terça-feira, 2 de julho de 2019

É ISTO A VIDA ? - JAMES PIZARRO (DIÁRIO. pág. 4, edição de 2.7.2019)


Ao  quase sonâmbulo que percorria a calçada úmida da rua do Acampamento ao anoitecer – quase um fantasma para o medo das famílias – eu perguntei :
é isto a Vida ?

No silêncio do mitório público da praça Saldanha Marinho naquela noite quente de dezembro eu  perguntei ao homem  fantasiado de Papai Noel que chorava convulsivamente :
é isto a Vida ?

Eu vi  a foto com a placa indicando o local onde havia caído a bomba e à avó do neto anômalo de Hiroshima eu  perguntei :
é isto a Vida ?

Em tempo de delação e tramóia, quando em reuniões   secretas se enchem malas de dinheiro podre e se traem amigos antigos eu fiquei a pensar :
é isto a Vida ?

Quando o orgasmo involuntário macula o lençol do adolescente inquieto e a pressurosa e moralista mãe lhe ameaça com o  pântano do inferno do alto da  treva de sua ignorância, eu indaguei :
É isto a Vida ?

Quando o passarinho exausto, depois  de um dia gasto à procura de alimento para os filhotes, pousou no galho da pitangueira e recebeu um tiro do humanoide boçal em férias, ficando com as vísceras à mostra, excêntrica mistura de chumbo e sangue, eu perguntei :
é isto a Vida ?

Quando o mesmo pai  que se desvaneceu na torturada carne da amante ficou pálido diante da gravidez da filha caçula e sua mão de falsa  e ultrapassada moral gritou um tapa na face de porcelana da futura mamãe, eu perguntei :
É isto a Vida ?

Quando a censura  - como soturno réquiem – quer se abater contra a exaustão da mente a criar, eu morro carbonizado de tédio, tensão, vômito e náusea porque eu sei, bem dentro do meu miocárdio de ancião eu sei,  que todo cérebro humano é uma vasta terra de  horizonte livre para plantar o que quiser. Por isso aprendi com os anos a ter misericórdia com o velho atleta de músculos flácidos. O irônico colega perturbado. Ao vulto do inimigo escondido  atrás da cortina. Aos inimigos navegando para a Morte. Ao que uiva de dor nas madrugadas nos sanatórios.

Mas diante de uma colméia, quando as abelhas – pacificamente – organizam tudo e ainda produzem mel, imediatamente lembrei de uma frase de Santo Agostinho : “A Paz está na Ordem”.  E me certifiquei :
É ISTO A VIDA !

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