segunda-feira, 16 de agosto de 2010

A GARE DA ESTAÇÃO

A gare da estação da Viação Férrea do RS, Santa Maria, foi local frequentado pela elite da sociedade santa-mariense, por mais incrível que isso possa parecer hoje aos mais moços, testemunhas da decadência da categoria ferroviária.

Ali estavam os escritórios das chefias. A sala do diretor da estação (chamado de "Agente"). O amplo e completo "stand" de revistas (a chamada "Revistaria da Estação"). O higiênico e confortável restaurante, onde serviam-se desde refeições "à francesa" até rápidos lanches. A fantástica sorveteria com inimagináveis guloseimas servidas em finas taças de prata. O competente serviço de carregadores de bagagens ("mensageria"), com os servidores vestidos de azul, com colarinho e gravata, portando carrinhos de ferro para o transporte das malas. O serviço de autofalantes com as publicidades (chamadas "reclames") ditas por um locutor cego, que tinha a fantástica capacidade de memorizar tudo. Entre um "reclame" e outro, valsas de Strauss e sambas de Ary Barroso.

Para ter acesso à gare da Viação Férrea, era necessário comprar ingresso. Vendido sob a forma de um papelote duro, numerado, metade branco, metade verde. Que era picotado pelo porteiro engravatado na roleta numerada que dava acesso ao interior das instalações. Rapazes e moças, acompanhados de seus pais, costumavam formar fervilhante torvelinho de gente nas horas de chegada e partida dos trens de passageiro. Trens que atendiam por nomes especiais : "Noturno", "Fronteira", "Serra", "Porto Alegre". A gente ficava abanando para as pessoas que partiam naquela "composição" formada por dezenas e dezenas de carros. Puxada por barulhenta e folclórica máquina a vapor, carinhosamente chamada de "Maria Fumaça". Anos depois substituídas pelas máquinas movidas a diesel e pelos trens húngaros, que tinham até ar condicionado e lanche gratuito.

Todo fim-de-ano lá ía eu com minha família - pelo trem da "Serra" - curtir férias escolares na cidade de Getúlio Vargas, situada depois de Carazinho e antes de Marcelino Ramos, na fronteira com Santa Catarina. Íamos no vagão-leito, composto de duas camas beliche, o máximo em conforto para a época.

Existiam carros de "Primeira Classe", com poltronas estofadas. E carros de "Segunda Classe", com bancos de madeira, ocupados pelas pessoas mais pobres, gaúchos de bota e bombacha que levavam desde galinhas enfarofadas até gaiolas com seus passarinhos de estimação. Havia o "Carro-Restaurante", onde os mais abastados faziam suas refeições, servidas por garçons de gravata borboleta. Os dois últimos carros dessas composições eram para uso dos funcionários que estavam trabalhando no trem e para uso dos Correios e Telégrafos, já que os malotes de cartas e encomendas eram predominantemente transportados pela Viação Férrea.

Meu tio, também ferroviário, de nome João Cassal Pizarro, era "agente" (leia-se Chefe) da Estação de Getúlio Vargas. Esta cidade serrana era dividida em duas partes : a "estação" e a "sede". Na "estação" ficavam as instalações ferroviárias, armazéns, depósitos e uma pequena vila de pouco mais de mil almas. Na "sede" ficava a cidade propriamente dita, com a Prefeitura Municipal, hospital escolas, delegacia, clubes, etc...Com a onda emancipacionista que assolou o Rio Grande do Sul nos últimos anos, o que se conhece hoje pelo nome de Getúlio Vargas é apenas e tão-somente a antiga "sede". A chamada "estação" de outrora constituiu-se num novo município, independente, que atende pela singela designação de "Antiga Estação".

Naquele aprazível lugar, de terra vermelha e barrenta, passei por muitos anos as minhas férias. E minha estada era no próprio recinto da gare da estação ferroviária, onde residia meu tio, conhecido por Tio Cassal. Era um homem sumamente interessante. "Gourmet" inveterado. Fumante inveterado. Jogador de cartas inveterado. E também inveterado apreciador de belas mulheres. Minha tia, chamada de "Tia Preta", fazia vistas grossas a tudo, ao melhor estilo masoquista das mulheres da época. Tudo em meu tio era inveterado. Exagerado. Compulsivo. Ele teve um violento AVC-acidente vaso-cerebral, que minha tia chamava de "derrame". AVC que o deixou rengueando de uma perna e usuário de uma bengala. Mas ele ainda teve de lucro uma sobrevida de mais dez anos. E mesmo de bengala ainda frequentava o chinaredo...

Tio Cassal tinha três filhos : Cleonice, Carlos Miramar e Paulo. Cleonice, chamada na intimidade de "Nice", é casada com Sadi Tagliari, talentoso acordeonista que tocou numa orquestra formada por seus dez irmãos e famosa na zona serrana do RS : Orquestra Tagliari. Depois, Sadi aposentou-se como gerente do Banco do Brasil . Moram em Porto Alegre. Carlos Miramar, "Carlinhos" para os íntimos, era piloto de avião, casado com Ivone Demoliner, filha do proprietário da famosa Erva-mate Demoliner, de Erechim. Paulo, meu primo "Paulinho", é formado em Administração de Empresas e mora em Porto Alegre com a família.

