Meu pai era enfermeiro. Trabalhava no Centro de Saúde número 7, em S. Maria, RS, durante o dia. À noite, trabalhava no SAMDU - Serviço de Assistência Médica Domiciliar e de Urgência, folgando entre uma noite e outra. E nas horas de "folga" ainda aplicava injeções a domicílio, geralmente em casas de famílias abastadas da cidade.
Minha mãe era dona-de-casa exemplar para os padrões exigidos à época... Cozinhava muito bem. Costurava e fazia nossas roupas. Fazia doces e bolos sob encomenda. E reclamava porque nunca tinha conseguido concluir seu curso de violino, iniciado no Colégio Santa Terezinha, interrompido pelo casamento.
Tive uma infância com educação severa. Apanhei muito. E cerca de 90 % das surras eram merecidas. Apanhava de vara de marmelo. De chineladas. E até de relho, desses de carroceiro bater em cavalo.
Também ficava muito de castigo. Quando eu dizia palavrões, me colocavam pimenta na lingua, providência pedagógica que se revelou ineficaz, além de me deixar viciado em pimenta... Costumavam me privar das coisas que eu mais gostava. Cortavam meu cinema. Aboliam a "Cyrillinha", refrigerante de fabricação local, feito à base de casca de laranja e que era minha bebida predileta. Eu era impedido de jogar bola. De brincar na sanga, hoje arroio Cadena.
Normalmente, depois da surra, eu era obrigado a tomar banho, vestir um abominável pijama de pelúcia e ficar no meu quarto, nariz esborrachado na vidraça, vendo meu amigos jogando bola na rua.
Existia uma espécie de sadismo, reconheço hoje. Mas era o sistema educacional vigente na década de 40/50.
Meu pai era onipotente. Mandava em tudo. Dirigia tudo. E tudo obedecia à sua vontade. Os parentes todos obedeciam. E o único que se rebelava, teimava e mantinha discussões acirradas com ele era eu. Minha psiquiatra diria décadas depois que eu consegui criar um "mecanismo reativo" e , adulto, me transformei num contestador em todas as áreas onde atuei. Nunca suportei mandonismos, chefias, opressões, ordens absurdas. Sempre fui da oposição politicamente. E de certa forma, acho que inconscientemente temo que meus candidatos assumam um dia o poder. Porque terei de ficar contra eles. Porque todos eles se corrompem e ficam sendo o inverso do que pregavam ser.
Na UFSM fui grevista militante. Sempre fiquei contra o governo. Contra a chefia. Contra o detentor do poder. Porque eu sei hoje que todos eles representavam a opressão paterna.
Mas meu pai era generoso. Eu tinha conta livre na Livraria do Globo para comprar todos os livros que quisesse. E todas as vezes que precisei de carona, de ajuda, de dinheiro...eu disse TODAS...ele nunca me falhou. E tinha uma peculiaridade : nunca me perguntou o porquê do pedido... o porquê da minha necessidade. Jamais usou este procedimento de humilhação, tão comum nos mais velhos que "ajudam".
Aos 84 anos, o cardiologista indicou-lhe uma cirurgia para correção de um defeito. Lembro que ele não queria fazer. Eu fui procurar o médico, meu ex-aluno no cursinho pré-vestibular décadas atrás. Ele me disse que, sem a cirurgia, meu pai morreria repentinamente e que tinha, no máximo, seis meses de vida. O médico me disse que esse diagnóstico não era só dele mas de toda a equipe que acompanhava o caso de meu pai.
Certa madrugada, meu pai me chamou prá tomar chimarrão com ele às 5 da manhã. E pela primeira vez me pediu um conselho :
- O que eu devo fazer ?
Eu disse a ele :
- Tu tens de te operar, o cirurgião é excelente e tu vais viver muitos e muitos anos.
Ele me disse :
- Vou me operar então...tomara que dê tudo certo porque eu quero ver a formatura dos meus bisnetos.
A operação em si foi um sucesso. Mas na sala de recuperação rompeu-se a aorta abdominal, que possuía um aneurisma, coisa que os médicos ignoravam. E ele morreu. Meu avô também morreu assim...de ruptura da aorta abdominal.
Fui ao necrotério. Vi meu pai nu, morto. Com cortes e suturas, porque precisaram fazer procedimentos no cadáver, devido à imensa hemorragia interna.
Começaram a chegar os amigos. Os clubes da Terceira Idade. O pessoal da funerária. Minhas filhas, uma de Itajubá, MG e outra de Panambi, RS, foram avisadas. Meu filho, que mora em Santa Maria, foi nosso companheiro e presença sempre.
Ele foi velado na sala de sessões da Câmara de Vereadores, pois tinha sido vereador na legislatura de 1958.
Eu aguentei tudo dentro dos limites do possível. Mas quando minha mulher me avisou que meus alunos estavam chegando eu desabei. Olhei e vi aquelas turmas todas, aquela gurizada toda de 15...16 anos, dos quais eu era professor orientador...aqueles olhos assustados com o choro do seu professor...eu desabei literalmente. A Carolzinha me disse : "Nós pedimos o cancelamento das aulas pra ficar com contigo, Pizarro...como tu ensinaste prá gente, que na hora da dor a gente fica junto".
Dia desses, aqui na praia, me surpreendi fazendo um ultrassom abdominal para pesquisa de anomalias na aorta abdominal. Ela está íntegra. Sem anomalias.
Por enquanto.
Um comentário:
Muito lindo...a alegria, os castigos e todas as lembranças. Sempre um exemplo.Sempre ensinando. Talvez tenha conhecido meu pai na Livraria do Globo, Anselmo Saldanha Zoch, teria a mesma idade de teu pai quando faleceu. Doces lembranças.
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