e necessária se responde às exigências de sua terra naquele instante, e à indigência do homem de seu tempo.
Este é o elemento que amanhã, se não hoje, distingue médicos e médicos, supostos todos competentes no manipular das técnicas, mas alheios alguns à culturalização de sua ciência e de sua técnica.
Sempre julguei que a minha escolha de paraninfo tenha nascido da amizade e mútua simpatia, irmanados nas mesmas inquietudes e aspirações.
Dizem que uma geração vive suficientemente para ensinar a geração vindoura. Tenho as minhas dúvidas de que a atual geração brasileira esteja cumprindo esta missão. Entretanto, como colega mais velho quero que saibais que a vida e os fatos ligados à vida se situam em ordem dinêmica, diante das coordenadas da evolução. Sendo o existir um desenvolver-se, e desenvolver-se é superar-se, é ultrapassar-se. Continuem aperfeiçoando-se porque parar é estagnar-se. Que a conclusão de vosso curso seja o início de uma vida perfeita, uma vida onde podereis realmente mostrar vossa capacidade criadora”.
Um comentário:
É incrível como meu avô pôde fazer um discurso tão atual ainda no ano de 1963, quando nem televisâo ainda existia. Obrigado por publicar este texto - que nos enche de orgulho - e nos aproxima ainda mais dele, que há tempos já se foi.
Um grande abraço de Rafael Zobaran Pereira, filho de Luiz Fernando Schramm Pereira, neto de Francisco Álvares Pereira.
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