Já professor da UFSM, fui designado pela reitoria para representar a UFSM e fazer palestra sobre Ecologia na cidade de Getúlio Vargas, a "sede" dos meus tempos de piá. Falei para cerca de duzentas pessoas no cinema da cidade, numa promoção da Delegacia de Educação da região. E pedi ao meu anfitrião um favor : eu queria visitar o recém-criado município chamado "Antiga Estação", situado a uns 20 quilômetros dali.

A outrora estrada barrenta está hoje asfaltada. E em poucos minutos lá estava eu a visitar as velhas instalações da ferrovia (ainda são as mesmas). A velha casa onde morava meu tio, pintada de marrom, onde eu passava as minhas férias na infância. Apenas dois funcionários na gare da estação que, na ausência de trens de passageiros, estão ali apenas para a fiscalização dos trens carregados de soja que dali partem em direção à cidade de Rio Grande. De onde a nossa soja é levada para países asiáticos, para se transformar em ração para porcos. Ou para países europeus, onde as pessoas já são superalimentadas e melhor saúde teriam se comessem menos. Enquanto parte do nosso povo passa fome e morre com o nariz achatado nas portas dos hospitais.

Falei com um dos funcionários, o mais antigo, e ele bondosamente me proporcionou acesso aos livros antigos, já depositados no "arquivo morto" da estação. Ao folhear os mesmos, deparei-me centenas de vezes com a espalhafatosa e esparramada assinatura de meu saudoso Tio Cassal, autorizando isso ou aquilo...No pátio da antiga e abandonada casa, pude ver o poço - de onde tirávamos cristalina e pura água gelada - atulhado e transformado numa espécie de floreira. Um velho pé de plátano, com o tronco cheio de buracos e condenado à morte, completava o desolador quadro de abandono daquele pátio que foi tão importante nas minhas férias de guri. Ao lado daquele pé de plátano ficava uma gaiola, com o bicho de estimação de meu tio : um gracioso e canoro cardeal. A gaiola ficava com a porta permanentemente aberta. O cardeal comia nas mãos de meu tio, ao amanhecer. E depois, voava para longe, passando o dia fora. Lá pelas 18:00h, servindo chimarrão para meu tio, ouvia ele dizer : "Vamos para o pátio que tá na hora do cardeal voltar". Inacreditável ! O bichinho aparecia. E como por encanto, pousava no dedo indicador do meu tio, que o colocava na gaiola. Onde já estavam um pedacinho de banana mole, uma gema de ovo e alpiste com semente de girassol. Décadas depois, contei isso numa aula de Ecologia. Enquanto me virei para apagar o quadro-negro, tive o dissabor de ouvir este comentário de um aluno da primeira fila : "Que baita atochada ! " Quer dizer: passei por mentiroso simplesmente porque estava contando...a verdade!

Não se fazem mais alunos como antigamente. Que ainda tinham a perspectiva encantadora do mistério. Como também não se fazem mais tios inveteradamente encantadores. Nem tão pouco se fazem cardeais encantados com a liberdade, embora apaixonados por seu dono.

Por que esses tios têm de morrer ?

Por que esses cardeais de hoje fogem dos humanos ?

Por que a gente tem de caminhar rumo a uma antiga e pungente estação, chamada velhice, que precede nossa chegada à estação definitiva ?

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AUTOR : James Pizarro

7 comentários:

antes que a natureza morra disse...

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From: Truda Palazzo & Associates
Sent: Monday, August 16, 2010 10:10 AM
To: jamespizarro@hotmail.com
Subject: RES: Fantástico vídeo sobre Porto Alegre


Faz mesmo, essas histórias não podem se perder!! E apesar da penetração (!) da internet, eu ainda acho que o livro-papel é o que há de bom.

Espero que estejas bem por aí. Faz horas que não vou a Floripa, muito trabalho nessa minha vidinha nova de consultor privado, e ainda por cima agora trabalhando nas horas ‘vagas’ pra ajudar na eleição da minha parceira de peleia aqui em Canoas pra deputada estadual. Acgo que vamos conseguir botar uma meia dúzia de malucos poró-conservação pelos parlamentos afora. A ver.

Baita abraço,

JT

antes que a natureza morra disse...

