segunda-feira, 9 de setembro de 2019

UMA PROSTITUTA QUE DEU O QUE FALAR - James PIZARRO

Clarimundo Flores foi uma das glórias do jornalismo gaúcho. Pouco estudado e lembrado. É praticamente desconhecido até nos cursos de Comunicação Social nesta terrinha de Imembuí. Depois que veio de Uruguaiana, estabeleceu-se em Santa Maria,na década de 60, com um semanário denominado "A CIDADE". A sede e oficina do jornal ficava na rua Astrogildo de Azevedo, em frente onde hoje funciona o Curso Grécia. Pois foi neste jornal que cometi meus primeiros desatinos em matéria de escrever,pelos quais paguei um duro preço no início da minha vida profissional, principalmente dentro da UFSM. Mas isso é assunto para outro dia...
Pois a edição de "A CIDADE", de 17 de maio de 1965, anunciava com destaque a seguinte manchete : "SARTRE NO PALCO LOCAL A PARTIR DE SEXTA-FEIRA PRÓXIMA". Acompanhei e ajudei na elaboração de toda essa matéria. Tratava-se da peça "A Prostituta Respeitosa", de autoria de Jean-Paul Sartre, que por imposição da censura era anunciada na imprensa e nos cartazes esparramados pela cidade simplesmente como "A P...RESPEITOSA". Os cartazes eram de autoria do meu amigo José Newton Bento. A ilustração para a matéria do jornal foi feita pelo meu colega dos tempos do MANECO, chamado Luiz Carlos Retamozzo, que anos depois encontrei em Curitiba, trabalhando em artes visuais.
Nesta edição de "A CIDADE" havia um artigo intitulado "PORQUE A TAC OPTOU POR SARTRE",assinado por um "desconhecido" chamado Carlos Breno. A censura governamental andou meses atrás do tal articulista,não o encontrando,pois a turma era unida e sabia ficar de bico calado. Pois 41 anos depois, pela primeira vez, faço a revelação da identidade do misterioso articulista. Carlos Breno era o pseudônimo usado pelo então estudante Tarso Genro, hoje nosso Ministro da Justiça, recentemente homenageado em Santa Maria com o título de cidadão santa-mariense. Tanto eu como o Tarso pertencíamos ao GVC-Grupo de Vanguarda Cultural, junto com Freire Junior, Tasso Trevisan, Eliezer Pacheco, Dartagnan Agostini, Carlos Alberto Robinson, João Nascimento, Heber Santos, Alberto Rodrigues,etc...O grupo fazia reuniões nos porões do edificio da atual Casa do Estudante, à rua professor Braga, numa sala ao lado do Teatro Universitário (atual "catacumba"). E toda noite era sagrado o encontro no Bar Moby Dick, em várias mesas reunidas, onde hoje se encontra a Galeria Seibel, em frente à agência central do Banco do Brasil.
A peça era uma promoção da pomposamente chamada TAC, que era a sigla de TRÍPLICE ALIANÇA CULTURAL, formada pela União Santa-mariense dos Estudantes (USE), Diretório Central dos Estudantes da USM (então chamada apenas de Universidade de Santa Maria) e do GVT-Grupo de Vanguarda Cultural. E serviu para inaugurar o TEATRO PASCHOAL CARLOS MAGNO, situado nos porões da sede da USE, à rua do Acampamento, no prédio então em construção (construção ainda não concluída 41 anos depois...). O embaixador Paschoal Carlos Magno, figura de renome nacional por ser um dos raros protetores da cultura e das artes em geral naqueles tempos negros, esteve presente na inauguração. Depois da extréia, foi jantar conosco no Moby Dick, numa comemoração que demorou até ao amanhecer.
A peça debatia um tema atual, qual seja o da segregação racial nos Estados Unidos. Justo no momento em que os americanos se debatiam num episódio sangrento entre negros e brancos. Para a extréia do dia 21 de maio de 1965, publicou-se também no jornal esta "maravilha" de formalidade e protocolo :
"O primeiro espetáculo está anunciado para sexta-feira próxima, dia 21, às 21 horas,em avant-première, em traje de noite, dedicada ao professorado local, autoridades especialmente convidadas e imprensa falada e escrita".
