terça-feira, 12 de setembro de 2017

A BIODIVERSIDADE TRIBAL DO CALÇADÃO - James Pizarro (edição de 12.09.2017 do Diário de Santa Maria)

Há mais de ano frequento o calçadão diariamente.  Nos mais variados horários. Pela manhã costumo ficar às vezes – se a companhia estiver boa – cerca de três horas.  E mesmo sozinho fico apreciando o movimento. Cumprimentando as pessoas. Prestando atenção em tudo. E em todos. Volto pela tarde e faço a mesma rotina.

Claro que não fico estático. Vou ao cafezinho. Sempre com o Modesto Dias da Rosa, companheiro inseparável de todas as manhãs. Aparecem outros : Horst Oscar Lippold, Alfeu Scalcon. Mas tomado o cafezinho e dissolvida a roda de conversa, volto à minha  rotina no “PO” (Posto de Observação), como o jornalista Fabrício Minussi apelidou o banco onde fico no calçadão em frente à Galeria Roth.

Costumo ficar ali com olhos de lince. De observador do cotidiano. Vendo o destino dos passantes. As frases soltas. As discussões acaloradas. Quem me vê pensa sou apenas um ancião aposentado. Distraído.  Alma perdida. Esperando a morte chegar. Nem suspeita que liguei meus sensores. Para aprender coisas. Aumentar o aprendizado sobre a cidade.  Recolher material para minha crônica quinzenal. Aprender a biodinâmica de interações humanas na selva de cimento e suor.

E uma coisa que me saltou aos olhos é a variedade de “tribos” que habitam o calçadão Salvador Isaia. E todas mais ou menos fazem a ocupação de seu território seguindo um ritual de horário. Quem é da área das ciências ditas sociais ou humanas tem um prato cheio para estudar ou recolher material para escrever artigos especializados.

Posso listar as dezenas de pedintes pelo nome e seus pedidos preferenciais (dinheiro para o pastel, para passagem do ônibus, remédio, cigarro avulso, cafezinho). As simpáticas indiazinhas descalças, com 2 ou 3 anos de idade, sempre pedem moedinhas enquanto correm de banco em banco.

Às 9h00 horas abre a Lotérica Zebrão e suas simpáticas atendentes preparam-se para atender longas filas. Às vezes, ouvem coisas do arco da velha. Coisas que os clientes gostariam de dizer para os políticos e autoridades descarregam sobre as  funcionárias que pacientemente ouvem. Sorriem. E na maioria das vezes, calam.

Dezenas de militares reformados também têm cadeira cativa no calçadão. Conheço quase todos. Assim como os funcionários aposentados da UFSM, do governo do RS e do município de SM. Todos trocam informações sobre política. Existem também cidadãos que oferecem dinheiro a juro. Existem grupos de adolescentes munidos de mochilas em pleno horário escolar que dão a nítida impressão de estar gazeando aula. Existem artesãos que ocupam o solo do calçadão a partir de certo horário da tarde. Outros trocam os bancos de lugar sem que ninguém reclame com medo de se incomodar. Outros passam voando de skate.

Alheia a tudo, minha amiga dona Vera chega com sua bolsa cheia de saquinhos de ração. E distribui para os cachorros do calçadão. E fornece água a eles também. Depois junta os potes e saquinhos, deixa tudo limpo e vai embora. Os cachorros ficam felizes sacudindo a cauda.


E eu fico feliz também. Porque fico otimista. Fico achando que a humanidade ainda tem saída. 

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