RECEBIDO POR E-MAIL
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From: Ricardo ricardo
Sent: Monday, August 16, 2010 10:14 AM
To: jamespizarro@hotmail.com
Subject: FW: "A GARE DA ESTAÇÃO" - James Pizarro



Há, circulando pela internet, uma mensagem que recomenda que não se faça "viagens ao passado".
Ao ler a sua crônica eu confirmo, mais uma vez, a minha opinião de que é uma recomendação errada e intencionalmente danosa para todos nós!
Devemos sim relembrar o passado. Devemos preservar os nossos ritos familiares. Devemos mostrar para as novas gerações que antigamente vivia-se num ambiente atraente, charmoso, requintado e em contado com a natureza.
E não estou falando da vida de ricos. Tudo isso que o senhor comentou estava ao alcance da maioria das pessoas.
O padrão de vida de todos era melhor !!!
Acho importante ressaltar que muito do que foi destruido no nosso Brasil ainda é preservado e mantido "lá fora".
As crianças "lá" são educadas para conhecer, valorizar e, no futuro, defender o seu idioma, a sua cultura, as suas obras de arte, as suas casas, os seus prédios, enfim o seu estilo de vida !!!
Saliento também que "lá fora" os meios de transportes, os prédios, as praças etc. continuam a ser batizados com nomes relacionados com a cultura e o povo de cada país.

Em outras palavras, costuma-se fazer isso que o senhor acabou de realizar por intermédio da sua crônica, isto é, lembrar, preservar e valorizar o passado para que as novas gerações se beneficiem das conquistas sociais, econômicas e culturais adquiridas pelos pais !!!

Meus parabéns !!!
Abraços,
Ricardo.

antes que a natureza morra disse...

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From: Ricardo ricardo
Sent: Monday, August 16, 2010 10:14 AM
To: jamespizarro@hotmail.com
Subject: FW: "A GARE DA ESTAÇÃO" - James Pizarro



Há, circulando pela internet, uma mensagem que recomenda que não se faça "viagens ao passado".
Ao ler a sua crônica eu confirmo, mais uma vez, a minha opinião de que é uma recomendação errada e intencionalmente danosa para todos nós!
Devemos sim relembrar o passado. Devemos preservar os nossos ritos familiares. Devemos mostrar para as novas gerações que antigamente vivia-se num ambiente atraente, charmoso, requintado e em contado com a natureza.
E não estou falando da vida de ricos. Tudo isso que o senhor comentou estava ao alcance da maioria das pessoas.
O padrão de vida de todos era melhor !!!
Acho importante ressaltar que muito do que foi destruido no nosso Brasil ainda é preservado e mantido "lá fora".
As crianças "lá" são educadas para conhecer, valorizar e, no futuro, defender o seu idioma, a sua cultura, as suas obras de arte, as suas casas, os seus prédios, enfim o seu estilo de vida !!!
Saliento também que "lá fora" os meios de transportes, os prédios, as praças etc. continuam a ser batizados com nomes relacionados com a cultura e o povo de cada país.

Em outras palavras, costuma-se fazer isso que o senhor acabou de realizar por intermédio da sua crônica, isto é, lembrar, preservar e valorizar o passado para que as novas gerações se beneficiem das conquistas sociais, econômicas e culturais adquiridas pelos pais !!!

Meus parabéns !!!
Abraços,
Ricardo.

antes que a natureza morra disse...

RECEBIDO POR E-MAIL
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From: Ceura Fernandes
Sent: Monday, August 16, 2010 10:29 AM
To: jamespizarro@hotmail.com
Subject: Re: "A GARE DA ESTAÇÃO" - James Pizarro


James,
li, de um fôlego só, teu texto até o final.
Revivi tuas antigas vivências. Uma beleza.
Ceura

antes que a natureza morra disse...

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From: D. Hélio Adelar Rubert
Sent: Monday, August 16, 2010 3:26 PM
To: jamespizarro@hotmail.com
Subject: Re: "A GARE DA ESTAÇÃO" - James Pizarro


James: Obrigado por essas belas recordações. Por que o ilustre amigo não repassa para um dos nossos diários de Santa Maria para refrescar a memória dos antigos e informar os novos? Seria uma boa contribuição. Um abraço "bem colorado": + Hélio A.

antes que a natureza morra disse...

RECEBIDO POR E-MAIL
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From: Satélite De roma
Sent: Monday, August 16, 2010 6:07 PM
To: jamespizarro@hotmail.com
Cc: D. Hélio Adelar Rubert
Subject: Re: "A GARE DA ESTAÇÃO" - James Pizarro


e me abisma, igualmente, professor, como deixamos um lugar tão rico culturalmente&historicamente ser destruido???



leo

Maria Cezar disse...

Caro mestre! È impossível ler mais este relato de suas vivências sem que a emoção tome conta ao fanalizar a leitura! Quem ,ou qual de nós, entre 50 e 60 anos não conheceu a rotina dos trens? As gares das estações ,cada uma com suas características, dependendo da cidade? Das despedidas, das esperas...das Bandas Marciais que viajavam de trem para participar dos festivais maravilhosos que exstiam? Da ansiedade das mocinhas aguardando seus flertes na chegada das locomotivas? Há caro mestre!Que saudade eu tive agora de uma adolescência vivida há uma quadra da estação de São Gabriel!!!Ali acompanhei tudo isso que tão bem relatas em mais este "presente" que nos dá em suas escritas.Um abraço!