O espetáculo, que tinha censura até 14 anos, gerou uma polêmica bárbara, que tomou conta de toda a cidade. Pois estimulado por setores conservadores da sociedade, pelos guardiões da moral e dos bons costumes, pelas vestais do templo (que sempre foram numerosas e patologicamente organizadas por estas bandas) , meia dúzia de pessoas detentoras de poder tentaram cercear AINDA MAIS a liberdade de expressão (como se isso fosse possível com a censura ferrenha da época) dos estudantes e de todos os integrantes da TAC. Infelizmente e pressionado por estas pessoas, Dom Luiz Victor Sartori, o bispo daquela época abriu as baterias contra a peça de Sartre. Falava nas rádios,pregava nas missas e escrevia nos jornais que o povo católico não deveria comparecer às apresentações da peça. O que se revelou inútil, pois serviu de publicidade. Principalmente no meio estudantil, que lotava as apresentações.
Clarimundo Flores, jornalista polêmico e justo,pregador de total liberdade de expressão, abriu as páginas do valente tablóide "A CIDADE" (àquela época já dirigido por seu filho, J.B.Flores). E na contracapa do jornal,em página inteira (edição de número 9, Ano 6,maio de 1965), a TAC respondeu ao bispo numa "carta aberta". A carta, em nome de toda a TAC,foi assinada pelo meu querido amigo de quase meio século, Freire Junior (Diretor e ator da peça em questão).
O trágico equívoco em tudo isso é que os "moralistas" fizeram fogo cerrado contra a peça SEM TER LIDO A MESMA ! Se ativeram apenas ao nome. Porque o termo "prostituta " naquela época, e acredito que ainda hoje - em determinadas cabeças esclerosadas - causava impacto e soava como palavrão. O termo soava como pornografia. Quando a sujeira e o preconceito estão dentro da cabeça de quem fala. E não na boca de quem diz, escreve ou (no caso) encena uma peça. Afinal, Sartre - o pai do Existencialismo francês - era Prêmio Nobel de Literatura. Reconhecido em todo o planeta, era censurado nesta cidade de Santa Maria...
Em nome do resgate da memória da cidade e para conhecimento dos jovens de hoje, cito alguns dados da peça : Jean-Paul Sartre (texto), Miroel Silveira (tradução) e Pedro Freire Junior(direção). Cito a seguir os atores e seus papéis, bem como pessoal de apoio técnico :
Aldonir Costa (papel de Lizzie, a prostituta)
Carlos Horácio Genro (irmão de Tarso Genro, no papel de Fred)
J.Brasil Teixeira Filho (o negro)
Carlos Alberto Robinson (o inspetor)
Carlos Renan Mello (o policial)
Pedro Freire Junior (o senador)
Tarso Fernando Genro (contra-regra)
Luiz Carlos Retamozzo (iluminação)
Newton José Bento (diretor de cena)
Waldomiro Messias (montagem)
Maria Augusta...hoje Feldman (maquilagem)
Elvandro (fotografias)
José Bento (xilogravura)
Eduardo Trevisan (desenho de Sartre na capa do programa)
A peça obteve sucesso tão estrondoso que o embaixador Paschoal Carlos Magno, que assistiu a extréia, selecionou a mesma para que fosse representar o Rio Grande do Sul no "V Festival de Estudantes do Brasil", que se realizou em junho de 1965,na Aldeia de Arcozello (primeira Universidade de Arte no Brasil), no Estado da Guanabara.
Muita gente ajudou a peça a ser encenada. A Rádio Santa-mariense, gratuitamente, ofereceu as gravações do poema de Hughes e a advertência de Genet, utilizados durante a peça. Rádio Guarathan abriu espaços para propaganda. A Rádio Imembuí emprestou os efeitos sonoros. O decorador e empresário Braustein orientou nos móveis. Muitas famílias sem medo e de cabeça arejada emprestaram móveis, vasos, etc...Waldomiro Messias construiu SOZINHO todo o teatro Pascoal Carlos Magno. O Coronel Walter Almeida, ligado ao movimento de março de 1964, no meio daquele obscurantismo todo contra a peça soube muito bem compreender os estudantes. E por isso faço esse registro aqui, registro que também o Freire Junior fez no programa (folheto) explicativo da peça, distribuido antes das sessões.
Como sou detalhista e gosto dos pormenores históricos, o que mais me espantou nos perseguidores da peça foi isso : a peça foi encenada em Santa Maria em 1965. Mas Sartre a escreveu em 1951, 14 anos ANTES ! Ela foi encenada no Brasil pela Maria Della Costa, à época,a primeira dama do teatro brasileiro. Portanto, não era uma "armadilha escrita propositadamente para corromper a juventude santa-mariense",como escreveu um figurão local.
Os anos se passaram. A História começa a fazer sua leitura crítica. As cabeças estão um pouco mais arejadas. A censura hoje é mais velada. Ninguém mais vai para a cadeia por razões culturais. E a gente pode escrever livremente sobre isso.

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